Histórias de vampiros encontradas na literatura não são novas, sobretudo, e enfatiza-se, aquelas sobre vampiras. Originadas na década de 1870, na Europa, esses contos são refletidos hoje em releituras e adaptações para a época atual. O que não muda é o foco em figuras femininas lidando não apenas com o vampirismo, mas com o romance, que envolve outra figura feminina, mas humana. Carmilla e First Kill são duas histórias que trazem como um dos temas principais o envolvimento de uma vampira com uma humana. O mais curioso é assimilar todos os 150 anos que separam ambas as narrativas e refletir acerca das mudanças na sociedade, como o papel da mulher e sua liberdade romântica, e ainda, uma das muitas visões sobre vampiras que eram e são ainda abordadas.
Carmilla – a Vampira de Karnstein, publicada pelo irlandês Sheridan Le Fanu entre 1871 e 1872, no formato de folhetim, narra por meio de uma carta a experiência da humana Laura com a vampira Carmilla, de quem se manteve próxima durante algum tempo sem ter consciência da verdadeira face da antiga amiga. First Kill é um conto de Victoria Schwab (também conhecida por V.E. Schwab) inserido na coletânea juvenil de contos sobre vampiros Vampires Never Get Old: Tales with Fresh Bite. No Brasil, o conto foi traduzido como Primeira Morte, e a coletânea passou a se chamar Vampiros nunca envelhecem, lançada pelo selo Galera da Editora Record em 2022. O conto, adaptado recentemente para o formato de série pela Netflix, lançada em junho de 2022, expande o universo mostrado na história literária, que trata do interesse romântico entre uma vampira e uma humana Caçadora de Vampiros, respectivamente Juliette Fairmont (Sarah Catherine Hook) e Calliope Burns (Imani Lewis).
Sheridan Le Fanu |
Como afirmado pela pesquisadora Marina Penteado, que traz em um artigo uma perspectiva do ctônico e o selvagem em Carmilla, a obra se destaca por ser a primeira narrativa sobre vampiras lésbicas. Com o passar das décadas – e séculos –, nota-se uma crescente de publicações de séries literárias e ficcionais sobre vampiros e suas relações amorosas. Das mais conhecidas é possível citar Entrevista com o Vampiro, de Anne Rice, considerado por muitas um romance entre o protagonista Louis e o vampiro Lestat que o transformou; Diários do Vampiro, de L. J. Smith, narrando um triângulo amoroso entre os irmãos vampiros Damon e Stefan e a humana Elena; e Crepúsculo, de Stephenie Meyer, que narra a história da humana Bella e seu romance com o vampiro Edward. Mais recentemente, First Kill, ou Primeira Morte, destaca-se por abordar o interesse romântico entre uma vampira e uma humana, ambas figuras femininas, e por ser uma produção literária amplamente divulgada. Agora, também, uma produção audiovisual na série First Kill da Netflix (infelizmente, cancelada em sua 1ª temporada), e aprofundando mais a mitologia do universo de Juliette e Calliope, algo que não foi abordado no conto de Victoria Schwab por não ser a proposta inicial da obra em que foi publicado. O conflito em First Kill se estende para além da problemática romântica entre dois seres diferentes e a impossibilidade de duas figuras femininas se envolverem, como temos em Carmilla, mas, sim, devido à categoria em que se encontram: Juliette é uma vampira e Calliope, uma Caçadora de Vampiros. Aqui, as duas vivem para matar a outra. Ou deveriam.
Carmilla tem sua ambientação em um castelo na Estíria nos limites da Europa Oriental no século XIX, em meio à floresta e campos vastos, sob noites enluaradas e em aposentos amplos e ricamente decorados. Já First Kill oferece cenários atuais, a partir da segunda década do século XXI, em uma escola dos Estados Unidos, nas casas modernas de duas adolescentes e locais do seu cotidiano, ainda que uma delas seja vampira. Nesse sentido, torna-se interessante ver que Juliette, a vampira na série, vive de forma discreta, imitando a vivência de seres humanos, algo praticado por sua família como forma de se protegerem da sociedade humana e de Caçadores, ao invés de em um castelo antigo ou outro ambiente mais sombrio.
