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Gota d'Água: uma Medeia brasileira


Por mais que estudos apontem resquícios de teatro na época pré-histórica, é inegável a influência e importância da Grécia para o desenvolvimento do gênero teatral como é conhecido atualmente. A partir de ritos para o deus Dioniso, os gregos desenvolveram a comédia e a tragédia. A primeira usava de elementos cômicos para satirizar a vida cotidiana e as figuras públicas da sociedade grega, e era considerada um gênero voltado às classes sociais menores. Já a segunda era voltada às elites, contava com deuses e heróis como personagens e tinha um objetivo mais complexo – a catarse. 

Segundo Aristóteles, ao assistir seus desejos encenados, os espectadores eram atingidos por uma descarga emocional que trazia consigo uma espécie de purificação. As cenas de intensas emoções atravessavam o indivíduo de maneira radical por conta da identificação presente entre o sentimento figurado e quem o assistia. O conhecimento de que o momento era apenas uma representação e não a realidade conferia o alívio catártico. Como característica importante às tragédias e inerentemente à catarse trágica, há a conclusão chocante e soturna, recheada de imagens fortes e grotescas. Não há espaço para finais felizes neste gênero. 

Atualmente, mais de 2 mil anos após seu desenvolvimento, as obras gregas permanecem sendo estudadas e, a partir do conhecimento de mundo contemporâneo, reinventadas em novas narrativas. Um exemplo de mito apresentado pelos gregos que foi reconfigurado aos moldes brasileiros foi Medeia.

Escrita por Eurípedes em 431 a.C., Medeia permanece no inconsciente cultural como uma história de horror que trata de filicídio. O cenário da trama é Corinto, governado pelo rei Creonte, e sua protagonista é uma feiticeira de nome Medeia. Neta do deus Sol, Medeia se apaixona por Jasão, e através de seu amor escolhe abandonar família, amigos e cidade natal. No contexto histórico grego, as mulheres da época não eram detentoras de cidadania, logo deviam estar sempre sob tutela de um homem – antes o pai, depois o marido. Assim, o grau de valor dos indivíduos de gênero feminino era medido através das tarefas domésticas e criação dos filhos, diferentemente dos homens, que eram medidos através de suas habilidades corporais e intelectuais. Em diversas cenas, Medeia questiona os valores da sociedade onde vive e o papel da mulher, trazendo, inclusive, um dos primeiros discursos que apontam as injustas diferenças sociais entre os gêneros.

“Das criaturas todas que têm vida e pensam,
somos nós, as mulheres, as mais sofredoras.
De início, temos de comprar por alto preço
o esposo e dar, assim, um dono a nosso corpo
- mal ainda mais doloroso que o primeiro.
Mas o maior dilema é se ele será mau
ou bom, pois é vergonha para nós, mulheres,
deixar o esposo (e não podemos rejeitá-lo).
Depois, entrando em novas leis e novos hábitos,
temos de adivinhar para poder saber,
sem termos aprendido em casa, como havemos
de conviver com aquele que partilhará
o nosso leito. Se somos bem sucedidas
em nosso intento e ele aceita a convivência
sem carregar o novo jugo a contragosto,
então nossa existência causa até inveja;
se não, será melhor morrer. Quando um marido
se cansa da vida do lar, ele se afasta
para esquecer o tédio de seu coração
e busca amigos ou alguém de sua idade;
nós, todavia, é uma criatura só
que temos de fixar os olhos. Inda dizem
que a casa é nossa vida, livre de perigos,
enquanto eles guerreiam. Tola afirmação!
Melhor seria estar três vezes em combates,
com escudo e tudo, que parir uma só vez!”

