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A ousadia de Zora Neale: a reconstrução do meio em Seus olhos viam Deus


Em 1950, Zora Neale Hurston publicou seu ensaio “O que os editores brancos não publicarão” na revista Negro Digest, em que escreveu sobre o mercado editorial da época. Dominado por homens e brancos, havia uma publicação massiva de obras que limitavam populações não-brancas; priorizavam histórias que definissem e encerrassem essas personalidades. Zora defendia as narrativas que trouxessem as emoções de pessoas negras, com todas as suas complexidades, e que se estendessem para além das questões raciais: 

“Mas, para o bem-estar nacional, é urgente perceber que as minorias pensam, e pensam em algo além do problema racial. Que elas são muito humanas e, internamente, de acordo com o dom natural, são exatamente como todos os outros. Enquanto isso não for compreendido, deve permanecer aquele sentimento de diferença intransponível, e a diferença para o homem comum significa algo ruim. Se as pessoas fossem bem feitas, elas seriam exatamente como ele. [...] Que uma grande massa de Negros possa ser tocada pelos desfiles de primavera e outono; pela extravagância do verão e a majestade do inverno. Que possam e experimentem a descoberta dos numerosos rostos sutis, como base para um amor profundo e desinteressado, e as diversas nuances que destroem esse amor, como costuma acontecer com qualquer outra pessoa. Diante do atual estado de coisas, essa capacidade, essa evidência de emoções elevadas e complicadas, está descartada. Daí ́ a falta de interesse em um romance que não gire em torno da luta racial.”

Menciona também os estereótipos criados pela branquitude que refletem na literatura: 

“A resposta está no que podemos chamar de MUSEU AMERICANO DE HISTÓRIA INATURAL. Este é um intangível construído sobre uma crença vulgar. Assume-se que todos os não-Anglo-saxões sejam estereótipos simples. Todo mundo sabe tudo sobre eles. Eles são figuras leigas montadas no museu, onde todos podem tomá-los em um piscar de olhos. Eles são feitos de arames tortos e sem qualquer interior. Então, como alguém poderia escrever um livro sobre o inexistente?”

Na tentativa de compreender e reconstruir o imaginário acerca da população negra da primeira metade do século XX, Zora Neale Hurston embarca nos estudos antropológicos, conseguindo em 1935 o PhD em Antropologia. Valorizando seu ponto de vista até então inovador para o meio literário negro da época, consegue imprimir suas impressões no romance Seus Olhos Viam Deus (1937), se tornando uma obra de relativo sucesso e despertando sentimentos ambíguos nos leitores e críticos contemporâneos de Zora. 

Entre a produção estereotipada da branquitude e a produção que se limita nas problemáticas raciais de negros, Hurston cai no esquecimento por ser uma mulher negra no meio literário que não se rendeu a pressão das tendências vigentes naquele momento. 

Hurston e o Harlem Renascentista 


No início do século XX, há um movimento de negros estadunidenses do sul dos Estados Unidos para o norte, em busca de oportunidades, empregabilidade e menos sofrimento derivado da opressão racial, extremamente sistematizada no sul. Definido como a Grande Migração, ocuparam cidades como Nova York, Chicago e Filadélfia, fazendo com que alguns bairros se tornassem predominantemente negros. O Harlem se tornou um desses bairros, e junto da população que agora dominava o espaço, foi incorporado novas formas de expressão cultural, inserindo novas possibilidades de pensar a arte a partir de um olhar negro e pautado na luta contra o racismo. 

O movimento contemplava as mais variadas expressões artísticas, envolvendo de artistas plásticos a escritores. Revolucionaram a arte ao transformá-la em elementos de protesto explícito contra o racismo. Para a literatura produzida por pessoas negras, era um novo momento: editores se comprometeram com a publicação de livros voltados para a luta contra o racismo e iam mais além ao publicar obras que exaltam a cultura negra. Era um momento de unidade, de crítica a branquitude e de prioridade às questões raciais. O olhar estava voltado para fora; no movimento houve uma secundarização de outras opressões que acometiam a comunidade. 

