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O mito e a crença celta em "A um deus desconhecido", de John Steinbeck

O renomado escritor estadunidense John Steinbeck, ganhador do Pulitzer,em 1940 e de um Nobel de literatura em 1962, é uma das figuras mais queridas da literatura do século XX. Desde livros muito extensos até contos, de histórias com alusões bíblicas e outras banidas em escolas nos EUA e em alguns outros países, o autor explorou temas de amor, morte, pobreza, depressão e sempre incorporou temas místicos, geralmente cristãos. Mais conhecido por obras como Ratos e Homens e As vinhas da ira, teve, no começo de sua carreira, alguns romances que ficaram esquecidos ou que não foram bem recebidos. Dentre eles, uma de suas obras mais místicas, obscuras e até um pouco assustadoras foi A um deus desconhecido, seu terceiro romance, publicado em 1933. Nele, apesar de já mostrar suas alusões cristãs, Steinbeck explorou a misticidade de outras crenças e mitos, coisa que não voltou a fazer com a mesma força posteriormente.

A começar, o romance deriva seu nome de um dos Vedas, textos sagrados do hinduísmo que se supõe que possam ter sido transmitidos desde 2000 a.C.. Os Vedas são constituídos de mantras usados como hinos, orações, encantamentos, rituais etc. O “A Um Deus Desconhecido” nos Vedas se encontra na Mandala 10, hino 121: 

He who gives breath, he who gives strength, whose 1 command all the bright gods revere, whose shadow 2 is immortality, whose shadow is death:—Who is the God to whom we shall offer sacrifice? 

“Ele que dá o respiro, ele que dá a força, cujo o comando todos os sábios deuses reverenciam, cuja a sombra é imortal, cuja a sombra é morte: Quem é o Deus para quem ofereceremos sacrifício?” [tradução livre]

O mantra védico foi escolhido por Steinbeck para abrir o romance como a epígrafe, e a leitura e compreensão de tal mantra é essencial para a obra, que deriva muitos de seus temas dessa passagem, deixando clara a inspiração e alusão feitas pelo autor deliberadamente. Mas nas entrelinhas dessa trama carregada de tensão mística, na qual o homem quer desafiar a natureza ao mesmo tempo que quer cultuá-la como um deus, outro mito se faz muito presente na história e simbologia do romance: o mito celta. Este acaba sendo um pouco deixado de lado nas interpretações do texto, que recorrem mais aos estudos do hinduísmo e do cristianismo, os quais poderiam ter cada um uma análise mais profunda de suas alusões. Porém como é o mito celta o mais escondido nas entrelinhas, tratemos um pouco de como ele aparece no romance. 

Na história, seguimos a saga de Joseph Wayne para encontrar a sua satisfação por terras e pela natureza que tanto deseja para si. Quando o pai está velho, prestes a falecer, Joseph vai para tomar sua benção e pedir que o pai se mude com ele para a propriedade nova, adquirida no terreno fértil e paradisíaco da Califórnia, que não poderia faltar em um conto de Steinbeck. Quando o pai recusa, dizendo que “irá seguir com ele depois”, Joseph parte para sua vida nova. Em sua nova fazenda, recebe a notícia do falecimento do pai, mas passa a crer que o espírito do progenitor se instalou no grande e imponente carvalho que se encontra no meio de sua propriedade, e então se convence de que seu pai se tornara um tipo de entidade com a terra, um deus. Joseph passa a fazer oferendas e sacrifícios ao carvalho, ao seu pai, e nessa crença sua terra prospera.

Os irmãos de Joseph se mudam para a fazenda com suas famílias, Joseph se casa, e a terra e a família crescem como nunca se viu. As chuvas vêm no momento certo, os gados são bonitos, saudáveis e procriam bem. Todos têm excelente saúde e alimento, mas nem todos estão felizes com isso. Ao descobrir uma pequena gruta em uma pedra no meio de uma clareira na floresta de sua propriedade, Joseph tem visões com animais e sua crença se confirma: aqueles são lugares sagrados na natureza, e ele foi escolhido pelos deuses para cuidar daquele lugar. A gruta e o carvalho tornam-se sua devoção mais profunda à terra, e a natureza lhe dá tudo que ele quer em troca dessa devoção. Quando um dos irmãos de Joseph, Burton, se revolta contra as inclinações pagãs do irmão, ele mata o carvalho e deixa a pequena comunidade. Com isso, a natureza sangra e se revolta, e caos e morte se espalham por toda a terra e toda a família. 

O mito celta incorporado 

Um dos primeiros elementos do mito celta que se apresenta no livro é o espírito do pai que faz morada no carvalho. Acredita-se que os espíritos dos ancestrais dos celtas residem nas árvores sagradas para fazerem sua comunhão com a terra e se tornarem parte dela, de forma que intercedem por sua família e trazem prosperidade. O carvalho em si é muito importante para os celtas, é a árvore mais sagrada do credo. O termo “druida”, atribuído aos mestres e sacerdotes celtas, é derivado de “dru”, nome celta do carvalho, fazendo do druida “o que tem o conhecimento do carvalho”. Além de ser a árvore do conhecimento, com raízes tão profundas que chegam ao submundo e folhas tão altas que tocam os deuses nos céus, pode ser visto como uma ponte que conecta os três mundos através da natureza e é também muito atingida por raios (provavelmente por sua altura), e nisso toda sabedoria da natureza estaria contida nela.