Medea, por Frederick Sandys (1868)

O caráter trágico da trama se inicia com a traição de Jasão para com Medeia, que decide abandoná-la e casar-se com a filha do rei de Corinto. Humilhada por quem ama e julgada pelos cidadãos do reinado, Medeia se apossa de fúria e passa a tramar contra aquele que lhe prometeu uma vida em conjunto. Após garantir abrigo em Atenas pelo rei Egeu, a mulher coloca sua vingança em ação. A descendência era algo de extrema importância para Jasão, logo, com o intuito de destruir o que lhe era de maior valor, Medeia envenena a mulher pela qual ele a trocou para que, assim, morra e não possa engravidar. Em seguida, em um ato de frieza, mata seus próprios filhos, frutos do relacionamento com Jasão. Assim é roubado do homem seus descendentes. 

“Ele (Jasão) não reverá vivos os filhos que de mim teve, e outros não terá de sua nova esposa, que deve perecer miseravelmente, devorada por meus venenos.”

A partir do horror mítico da peça de Eurípedes, o músico Chico Buarque e o dramaturgo Paulo Pontes desenvolveram a peça musical Gota d’Água nos anos 1970. A narrativa é bastante similar à original, tanto que o desfecho agressivo é semelhante, porém o cenário e contexto da obra se apresentam de maneira extremamente distante. 

A Medeia da trama brasileira tem o nome de Joana e vive no subúrbio pobre do Rio de Janeiro. O conjunto habitacional onde mora, a Vila do Meio-Dia, é propriedade de um homem rico chamado Creonte, que aluga as casas aos moradores. O valor do aluguel é pauta constante na trama, que inicia com o cenário dividido em três sets: um botequim, uma oficina e o set das vizinhas. As conversas entre os personagens são revezadas, e um jornal que anuncia o casamento de Jasão com Alma é o objeto que permeia as cenas. As personagens que compõem as vizinhas afirmam a dor de Joana, que era a amada de Jasão, com quem teve dois filhos.

“Pois ela está como o diabo quer
Comadre Joana já saiu ilesa
De muito inferno, muita tempestade
Precisa mais que uma calamidade
pra derrubar aquela fortaleza
Mas desta vez... acho que não aguenta,
pois geme e treme e trinca a dentadura
E, descomposta, chora e se esconjura
E num soluço desses se arrebenta
Não dorme, não come, não fala certo,
só tem de esperto o olhar que encara a gente
e pelo jeito dela olhar de frente,
quando explodir, não quero estar por perto”

O relacionamento de Jasão e Joana havia iniciado após a mulher deixar o ex-marido em vista da paixão. Dez anos de amor se passam e ela, que é mais velha do que Jasão, providencia tudo o que ele precisa para conquistar seu sonho – se tornar um sambista compositor. Porém os interesses falam mais alto e, assim como na obra original, ele decide trocar a mulher que ofereceu tudo o que tinha. Jasão agora se compromete com Alma, a filha do dono das propriedades que compõem Vida do Meio-Dia.

“Deu a Jasão dois filhos, cama e mesa,
a coxa retesada, o peito erguido
Deu aquilo que tinha de beleza
mais aquilo que tinha de sabido,
de safado, de gostoso e tesudo
de mulher. Se deu dez anos de vida
e o homem, satisfeito, deixa tudo
como quem deixa um prato sem comida.”

Em seguida, diversas cenas de discussão entre Jasão e Medeia se dão. O homem, a partir do noivado com Alma, consegue o sucesso que tanto almejava. A música que compôs, nomeada "Gota d’Água", de mesmo nome da trama, agora toca em todos os rádios graças ao dinheiro de seu novo sogro. A vida parece certa a Jasão, que em vista de demonstrar gratidão tenta mandar dinheiro à Joana, que o nega com veemência.

Gota d'Água (1975)

As duas protagonistas mencionadas, Medeia e Joana, compartilham não apenas dos moldes da traição que sofreram, mas também da raiva e força. Ambas deixam o ódio dominar, e por meio de um plano bem bolado concluem sua vingança. Enquanto Medeia envenena a mulher pela qual foi trocada, mata os próprios filhos e depois foge para Atenas, Joana decide deixar a vida junto com suas duas crias. Joana, com o objetivo de envenenar Alma no dia do casamento, realiza um feitiço para envenenar um bolinho. Tenta, através de seus filhos, dar o alimento de presente à noiva, mas Creonte não permite que haja esse contato. Com o fracasso de seu plano inicial, Joana decide, então, se alimentar do doce enfeitiçado ao lado de seus dois filhos. Em um abraço, os três morrem, e a peça termina.