É no segundo plano que Zora Neale Hurston desenvolve Seus olhos viam Deus. Olha para dentro de sua comunidade e leva para a literatura o que compreende: uma população adoecida pelos reflexos da escravidão, do capitalismo e do racismo, e partindo desses elementos, mostra como as relações se estabelecem entre a população negra. O principal foco de Hurston é a relação entre mulheres negras e homens negros e a posição de subalternidade que as mulheres ocupam dentro de sua própria comunidade. Também falou de relações de poder, do trabalho, e principalmente, do mundo que não dá uma pausa para a compreensão do próprio corpo, da mente, das relações. Esse olhar para dentro apresentado por Zora apareceu para grande parte dos envolvidos no Harlem Renascentista como uma ameaça ao objetivo do movimento de criar uma imagem positiva, produtiva e autônoma da população negra estadunidense. Além de narrar relações conturbadas, recorreu a elementos que os intelectuais consideravam perpetuadores de estereótipos sobre a população negra, como a ambientação da história no sul, bem como a linguagem coloquial utilizada nos diálogos. 


Os homens que participavam do Renascimento do Harlem teceram críticas diretas a Hurston, como lembrado por Mary Helen Washington no prefácio da segunda edição do romance: 

“Críticos negros homens foram muito mais duros na avaliação do romance. Desde o início de sua carreira, Zora foi severamente criticada por não escrever ficção na tradição de protesto. Sterling Brown disse em 1936, sobre seu livro anterior, Mules and Men, que não continha raiva o suficiente [...] que Zora fazia a vida negra e sulista parecer fácil e despreocupada. Alain Locke, decano dos eruditos e críticos negros durante o Renascimento do Harlem, escreveu em seu balanço anual da literatura para a revista Opportunity que Seus olhos… estava simplesmente fora de passo com as tendências mais sérias da época. Perguntava quando Zora pararia de criar 'esses pseudoprimitivos dos quais o público ainda gosta de rir [...] e abordar a ficção de motivo e de documento social'.”

Zora fez muito mais do que levantar pautas opressivas que poderiam ser interpretadas como algo negativo e inerente aos negros. Se arriscou a descrever a natureza humana dentro de sistemas; elaborou uma sutileza narrativa que, em determinados momentos, pode-se dizer que transcende as barreiras do bem e do mal. Na tentativa de não aprisionar seu romance em tendências, sofreu com as críticas de pessoas do próprio movimento e da sociedade literária em geral, deixando de lado os romances e se dedicando aos seus estudos sobre folclore afro-americano e caribenho, onde recebia pelas pesquisas. Quando essas pesquisas pararam de ser patrocinadas, Zora se viu prejudicada financeiramente, já que não possuía renda a partir da venda de livros. Passou a trabalhar como doméstica na Flórida, e ao passar por variados problemas de saúde, faleceu em 1960, precisando da ajuda de vizinhos para a realização do funeral. Em 1973, Alice Walker, autora de A Cor Púrpura, entra em contato com a escrita de Hurston, iniciando uma busca por sua lápide. Mais tarde, descobre que a autora foi enterrada como indigente em uma cova comum, sem direito a uma lápide. Compreendendo a necessidade de resgate de autoras como Zora Neale Hurston, manda fazer uma lápide que contemple a grandiosidade da autora:

“Em 1973 junto com uma amiga, voa até Eatonville na Flórida e, após se fazer passar por sobrinha de Zora, conseguiu chegar até o local onde ela havia sido enterrada, então em total abandono. Após limpar o local, manda fazer uma lápide em homenagem a sua inspiração com os seguintes dizeres: Zora Neale Hurston, 'A genius of the South', Novelist Folklorist 1901-1960.”

O glorioso retorno de quem nunca esteve aqui 


Seus olhos viam Deus conta a história de Janie Crowford, uma mulher negra que resolve trilhar um caminho considerado subversivo na Flórida de 1930. A construção de Janie é a nível de Zora: a personagem viveu o que designou correto viver; desenvolveu uma compreensão da própria complexidade e a partir disso, ditou os próprios passos ao longo da vida. 

O primeiro capítulo do livro descreve o retorno de Janie ao local em que morou no período de duração de seu segundo casamento. Todo o romance se desenvolve quando Janie volta para a cidade e para a casa que morou com o seu marido da época, Joe Starks. Ao entrar em contato com uma das poucas amizades que tem na cidade, Janie compartilha suas aventuras e aflições como justificativa para o que a levou até aquele momento. O narrador inicia contando o que nos seria informado no final da narrativa: um grande furacão assola a cidade onde Janie morou com o seu terceiro companheiro, Tea Cake: 

“Assim, tudo começou com uma mulher, que voltava de enterrar os mortos. Não mortos por doença, que haviam agonizado com amigos à cabeceira e aos pés da cama. Voltava dos encharcados e inchados; a morte súbita, os olhos arregalados em julgamento.”

