Nos deparamos com fantasmas em causos populares, no cinema, na literatura, na música. É curioso pensar como uma criatura fantástica desprovida de materialidade física possui um tipo de representação visual tão familiar, reconhecível e pregnante: um longo lençol branco com espaços escuros destinados aos locais reservados aos olhos e à boca. Observamos esse aspecto da visualidade não apenas na caracterização mais usual recebida por esse ser, mas na própria etimologia da palavra "fantasma": ela se origina do termo anglo-francês fantosme, que, por sua vez, tem sua raiz no latim phantasma — fazer aparecer, revelar — , derivada do grego phantázein, conforme explica o professor Alexander Meireles na introdução do livro Contos clássicos de fantasma.
Mas essa representação do espectro distante da figura humana nem sempre se mostrou dessa maneira. O teatro renascentista inglês retratava fantasmas como armaduras barulhentas, principalmente quando estes se tratavam de espíritos de membros de classes sociais abastadas — como a armadura gigante de O castelo de Otranto (The castle of Otranto). Com essa aparência, o ser corresponde à definição trazida por Luiz Nazário em Da natureza dos monstros: um monstro antropomorfo, menos impessoal do que um lençol flutuante — que ganharia forma só no século XIX, possivelmente inspirado por mortalhas, quando a imagem do fantasma de armadura finalmente se desgastara.
Há, ainda, durante o período medieval, relatos de manifestações fantasmagóricas apenas sob a forma de ruídos e vozes. Diante dessas diferentes representações, a forma do espectro parece depender do período em que os relatos ou narrativas são feitos, bem como das circunstâncias nas quais emerge a criatura. É a partir dessa linha de raciocínio que trataremos da representação do fantasma nas obras O Aparicionista, O Necromante e Fantasmagoriana. Ainda vale a pena lembrar que o espectro carrega em si uma ideia de finitude e é possível visualizar uma leitura que situe o mistério relacionado ao motivo da aparição dessa criatura em associação aos mistérios do do pós-morte. O imaginário em torno de espíritos pode ser também compreendido como fruto do esforço humano em buscar explicações para o que ainda nos é desconhecido.
O Aparicionista: das memórias do conde de O** (1787-1789, Friedrich Schiller)
Temos acesso aos eventos da obra a partir da narração do conde de O** durante a primeira parte do livro; a segunda, epistolar, é construída por meio de cartas enviadas para ele. No decorrer da narrativa do conde, que segue em viagem com um príncipe para longe de sua corte, somos inseridos em uma festividade veneziana, local em que ambos são perseguidos pelo personagem nomeado como armênio ou oficial russo, responsável por noticiar uma morte ao príncipe:
“Desejai felicidades a vós próprio, príncipe” (aqui ele mencionou o nome real deste). “Ele morreu às nove horas” — Com isso, levantou-se e foi embora.Entreolhamo-nos consternados. — “Quem morreu?”, o príncipe disse por fim, após uma longa pausa.
É durante essa mesma festividade que um fantasma surge por intermédio do personagem denominado de siciliano:
Sobre a chaminé, uma figura humana em camisa ensanguentada e rosto cadavérico surgiu.
Logo após a primeira aparição, ganha espaço uma segunda, não planejada. Mas a evocação feita pelo siciliano se tratou de uma encenação, montada com o auxílio de uma lanterna mágica; posteriormente no local, percebem-se objetos escondidos utilizados para a construção da farsa. O príncipe ainda coloca em cheque a explicação proposta pelo siciliano, preso após ser descoberto enquanto ilusionista, acerca da participação do armênio na construção de seu mistério:
“Leste comigo as notícias mais recentes sobre a doença de meu falecido primo. Estava em um ataque de febre quando uma apoplexia o matou (...) Quando esses paroxismos regressam em condições mais rigorosas e em certas horas, o médico, tendo se decidido sobre o gênero da doença, logo se encontra na condição de indicar a hora da morte. O terceiro paroxismo de uma febre intermitente de três dias ocorre, como sabido, no quinto dia da doença — e é justamente esse o tempo que leva para uma carta de ***, onde meu primo morreu, chegar à Veneza. Suponhamos agora que nosso armênio possui um correspondente atento em meio à comitiva do falecido — que ele tem um vivo interesse em receber notícias de lá (...) O armênio sabia do perigo pelo qual meu primo passava. Ele nos encontrou na Praça de São Marcos. A ocasião convidou-o para fazer uma profecia que, caso desse errado, seria uma mera palavra perdida.”