Mais de dois mil anos de distância da peça de Eurípedes, Gota d’Água apresenta o contexto ditatorial brasileiro da época. Enquanto Medeia foi lançada em um concurso de tragédias, ficando em terceiro lugar, a peça de Paulo Pontes e Chico Buarque beirou a censura e conseguiu driblar a proibição por ter como principal tema a vida privada, o amor e a loucura de Joana. A história que passa como plano de fundo é a de exploração dos moradores da Vila do Meio-Dia através de um aluguel caro e falsas promessas de Creonte. O Brasil, na época de lançamento da peça, passava por uma situação muito similar. Após o golpe, uma política habitacional havia sido implementada como meio formador de apoio político e disciplinador de contestadores. Em tese, os trabalhadores deveriam ser donos de suas próprias casas, estimulando o pensamento capitalista, porém as casas construídas acabaram distribuídas prioritariamente entre cidadãos de média e alta classe, e ao indivíduo de baixa renda sobrava apenas o trabalho braçal. Logo, representando a situação da época, a obra conta com cenas que têm como intuito a reflexão acerca da desigualdade social. Importante salientar que, além do fator financeiro, a desigualdade social criticada se dava também acerca dos gêneros. Joana, em uma de suas falas, reflete sobre o papel da mulher como à mercê do masculino:

“Que venha e volte, entre e saia, que monte
e desmonte, que faça e que desfaça...
Mulher é embrulho feito pra esperar,
sempre esperar... Que ele venha jantar
ou não, que feche a cara ou faça graça,
que te ache bonita ou te ache feia,
mãe, criança, puta, santa madona
A mulher é uma espécie de poltrona
que assume a forma da vontade alheia”

Em uma época em que o silêncio era fator constante no social, os autores de Gota d’Água também resistiram trazendo o protagonismo da palavra à obra. Desta forma, escolheram versos e diálogos nos moldes da poesia para dar estrutura à narrativa, fugindo do formato de espetáculo comum da época e se aproximando do formato grego. Além da estrutura, os autores buscaram o cenário brasileiro para a adaptação como meio de protagonizar a cultura popular nacional. Inclusive, no prefácio do livro que apresenta a peça, há um discurso a respeito da busca da permanência das características do povo na cultura nacional.

“[...] o povo sumiu da cultura produzida no Brasil - dos jornais, dos filmes, das peças, da TV, da literatura etc. Isolado, seccionado, sem ter onde nem como exprimir seus interesses, desaparecido da vida política, o povo brasileiro deixou de ser o centro da cultura brasileira. Ficou reduzido às estatísticas e às manchetes dos jornais de crime. Povo, só como exótico, pitoresco ou marginal. Chegou uma hora em que até a palavra 'povo' saiu de circulação. Nossa produção cultural, claro, não ganhou com o sumiço.”

Como uma das principais características de adaptações artísticas, tem-se a subversão de sentido visando a adequação às condições sociais momentâneas. Gota d’Água traz em si aspectos que ajudam a compreender a sociedade regida pelo regime militar, e com maestria apresenta personagens que, por mais que tenham sido inspirados em figuras míticas gregas, são inteiramente brasileiros. Conhecemos, através do presente artigo, duas representações do feminino que perduram até hoje e que, apesar das atrocidades cometidas, contribuíram à luta feminista. Tanto Medeia quanto Joana foram vítimas da condição de ser mulher e trazem em suas falas discursos que permanecem atuais.

Referências 

Natália Meisen
Feminista e estudante de letras. Entusiasta da literatura escrita por mulheres, publica suas palavras no medium e administra sua própria marca de roupas. Toma café toda hora, gosta de acordar cedinho para ler e ama croissants.

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