Nesse momento, Janie se depara com seus antigos vizinhos e comentários maldosos por retornar a um local de onde fugiu. Entretanto, sua atitude é não reagir e recebe sua melhor amiga em casa, onde relata os acontecimentos desde a infância. É como se o olhar de seus vizinhos fosse banal perto dos olhares das pessoas mortas no furacão que enfrentou. O olhar da vida se encerrando; da vida escorrendo junto da água. Toda a sua vivência dá uma nova roupagem àqueles olhares. A maturidade vem do sofrimento. Estar ali não é perca, pois a Janie que retorna adquire uma nova forma de enxergar a vida. É uma história sobre olhares: o olhar para trás, o olhar para o presente que já não a assusta, o olhar para si mesma. E talvez essa compreensão seja o que permitiu a liberdade de contar para a amiga a história com uma percepção menos agressiva sobre a própria existência. Assim, Janie inicia a sua história contando sobre a sua infância, e a encerrando no momento da morte de seu terceiro companheiro, Tea Cake. 

Um dos principais pontos da narrativa é o lugar de Janie enquanto negra. Durante a infância, Janie não se reconhecia negra: 

“Eu vivia tanto com os menino branco que só soube que num era branca com seis ano. E nem aí ia descobrir, não fosse um homem que apareceu lá tirando retrato, e Shelby, o mais velho, sem pedir a ninguém, mandou ele tirar o retrato da gente. Uma semana depois o homem trouxe o retrato pra dona Washburn vê e pagar, e ela pagou, e deu uma boa pisa na gente. Aí, quando a gente viu o retrato e apontou todo mundo, só ficou faltando uma menininha pretinha pretinha, com os cabelo em pé, ao lado de Eleanor. Devia de ser eu, mas eu num me conheci naquela menina preta. Aí perguntei: ‘Onde é que eu tô? Eu num tô me vendo aí!’ Todo mundo riu, até Seu Washburn. Dona Nellie, mãe dos menino, que voltou pra casa depois que o marido morreu, apontou a pretinha e disse: ‘Essa aí é você, Alfabeto, será que não conhece você mema?’ Todo mundo me chamava de Alfabeto, porque muita gente tinha me dado um bocado de nome diferente. Fiquei olhando um tempão pro retrato e vi que era meu vestido e meus cabelo, e aí disse: '— Oh, oh! Eu sou preta!' Aí foi que eles riu memo. Mas antes de ver o retrato eu achava que era igual aos outro.”

Mais adiante, ao entrar em contato com a Sra. Turner, uma vizinha de quando morou com seu terceiro companheiro, Tea Cake, Janie é colocada em outra classificação, dessa vez dentro da comunidade:

“Mas a Sra. Turner aprovava inteiramente suas formas e feições. Tinha o nariz um pouco pontudo, e era orgulhosa. Os lábios finos davam um eterno prazer a seus olhos. Mesmo as nádegas em baixo relevo eram motivo de orgulho. No seu modo de pensar, todas essas coisas a distinguiam dos negros. Fora por isso que procurara a amizade de Janie. A cor que lembrava a do café com leite de Janie e seus abundantes cabelos faziam a Sra. Turner perdoá-la por andar de macacão como as outras que trabalhavam nos campos. Não a perdoava por casar-se com um sujeito escuro como Tea Cake, mas achava que podia dar um jeito. Para isso nascera seu irmão. Ela raras vezes se demorava muito quando encontrava Tea Cake em casa, mas quando acontecia de passar e pegar Janie sozinha, ficava horas conversando. O assunto que ela mais detestava eram os negros.”

Há na narrativa de Janie esses dois momentos de classificação da comunidade negra. O primeiro é a retirada da pessoa negra do local de igualdade. Inserir na dinâmica social discriminatória; normalizar a branquitude e tornar exótico o negro. Causar estranhamentos e desconfortos sobre a própria estética. Já no segundo momento, Janie escala uma montanha de privilégios dentre os seus. A pele negra mais clara equivale a passabilidade, a uma posição elevada dentro da comunidade. Sugere também a subalternidade da pele retinta; uma estruturação de privilégios. 