Os celtas eram animistas, ou seja, acreditavam que tudo na natureza possui um espírito próprio e que tudo que nela existe tem um espírito também. Quando Joseph chega no vale de Nossa Senhora, sente uma energia feminina na terra, algo que pode se relacionar com Danu, deusa celta da terra e a mais importante do panteão. 

“O caminho foi pela longa floresta nas margens do rio. Enquanto cavalgava, Joseph se tornou tímido e ao mesmo tempo ansioso, como um jovem homem que se envolve em um flerte com uma sábia e bela mulher [...] Havia uma curiosa feminilidade sobre o entrelaçamento dos galhos, sobre a longa caverna verde que cortava o rio pelas árvores e pelo belo arbusto.” 

[tradução livre]

Em um estudo sobre o simbolismo nos romances de Steinbeck, Emnett escreve (em tradução livre):

“Com a intenção de proteger as aves do celeiro, ele (Joseph) pendura falcões mortos no carvalho- um costume antigo ainda praticado por apalachianos (nativos do norte dos Estados Unidos da América) [...] Outro movimento Druida foi o derramar do vinho no tronco do carvalho e colocando carne nos galhos durante uma festa. Quando seu primogênito nasce, Joseph também coloca o menino nos braços do carvalho, acreditando que ele não iria o deixar cair.”

Uma das deusas mais conhecidas e temidas do mito celta, Morrigan, é associada com a guerra e com o conhecimento oculto. Mas Hebert argumenta o papel da deusa como protetora e patrona da terra, além da habilidade de metamorfose que ela usa para se transformar em variados animais, tendo corvos e algumas outras aves como suas principais escolhas, o que nos mostra que é possível que as aparições de aves, gados e também os supostos espíritos na floresta sejam uma manifestação da deusa na terra de Joseph. Sobre o papel da deusa com a natureza, Hebert escreve (em tradução livre):

“Ela (Morrigan) tem características de guardar a terra. Ela a vigia, e ao seu gado, e sua sociedade. Sua capacidade de metamorfosear-se é uma expressão da sua afinidade com toda a terra vivente.”

Ela é também uma deusa da fertilidade, o que possibilitaria a abundância dada à terra. Para além disso, Morrigan é conhecida por sua impetuosidade e temperamento forte. A punição que Joseph e sua família recebem quando Burton mata o carvalho sagrado, com as mortes na família, no gado, e na terra que seca cada vez mais com a falta de chuvas, é passível de ser uma punição dos deuses, mas principalmente de Morrigan, que, mesmo estando disposta a ajudar com a terra, não admitiria tal traição. 

Apesar disso tudo, Joseph permanece fiel ao seu culto à natureza. Ele segue na propriedade, mesmo que a seca tenha tomado conta e todos os seus parentes tenham ido embora. Sozinho e sem o amparo dos deuses, ele sofre as consequências de sua própria teimosia. Em um momento final, ele se entrega ao seu destino e se torna tudo aquilo que mais esperava, com um salpicado de mito cristão. Anteriormente, ele já havia sido comparado com Jesus Cristo por parentes e amigos, por sua aparência e forma como dominava tudo e todos ao seu redor com sua personalidade patriarcal, salvadora e “milagrosa”. Nesse momento, ascendendo de corpo e alma, ele não se torna um deus, mas sim parte definitiva da natureza, como seu pai se tornara o carvalho; Joseph se torna a chuva, que era o que ele desejava para sua terra:

“Então seu corpo cresceu, se tornando enorme e iluminado. Ele ascendeu até o céu, e dele veio a forte chuva. ‘Eu deveria saber’ ele sussurra. ‘Eu sou a chuva.’ E ainda assim ele olhava como um bobo para as montanhas de seu corpo onde as colinas caiam para um abismo. Ele sentiu a chuva, a escutou descer e atingir o chão. Ele viu suas colinas úmidas escurecerem. E então uma dor severa atravessou o coração do mundo. ‘Eu sou a terra’, ele disse, ‘e eu sou a chuva’. A grama crescerá de mim em algum tempo.”

[tradução livre]

Depois de tantas tentativas de comunhão com a terra, Joseph se torna parte dela, como seu pai antes dele e como seus ancestrais, que há muito já guardavam suas terras e sua família. O conflito de crenças em A um deus desconhecido leva a um certo medo de estar do lado errado da crença, mas o que Steinbeck parece querer mostrar é que não importa a crença, o respeito pela natureza deve sempre prevalecer. Joseph busca se tornar um deus sem perceber que seu espírito já estava destinado a viver com a terra e a interceder pelos que viriam. Pelo menos, de acordo com os celtas, Joseph agora poderia verdadeiramente olhar por sua terra. 

Pode parecer estranho atribuir acontecimentos naturais e sobrenaturais na Califórnia aos deuses que “viveriam” do outro lado do oceano, mas além de essa ser uma leitura das possíveis influências de Steinbeck na criação de seu mundo, é também uma forma de percebermos que apesar das distâncias e discrepâncias de crença a terra é uma só, e ela vive e busca sua justiça, de forma consciente ou não. 

Referências

  • A um deus desconhecido (John Steinbeck)
  • Transmutations of an Irish Goddess (Marie Hebert)
  • A study of the symbolism in three novels of John Steinbeck: To A God Unknown, The Pearl, and The Winter of Our Discontent (Ruth Bradbury Emnett) 



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