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A Ânsia Eterna da escrita de Júlia Lopes de Almeida


Júlia Lopes de Almeida foi uma autora carioca nascida em 1862 com produção literária e jornalística vasta durante o século XIX e parte do XX. Vinda de uma família de imigrantes portugueses com boas condições de vida, ela nasceu em uma época onde escrever não era considerado um ofício; mulheres não eram reconhecidas em suas devidas profissões e a educação era dada a poucas. E é sobre seu livro Ânsia Eterna e seu interesse pela escrita e pelo insólito da vida cotidiana de que falaremos hoje. 

Julia teve o privilégio de ter uma edução formal bastante completa. Seu pai além de médico era também dono de uma escola, e desde nova ela tinha uma inclinação para a escrita. Em uma entrevista dada a João do Rio, ela conta: 

“Pois eu em moça fazia versos. Ah! Não imagina com que encanto. Era como um prazer proibido! Sentia ao mesmo tempo a delícia de os compor e o medo de que acabassem por descobri-los. Fechava-me no quarto, bem fechada, abria a secretária, estendia pela alvura do papel uma porção de rimas... [...] A mim sempre me parecia que se viessem a saber desses versos, viria o mundo abaixo.”

Seu pai era colaborador de diversos jornais, e depois de descobrir que sua filha gostava de escrever, ajudou Julia a publicar sua primeira crônica sobre a atriz Gema Cuninbert, na Gazeta de Campinas. Esse foi só o primeiro passo de uma carreira prestigiada como colaboradora de jornais como O Paiz, A Gazeta de Notícias e diversos outros voltados para um público composto por mulheres, como A Mensageira, Única, O Quinze de novembro e Kosmos.

Considerada um ícone literário na sua época, Julia escreveu com sua irmã livros infanto-juvenis e diversas ficções. Ela também participou desde muito jovem, e mais ativamente na vida adulta, de várias rodas com intelectuais. É a partir desse contato que a história dela se junta com a criação da Academia Brasileira de Letras. Conta-se que é no Salão Verde, apelido do local onde ela morava com o marido em Santa Tereza, que a ideia da ABL surge e cria suas bases.

Nessa época de 1880/1890, escritores não tinham nenhuma instituição representativa, tampouco sua profissão considerada como um ofício. Foram-se criando Grêmios de Letras e Artes, uma Sociedade Brasileira dos Homens de Letras (onde começa-se um movimento de demanda pela regulamentação de direitos autorais), o Chá das 5 na Rua do Ouvidor n° 31 e as reuniões no Salão Verde. Todos esses encontros reuniam jornalistas e literatos em busca da institucionalização de sua classe e melhorias das condições de vida. As mulheres eram vetadas desses encontros, sendo relegadas ao ambiente doméstico e maternal. Por Julia ter um histórico de sociabilidade bastante intenso com esse ambiente, ela chegou a ser cogitada como membra fundadora da ABL, porém, não foi aceita, sendo esse posto ocupado pelo seu marido e também escritor Filinto de Almeida.

A ABL teve uma formação enquanto instituição bastante inspirada em seu irmão francês, e buscava, além dos pontos já mencionados, a institucionalização de uma linguística unificada e a formulação de regras de uso de linguagem e estrutura de discursos. Aqui no Brasil também herdamos por muito tempo a recusa em aceitar mulheres escritoras. Desde sua formação há mais de cem anos, apenas sete mulheres ocuparam uma cadeira nesse hall.

Há diversas questões complicadas sobre a ABL que não caberiam neste texto, mas vale ressaltar que se no recorte de gênero já podemos sentir uma diferença enorme, ao entrarmos no campo da etnia fica ainda pior, pois até o momento foram eleitos apenas três pessoas negras na instituição: Machado de Assis, presidente fundador em 1887, Dominício Proença Filho e Gilberto Gil. A escritora Conceição Evaristo chegou a fazer campanha para concorrer à cadeira de Imortal da ABL, mas foi recusada.


Mais tarde, Julia Lopes se tornaria patrona da Cadeira 26 da Academia Carioca de Letras. Sua carreira literária também foi muito próspera no mercado francês e português, onde até hoje a autora é estudada. Com diversos contos publicados, há um livro com toques naturalistas e insólitos bastante presentes, o Ânsia Eterna. Lançado em 1903, esse livro traz elementos da literatura fantástica para os trinta contos que nele estão reunidos. 

Um dos seus contos é O caso de Ruth, no qual a temática da pureza e a violação da mesma aparecem como tema central. Ruth é prometida pela família para casar, mas conserva dentro de si certa frieza nos modos que ninguém entende muito bem. No final do conto, descobrimos que a moça guarda um trauma de ter sido violada pelo padrasto e não era mais virgem, o que a leva a um trágico suicídio. Apesar da família culpá-la por isso, é interessante encontrar na voz de Ruth que apesar de sentir alguma culpa por “não ser mais pura”, ela entende que o que aconteceu foi uma violência, algo não consensual.

“É isto a minha vida. Cedi sem amor, pela violência, mas cedi.”

Em As Rosas, o final é ainda mais trágico. Um pai ao receber a filha que sofreu agressão do marido, mas ainda o ama e não quer voltar para a proteção da casa paterna, é assassinada por ele em um momento de raiva. Ele rouba todas as rosas do canteiro de flores da propriedade onde trabalha e as estende no corpo da falecida, tentando fazê-la parecer como a Nossa Senhora. 

O conto Valsa da Fome é sobre o pianista Hippolyto, que após a morte de sua irmã não consegue processar o luto muito bem, parando de tocar seu instrumento e perecendo para as condições de vida cada vez mais difíceis. Sua arte era seu alimento, mas sem ela Hippolyto se apaga. Até que é convidado para tocar em uma festa de pessoas ricas, onde recebe a promessa de poder se alimentar e conseguir comprar uma roupa que casasse com a ocasião. O pianista começa a tocar, e a escrita de Júlia Almeida consegue canalizar todos os sentimentos para aquele momento, aquele fluxo onde há fome e fraqueza no corpo do pianista, mas ao mesmo tempo há essa ânsia pela arte, pela música. Do ápice musical de uma valsa ao desligamento de um corpo subnutrido.

Esses são apenas três de diversos contos que vão abordar temáticas ao mesmo tempo muito reais, como o estupro, a agressão contra a mulher, o aborto, e também insólitas e horríficas, como é o caso de Os porcos, em que os animais são o elemento de terror que é descrito de maneira a causar estranheza e medo.

“[...] arrastando no barro os corpos imundos, de pelo ralo e banhas descaídas, com o olhar guloso, luzindo sob a pálpebra mole, e o ouvido encoberto pela orelha chata, no egoísmo brutal de concentrar em si toda a atenção.”

Tanto em As Rosas quanto em O caso ou Os porcos, figuras masculinas tendem a ser essa fonte de monstruosidade, exercendo nessas mulheres um poder de escolha sobre as suas vidas, mortes, ou sendo fonte de traumas.

De certa maneira, muito do que a autora escreve expõe fraturas do que era o tratamento dado às mulheres na época, de exclusão, de necessidade de ser pura e ter sua virgindade questionada e avaliada, de ser mãe e pessoa que cuida da casa, entre outros papéis. Talvez o que capture mais nesses contos é a forma como essas temáticas são trabalhadas, seja no seu aspecto de escrita, seja nessa vertente que traz o insólito e o estranho para o lugar de destaque. Esse local é a área cinza onde o real, o estranho e o bizarro se encontram, e Júlia Lopes faz das suas criações um lugar fantástico. 

Referências 

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