Zora desenvolveu a jornada de Janie de dentro de relacionamentos. Passa por três parceiros até o final da narrativa: o primeiro, com quem casou na adolescência, Logan Killicks; Joe Starks, com quem foge após o descontentamento com o casamento com Logan; e Tea Cake, com quem passa a viver após o falecimento de Starks. O crescimento emocional de Janie parece um movimento feito à força; todos os seus parceiros agiram de modo a podar e moldar sua personalidade a deles. Com Logan e Joe, Janie cresce de tal maneira que chega a romper padrões, resultando na fuga para o novo, para a experimentação. O comportamento nada submisso de Janie, que se expressa através de pequenas atitudes desafiadoras, faz com que apareçam campos de batalhas em seus relacionamentos, nos quais os homens se sentem constantemente ameaçados por ela, mesmo a personagem não exigindo grandes feitos. É a percepção de que pequenos gestos afetam a virilidade e a masculinidade. Os três homens com quem se relacionou culparam Janie por todas as dificuldades e misérias que passaram na vida, como se a humanidade feminina fosse a ruína masculina. Um dos contrastes mais significativos da narrativa se apresenta na negação da hierarquização que se estabelece na comunidade. A avó de Janie estabeleceu como meta afastar a neta de situações degradantes, e na sua visão, isso era alcançado através do casamento: 

“— Num é Logan Killicks que eu quero que ocê aceite, menina, é proteção. Eu num tô ficando velha, querida, eu já tô velha. [...] Eu num queria ser usada que nem boi de carga ou porca parideira, e também num queria que minha filha fosse. Num foi por minha vontade que tudo saiu que nem saiu. Eu odiei até o jeito de ocê nascer. Mas mesmo assim dei graças a Deus, tinha outra chance. Eu queria fazer um grande sermão sobre as preta que tá lá no alto, mas num tinha púlpito. A liberdade me encontrou com um bebê nos braço, por isso eu disse que ia pegar uma vassoura e uma panela e abrir uma estrada real pra ela no meio do deserto. Ela ia dizer o que eu pensava. Mas de um jeito ou de outro ela se perdeu da estrada real, e quando eu menos esperava lá tava ocê no mundo. Por isso, enquanto eu cuidava de ocê de noite, eu disse que ia guardar as palavra procê. Esperei muito tempo, Janie, mas nada que eu passei foi demais, se ocê tomar um lugar lá no alto que nem eu sonhei.”

Em algum momento de sua vida, Janie consegue esse lugar de suposta superioridade. Seu segundo marido, Joe Starks, é um homem que consegue se tornar bem-sucedido financeiramente, e assim, consegue organizar a vida da cidade onde moram ao seu redor: 

“Joe tinha alguma coisa que intimidava a cidade. Não se tratava de medo físico. Ele não era nenhum valentão. Não tinha nem um vulto imponente para um homem. Nem era por ser mais alfabetizado que os outros. Uma outra coisa fazia os homens cederem diante dele. Tinha um poder de comando no rosto, e cada passo que dava tornava isso mais tangível. Vejam, por exemplo, a nova casa dele. Tinha dois andares com varandas, balaustradas e essas coisas. O resto da cidade parecia um conjunto de quartos de criados cercando a 'casa grande'. E ao contrário de todos os demais na cidade, ele adiou a mudança até que a casa estivesse pintada, por dentro e por fora. E vejam a maneira como pintou — um branco brilhante, faiscante. O tipo de branco esplanada que tinham as casas do bispo Whipple, W. B. Jackson e os Vanderpool. Fazia a vila sentir-se pouco à vontade para falar com ele como com qualquer outra pessoa. Depois houve a questão das escarradeiras. Assim que se instalou como prefeito, agente dos correios, lojista, ele comprou uma escrivaninha como a do Sr. Hill ou Sr. Galloway lá em Maitland, com uma daquelas cadeiras giratórias junto. Mordendo o charuto, poupando o fôlego na conversa e girando naquela cadeira, deixava as pessoas tontas. E depois cuspia naquele vaso que parecia de ouro, que qualquer outro ficaria feliz em pôr na mesa da sala de visita. Dizia que era uma escarradeira igual à que o antigo patrão tinha em seu banco lá em Atlanta. Não precisava se levantar e ir até a porta toda vez que tinha de cuspir. E não cuspia no chão. Tinha o vaso dourado ali à mão. Mas foi além disso. Comprou uma escarradeirazinha de senhora para Janie cuspir dentro. Pôs bem na sala de visitas, com talinhos de flor pintados em toda a volta. Isso surpreendeu as pessoas, porque a maioria das mulheres mascava fumo e, certamente, tinha uma caneca para cuspir em casa. Mas como podiam saber que as pessoas modernas cuspiam em coisinhas floridas como aquela? Isso deixou-as sentindo-se como se houvessem sido enganadas. Como se houvessem escondido alguma coisa delas. Talvez houvessem escondido mais coisas do mundo que vasos de cuspir, quando não lhes diziam que não deviam cuspir em latas de massa de tomate. Já era bastante ruim quando se tratava dos brancos, mas quando um da nossa própria cor podia ser tão diferente, isso fazia a gente ficar imaginando. Era como ver a irmã da gente virar um jacaré. Uma aberração conhecida. A gente continua vendo a irmã no jacaré, e preferia não ver. Não havia dúvida de que a cidade o respeitava e até admirava, de certa forma. Mas qualquer um que entra no poder e na posse de bens tem de enfrentar ódio.”