Carmilla é uma vampira clássica, a vampira clássica. Especula-se, inclusive, que foi ela a personagem percursora na literatura sobre vampiros, como também no envolvimento romântico entre vampiros e seres humanos. É descrita como jovem e muito bela, carismática e de fala cativante, de aparência inofensiva. Pelos acontecimentos em Carmilla, também entendemos que é sedutora e muito inteligente, conquistando a atenção e estima de qualquer pessoa e escolhendo suas presas humanas de forma estratégica, como jovens mulheres que ninguém duvidaria se tivessem um mal súbito e viessem a falecer, por compleição frágil ou saúde debilitada. Contudo ainda que seja uma predadora e tenha por objetivo sanar sua sede de sangue por ser vampira, Carmilla não toma Laura como um objeto ou um ser dispensável. Ao longo da história, notamos que elas criam um laço forte, tornam-se amigas e possíveis amantes. Laura reitera em inúmeros momentos o quanto adora Carmilla, e esta busca sempre sua companhia, ainda que mantenha-se em aposentos fechados durante o dia, expressando e verbalizando com frequência uma grande afeição pela humana.
“- Tenho certeza, Carmilla, que está apaixonada. Que há, neste momento, uma questão amorosa acontecendo.- Eu não estou apaixonada por ninguém e nunca poderei – sussurrou – a não ser que seja por você.”
Ilustração de Carmilla, por David Henry Friston (1872) |
Traçando esse paralelo entre as duas vampiras, Carmilla é ardilosa, sedutora e confiante, sabe o que quer, quem é, e faz questão de manifestar isso em suas ações e falas. Já Juliette, ainda que saiba querer ter um envolvimento com Calliope, mostra-se insegura e incerta sobre como agir e, ainda, sobre quem é. Afinal, embora seja uma vampira, diferentemente de Carmilla, tem dificuldade em aceitar isso e agir de acordo com o que se espera de uma: viver de forma predadora e beber o sangue de humanos sem escrúpulos. Juliette foge à imagem da vampira perigosa, inspirada por Carmilla, que se alimenta de jovens moças no vilarejo perto da morada de Laura. E Calliope não se enquadra no papel de humana indefesa, não apresentando a calmaria e doçura incorporados em Laura. Ainda que esta tenha participado, de certa forma, da caçada à Carmilla, é Calliope quem pega nas armas (ou estaca) e assume uma posição física de combate.
Carmilla e Laura primeiro iniciam uma amizade, um envolvimento que é sutilmente tido como romântico nas páginas da história, e somente após isso ocorre a ruptura entre elas. Já Juliette e Calliope, na noite em que se aproximam, tendem a realizar sua ruptura, ambas buscando sua First Kill, a primeira morte que as elevará a outro status em seus mundos familiares. Juliette seria considerada uma vampira iniciada na vida adulta, bem como Calliope seria uma verdadeira caçadora. No entanto, a ruptura não acontece da forma esperada, e elas passam a ter um envolvimento nada apropriado para suas famílias e espécies distintas.
First Kill (2022) |
Calliope já é uma Caçadora de Vampiros, treinada e preparada para isso; Laura faz o papel de uma ao se aliar àqueles que nutriam superstições acerca da jovem Carmilla, compartilhando observações acerca de seu comportamento e guiando-os para onde poderiam encontrá-la. Em uma mistura de medo e fascínio, Laura cede à Caçada, ao invés de sua estima pela querida Carmilla. No final da história, descreve com fascínio a morte da vampira causada pelos homens que a acompanhavam. Em First Kill, o final aberto deixa um número infinito de caminhos para a leitora imaginar. A série adaptada discorre um pouco mais, já que ambas se colocam contra suas famílias para ficarem juntas, tentando achar um equilíbrio entre serem quem são e viverem o romance.
“Por um momento, elas estão de volta ao armário, um emaranhado de lábios e membros, antes que a coisa toda viesse, antes que beijar se tornasse matar.”
Na história de Sheridan Le Fanu, a afeição romântica entre Carmilla e Laura é apenas sugerida, não sendo afirmada na narrativa e nem podendo sê-la, devido ao contexto social da época em que foi publicada, como explanado por Mia Sodré no texto Carmilla, uma história sobre amor e morte. Mas por meio de Victoria Schwab, uma vampira e uma humana podem se declarar lésbicas e buscar viver o romance que tanto desejam.
Se no final do século XIX, uma história declaradamente romântica entre duas figuras do sexo feminino era inaceitável devido ao conservadorismo e discriminação extremos, atualmente é possível que expressem mais abertamente sua afeição, nos dando indícios de que a tendência à liberdade romântica vive não apenas nas páginas de um livro.
Referências
- Mulheres monstruosas: o ctônico e o selvagem em Carmilla, de Le Fanu (Marina Pereira Penteado)
- Carmilla: uma história sobre amor e morte (Mia Sodré)
Arte em destaque: Mia Sodré
Comprei Carmilla recentemente, estou doida pra ler!!
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