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Mrs. Dalloway e o transtorno de estresse pós-traumático


Desde 2014, a Associação Brasileira de Psiquiatria - ABP, junto com o Conselho Federal de Medicina - CFM, organiza o Setembro Amarelo e, mais precisamente no dia 10, temos o Dia Mundial de Prevenção ao Suicídio. No Brasil são registrados cerca de 12 mil suicídios todos os anos e mais de um milhão no mundo. É uma realidade triste que atinge majoritariamente jovens acometidos por transtornos mentais.

Após quase dois anos de pandemia e isolamento, falar de saúde mental se mostrou essencial. Para muitos, a leitura sempre foi ou passou a ser uma forte ferramenta de escapismo. O tempo antes ocupado com passeios e encontros com familiares e amigos foi substituído por livros e atividades online. Diante disto, certamente encontraremos a descrição dos mais diversos perfis psíquicos, seja com as personagens, seja com seus autores.

Mas, se hoje em dia o tema é pauta certa na internet em rodas de conversa virtual, precisamos admitir que o tabu ainda é grande. Fica até difícil imaginar como era tratado o assunto na virada do século XIX para o XX.

Virginia Woolf sofreu durante quase sua vida toda com perturbações neurológicas, tendo se suicidado no ano de 1941. Quase como um duplo seu, portanto, temos Septimus, uma de suas personagens mais marcantes do romance Mrs. Dalloway. A falta de empatia dos médicos, dos familiares e a dificuldade de diagnóstico da época são temas centrais retratados na obra.

Hoje conhecido como transtorno de estresse pós traumático, o denominado antes como neurose de combate acomete atualmente em torno de 15 a 20% das pessoas que vivenciaram, de alguma forma, situações de violência. Em Mrs. Dalloway, este distúrbio de ansiedade aparece como uma crítica à Primeira Guerra Mundial e atinge a Septimus, um ex-combatente. 

A atualidade do tema surpreende: ao longo das páginas, acompanhamos as dificuldades enfrentadas por Septimus e sua esposa, a italiana Lucrezia, na busca por um diagnóstico satisfatório. Primeiro com o dr. Holmes, que afirma não haver nada de errado com Septimus. Depois, com o dr. Bradshaw, que diz à Lucrezia que seu marido precisa se internar em uma casa de repouso para descansar e se alimentar melhor - felizmente e por coincidência, vejam só, o próprio médico é proprietário de uma instituição exatamente nesses moldes!

Ao mesmo tempo, observamos os pensamentos de Lucrezia, que sofre a solidão de estar em um país estrangeiro e de não compreender a condição médica de seu marido. Afinal, se não há nada de errado com ele, por que ele não pode ser como todos os demais? A posição em que Virginia coloca seu leitor, possibilitando a ele ler a mente de Lucrezia, é de uma complexidade única: ao mesmo tempo em que nos lamentamos por Septimus e ficamos horrorizados com a falta de empatia de sua esposa, é impossível não se compadecer também com a situação dela.

Nesse sentido, talvez a própria Virginia tenha se apiedado de seu marido em seu bilhete de despedida antes de desaparecer:

"Estou certa de que estou enlouquecendo de vez. Sinto que não podemos sobreviver outro daqueles terríveis períodos (...) Você me deu a maior felicidade possível. Você foi, sob todos os aspectos, tudo que alguém pode ser (...) Não consigo mais lutar. Sei que estou estragando a sua vida, que sem mim você conseguirá trabalhar (...) O que posso dizer é que devo toda a felicidade da minha vida a você. Você foi inteiramente paciente comigo e incrivelmente bom (...) Se alguém pudesse ter me salvado teria sido você. Tudo se esvaiu de mim, menos a certeza de sua bondade. Não posso mais continuar estragando a sua vida."

Com certeza o núcleo de Septimus - e de Lucrezia - integra as páginas mais tristes de todo o romance, através das quais acompanhamos as alucinações da personagem e sua angústia até a cena final trágica de seu suicídio em uma tentativa de fugir das investidas do dr. Holmes.

Em uma série de alucinações, Septimus recorda cenas presenciadas enquanto servia na guerra, bem como a morte de um amigo querido. O transtorno de estresse pós traumático faz com que o paciente reviva toda a dor e sofrimento do momento do acontecimento estressor, e o leitor, certamente, compartilhará desse padecimento também. 

Se o termo neurose de combate caiu em desuso apenas nos anos 1970, sabemos que ainda há muito a avançar em termos de estigmas quanto à saúde mental e o setembro amarelo está aí para isso. A conscientização é uma luta que deve perdurar o ano todo, afinal, os transtornos mentais permeiam as nossas vidas. Os autores e suas personagens sempre retrataram essa realidade ao longo da história e são com certeza um instrumento importante de empatia e aprendizagem para a sociedade. 


Arte em destaque: Mia Sodré 
Mirela Pistili
Advogada de formação, porém leitora de coração. Moradora do centro de São Paulo, há quase 30 anos vive o paradoxo de garimpar todo este caldeirão cultural ofertado pela capital, ao mesmo tempo em que só quer fugir pro sossego do litoral mesmo.

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