Além do controle geográfico da pequena cidade, havia o controle passivo-agressivo de seus habitantes: 

“— A gente sente a chibata na mão dele quando ele fala com a gente — queixou-se Oscar Scott. — Essa mania de castigar dele dá coceira na pele da gente. — É um redemoinho no meio dos vento — interveio Jeff Bruce. — Por falar em vento, ele é o vento e nós o mato. A gente se curva pra todo lado que ele sopra — concordou Sam Watson —, mas a gente precisa dele. A cidade num era nada se num fosse por ele. Ele pode ser tirado a mandão. Tem gente que precisa de trono, cadeira de mando e coroa para impor influência. Ele tem um trono nos fundilho das calça. [...] — O que eu num gosto no homem é que ele fala com gente analfabeta como quem tem livro nos dente — queixou-se Hicks. — Arrotando cultura. [...] A cidade tinha uma carrada de bons e maus sentimentos em relação à posição e às posses de Joe, mas ninguém se atrevia a contestá-lo. Preferiam curvar-se diante dele, porque era tudo isso, e também ele era tudo isso porque a cidade se curvava diante dele.”

Entretanto, todo o suporte financeiro de Joe Starks tem um preço: Janie está constantemente sendo afastada de seus iguais; passa anos de sua vida sendo empurrada para a solidão. E enfim, se vê afastada de Joe quando o ego de seu marido precisa de manutenção constante para que não perca o controle de tudo o que construiu. Janie precisa se reconstruir no isolamento, e lá percebe a vida para além dos desejos de sua avó: 

“— É uma coisa de amor. Eu já vivi do jeito da Avó, agora quero viver do meu.
— Quê que ocê quer dizer, Janie?
— Ela nasceu nos tempo da escravidão, quando as pessoa, quer dizer, os preto, num se sentava quando queria. Por isso se sentar nas varanda que nem a sinhá branca parecia uma coisa pra lá de boa pra ela. Era o que ela queria pra mim, por cima de pau e pedra. Se sentar num trono e ficar lá. Ela num teve tempo de pensar no que fazer depois de subi no tamborete. O negócio era subir lá. Por isso eu subi no tamborete alto que nem ela mandou, mas Pheoby, eu quase morri murcha lá em cima. Achava que o mundo tava gritando as notícia extra e eu num tinha lido nem as comum.”

Retornando ao prefácio da segunda edição do romance, podemos resgatar um trecho essencial do texto de Mary Helen Washington: 

“A linguagem dos homens em Seus Olhos… é quase sempre divorciada de qualquer espécie de interioridade, e eles raramente são mostrados em processo de crescimento. A conversa deles é ou um jogo ou um método de exercer poder. A vida de Janie trata da experiência dos relacionamentos, e enquanto Jody, Tea Cake e todos os outros homens que falam são em essência personagens estáticos, Janie e Pheoby dão mais atenção à sua vida interior - a experiência - por ser o local para o crescimento.”

Tomando essa perspectiva para analisar o romance de Zora, percebemos essa marca nos personagens masculinos, excedendo os três principais protagonistas. Há a naturalização de violências domésticas, um olhar redutor para o corpo feminino. Além disso, há o reflexo no pensamento das mulheres quando percebem a reação de Janie ao que sempre conheceram. Zora Neale Hurston trata a literatura como um instrumento com diversas finalidades, entre elas a denúncia, o despertar de um olhar atento à própria comunidade e o olhar cuidadoso e humano de mulheres negras para mulheres negras. Hurston se movimentou dentro das possibilidades do mundo literário estadunidense para construir um romance sobre uma mulher negra que cresceu e se compreendeu dentro das possibilidades.

Referências 


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