A postura do príncipe se assemelha à de um detetive quando este realiza uma espécie de inquérito. Conforme Tzvetan Todorov, “a história do inquérito goza, pois, de um estatuto todo particular (...) ela consiste, de fato, em explicar como essa própria narrativa pode ser feita, como o próprio livro é escrito (...) deve não só levar em conta a realidade do livro, mas ela é precisamente a história desse livro” (p. 96-97), de forma que a própria fala do príncipe demonstra a estrutura utilizada para a construção da história, como um recurso metalinguístico.
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Il Ridotto, imagem de capa de O Aparicionista |
A primeira e a segunda parte da obra contrastam entre si: nesta encontramos uma reviravolta na vida do príncipe. Conforme, a princípio, o personagem consegue conduzir seu inquérito guiado pela razão, na seção epistolar observamos seu afastamento da racionalidade por fornecer a ela uma sobrevalorização, seguida por seu desencanto e por seu envolvimento com conspirações políticas e religiosas.
Os personagens não possuem nomes próprios, pois Schiller alude a pessoas reais ao longo do texto, que não chegou a ser concluído; apenas dois dos três volumes do romance receberam finalização. Ao demonstrar o caráter construído de aparições e mistérios, Schiller introduz, em O Aparicionista, um tópico vigente no período da escrita do romance: as discussões sobre superstição e credulidade. O horror existente na obra surge não na forma de elementos sobrenaturais, mas na persistência da crença em fantasmas e maldições, criticada pelo autor por se revelar ainda presente na época da máquina a vapor. O assustador se mostraria não como um espectro, mas na permanência na crença nessa criatura durante a vigência do Iluminismo, em meio a um período histórico de enaltecimento da razão. De forma parecida, o fantasma é retratado em O Necromante.
O Necromante: uma história fantástica de fontes orais e escritas (1792, Lorenz Flammenberg)
A exemplo de O Aparicionista, O Necromante também incorpora duas seções, repartidas entre fontes orais e fontes escritas, que nos são apresentadas na forma de relatos e manuscritos dos próprios personagens. O aspecto que tais fontes partilham é a presença de Volkert, o necromante em questão, e as encenações fantasmagóricas praticadas por ele.
No início dos relatos orais, temos as falas dos amigos Hermann e Hellfried durante um reencontro após um longo tempo de distância entre eles. Com o desenrolar da conversa, Hellfried comenta sobre um certo evento que testemunhou: a aparição de um fantasma e, com isso, seu primeiro contato com Volkert. O comentário feito pelo personagem é a narrativa moldura do romance, estrutura que se caracteriza pela inserção de uma história dentro de outra, de forma que conseguimos visualizar uma narrativa maior composta por outras mais curtas, recurso que também se faz presente em obras como As mil e uma noites.
A aparição que se mostra para Hellfried surge de forma bem parecida àquela descrita em O Aparicionista, incluindo, também, uma preparação do local para a evocação do fantasma.
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Ilustração de O Necromante, contemporânea à 1ª edição. Os círculos de areia no chão fazem parte do ritual para a evocação. |
Hermann, por sua vez, também presenciou um acontecimento similar, porém o fantasma se revelara ao personagem em um castelo de estilo gótico em ruínas. A partir da fala dele, temos a divisão do livro entre relatos orais e escritos, sendo estes formados por manuscritos produzidos pelos personagens que também testemunharam as aparições.
Assim como em O Aparicionista, os fantasmas de O Necromante são frutos de encenações. A explicação acerca das operações necessárias para a “feitura” do espectro é contada pelo próprio Volkert já ao final do romance, fala esta que funciona como um fio que ata os relatos trazidos pelos demais personagens. Sua fala incorpora uma ideia de sobrenatural explicado, conceito abordado por Tzvetan Todorov ao tratar do fantástico em romances:
A dúvida é mantida aqui entre dois pólos, dos quais um é a existência do sobrenatural, outro, uma série de explicações racionais (...) Há, evidentemente, dois grupos de “desculpas”, que correspondem às oposições real-imaginário e real-ilusório. No primeiro caso, nada de sobrenatural aconteceu, pois nada aconteceu: o que se acreditava ver era apenas o fruto de uma imaginação desregrada (sonho, loucura, droga). No segundo, os acontecimentos se produziram realmente, mas explicam-se de modo racional (acasos, tapeações, ilusões) (p. 157).
O Necromante está mais próximo do real-ilusório por apresentar eventos que de fato ocorreram, mas possuem uma explicação que descarta o sobrenatural sugerido em um primeiro momento.
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Saul and the Witch of Endor, imagem de capa de O Necromante. |
O uso do horror no enredo encontra-se atrelado aos assuntos vigentes na época, assim como temos em O Aparicionista, que inspiraria Flammenberg a escrever O Necromante. Neste, o assustador é também compreendido pelo escritor enquanto uma crítica à persistente crença em fantasmas e maldições. Mesmo a preparação do ambiente, feita com o intuito de imprimir verossimilhança à aparição, é uma ilustração das performances que ainda ocorriam no período contemporâneo à publicação original do livro. Essa crítica em torno de superstições incide também sobre Fantasmagoriana.
Fantasmagoriana: antologia de histórias de aparições, espectros, redivivos, fantasmas etc. [1812, Jean-Baptiste Benoît Eyriès (seleção)]
Fantasmagoriana, neologismo que significa algo como uma “coleção de fantasmagorias”, se trata de uma antologia francesa que reúne oito narrativas, originalmente alemãs, sobre fantasmas. O termo alude aos espetáculos que utilizavam lanternas mágicas para criar projeções e ilusões de ótica, exibindo “fantasmas” aos espectadores. Com isso, Jean-Baptiste Benoît Eyriés torna nítida a intenção daquelas narrativas: ser um entretenimento para as pessoas interessadas em espectros; o objetivo não era provar a existência concreta de aparições. O debate já incorporado em O Aparicionista agora era discutido entre quem negava a existência de superstições e quem se interessava por esse tema na arte.
A epígrafe original do livro (Falsis terroribus implet — cheio de falsos horrores, em tradução livre), também nos aponta sobre a intenção da antologia: os leitores estavam cientes do teor ficcional das histórias e o interesse deles estaria muito mais relacionado a uma satisfação em ler contos de horror. A sequência escolhida para as narrativas corrobora com esse ponto: o livro tem início com O amor mudo, noveleta que se baseia em contos maravilhosos da tradição oral e é marcada pela credulidade dos personagens em fantasmas, e tem seu fim com O quarto preto, conto que ironiza e critica abertamente a persistência da crença em assombrações, apresentando explicações que demonstram como o suposto fantasma que assombrava o dormitório não se tratava de algo real. A conclusão do livro é feita propositalmente com uma narrativa marcada pelo ceticismo em relação aos espectros, de forma que, ao longo das histórias, percorremos um caminho que nos leva dos personagens menos questionadores aos mais críticos, como em uma progressão.
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Překopaný hrob, imagem de capa de Fantasmagoriana. |
Também lembramos que Fantasmagoriana inspirou a criação de O Vampiro e Frankenstein. Após a leitura da antologia, Lord Byron, Mary e Percy Shelley, Claire Clairmont e John Polidori participam de uma competição com a intenção de criar a história mais apavorante; cada um dos participantes deveria contribuir com uma produção escrita. Foi esse concurso informal que motivou Mary Shelley a escrever Frankenstein e Polidori a escrever O Vampiro.
Longe de ser percebido como uma criatura real, vemos que as três obras aqui mencionadas se inclinam a demonstrar o caráter construído das aparições. Percebemos, também, que essa maneira escolhida para representar o fantasma se encontra relacionada a questões em pauta no momento de publicação das narrativas. É proveitoso descobrir o contexto originário de uma obra — afinal, uma criação se encontra apoiada em uma rede de elementos que proporcionaram seu nascimento e seu significado —, mas também é bastante satisfatório ler histórias de fantasmas apenas pelo contentamento que elas nos trazem.
Referências
- As estruturas narrativas (Tzvetan Todorov)
- Classificando os monstros, in: Da Natureza dos Monstros (Luiz Nazário)
- Introdução, in: Contos Clássicos de Fantasma (Alexander Meireles da Silva)
- Prefácio, in: Fantasmagoriana ou antologia de histórias de aparições, espectros, redivivos, fantasmas, etc (Cid Vale Ferreira)
- Prefácio, in: O Aparicionista: das memórias do Conde de O** (Cid Vale Ferreira)
- Prefácio, in: O Necromante: uma história fantástica de fontes orais e escritas (Cid Vale Ferreira)
- O Aparicionista: das memórias do Conde de O** (Friedrich Schiller, tradução de Felipe Vale da Silva)
- Sobre a continuação, recepção e alguns conceitos d’O Aparicionista, in: O Aparicionista: das memórias do Conde de O** (Felipe Vale da Silva)
- Tales of the Dead, in: Fantasmagoriana ou antologia de histórias de aparições, espectros, redivivos, fantasmas, etc (Cid Vale Ferreira)
- Um autêntico “romance de calafrio” alemão do século XVIII, in: O Necromante: Uma história fantástica de fontes orais e escritas (Lucas Cartaxo Vieira)
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