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Lestat de Lioncourt: a arte de ser um vampiro

Nos anos de 1980, uma criatura adormecida debaixo da terra desperta de sua hibernação após sentir através do solo os sons e batidas de instrumentos musicais. O conjunto de guitarra, baixo, bateria e vocal fazem com que aquela criatura, que há muito tempo decidiu se retirar da sociedade — tanto a dos monstros quanto a dos humanos —, desejasse voltar a viver sua imortalidade. Após despertar, ela conseguiu se adaptar facilmente à vida no século XX e se encontrou fascinada pelas mudanças que o mundo sofreu em todas as áreas enquanto permanecia adormecida para curar suas próprias feridas. O mundo em que nasceu há séculos não existia mais, e estava tudo bem; na verdade, aquela criatura sempre conseguiu se adaptar bem às mudanças, principalmente no que dizia respeito a sua humanidade há tanto tempo perdida, mas que ainda fazia parte de seu mais íntimo ser.

Em pouco tempo, a criatura se adaptou ao novo mundo que encontrou, afinal, teria de viver nele, e sentar, chorar e lamentar pela sua vida que não mais existia não em seus planos. Logo, a criatura se tornou vocalista da banda que o fez despertar, e em pouco tempo seria responsável por despertar com sua música mais uma vez uma deusa viva que também permanecia adormecida. Ao encontrar um exemplar de livro com o incomum título Entrevista com o vampiro, a criatura descobre que já é famosa no século XX, mas pelos motivos errados. Ao ler os relatos de um antigo companheiro sobre as décadas que partilharam juntos, a criatura decide fazer o mesmo, mas desta vez contando o seu lado da história. E assim começa a grande jornada de Lestat de Lioncourt, que de vilão se torna o herói de sua própria história e delicia o leitor com a arte perdida de ser um vampiro.

A arte como condutora da vida eterna

É possível viver em um mundo sem arte? Como seria o mundo sem que tivéssemos a oportunidade de vivenciar, consumir e respirar essa parte tão importante de nossas vidas? A arte reside em todos os lugares e em diversas formas: música, cinema, artes plásticas, teatro, literatura. Como seres humanos, precisamos de um combustível para continuar vivendo em realidades tão diversas e formas distintas de enxergar a vida, e a arte conecta a humanidade e traz leveza ao dia a dia, desde colocar fones de ouvido enquanto se viaja no transporte público, assistir a um espetáculo de música clássica em um grande teatro, ou um show tão esperado de sua banda preferida. A batida e os ritmos da melodia conseguem alcançar o coração de quem os escuta e também os sente, e faz com que, assim como Lestat, se sinta o desejo de despertar para o mundo novamente, ou em muitos casos se desligar dele. E quando a arte se torna não apenas parte de sua vida, mas combustível essencial para sua existência? É nessa perspectiva que entram os vampiros.

– Atores e músicos... para mim, eles são santos.

(O Vampiro Lestat)

De todos os monstros, os vampiros são os que transmitem mais fascínio no público. Muitas são as representações desse ser morto que permanece vivo, de aparência humana, que se alimenta de sangue, que pode ser bestial, mas também sensual, e muitas vezes ambos. Mas por que isso acontece? Talvez uma boa resposta resida no fato de que os vampiros são o duplo de si mesmos. Principalmente aqueles que escolhem viver ao redor ou como seres humanos, como, por exemplo, os vampiros de Anne Rice. Eles existem entre dois mundos, caminhando em uma corda bamba entre o mortal e o imortal, tendo de atuar como se ainda estivessem vivos interpretando um personagem, não apenas para continuar a viver em sociedade, mas para se alimentar dela. Neste caso, qual seria exatamente a diferença entre um ator e um vampiro? Talvez o palco em que interpretam seus personagens, mas e quando esses palcos e o público se mesclam? Um ótimo exemplo está no livro O Vampiro Lestat, no qual encontramos o fascinante Teatro dos Vampiros, além do próprio protagonista das Crônicas Vampirescas de Anne Rice, Lestat de Lioncourt.

Dioniso é o deus grego do teatro e possui diversas máscaras. Em As Bacantes, peça de Eurípides, Dioniso chega a Tebas disposto a cometer atos de loucura para salvar a honra de sua mãe, Sêmele, e implantar seu culto na cidade. Dioniso não é apenas um personagem na peça, ele também escreve e dirige sua própria vingança, e, assim, todos se tornaram personagens na peça que representava sua vida. Dioniso é citado algumas vezes em O Vampiro Lestat, e como poderia ser diferente? A história de Lestat e sua própria essência como personagem possuem traços dionisíacos, e o fato de ambos serem atores em suas próprias vidas também é um ponto em comum. O vampiro Lestat protagoniza sua própria tragédia grega e guia o leitor como um deus do terror e da arte, pois antes de se tornar um vampiro, Lestat já era um ator, e após o choque inicial de ser transformado, aceitou sua nova realidade e transformou o mundo em seu palco.

Sétimo filho de um marquês decadente, impedido de estudar e consumir arte, Lestat encontrou no vampirismo uma forma de recomeçar e também de preencher a solidão que o acompanhou a vida inteira. Esse tipo de emoção e dilemas humanos que permanecem nos vampiros, mesmo que eles tenham plena consciência de que não são mais seres vivos, é o que os tornam criaturas tão complexas. O amor não desaparece na vida eterna, na verdade, se torna ainda mais importante. Ao ler os livros de Anne Rice descobrimos que mesmo seres vistos como demoníacos também amam, e procuram a todo o custo aplacar a solidão da imortalidade. Talvez essa seja uma das razões para se exigir uma moralidade exacerbada para com os vampiros que não se espera de nenhuma outra criatura. Lestat é também um bom exemplo disso; apesar de ser o grande protagonista da saga, existe sob a figura de Lestat a exigência de que ele se comporte mais como um ser humano do que como o monstro em que foi transformado. Mesmo se ele desejasse ou se encontrasse desesperado durante os séculos por ser uma criatura das trevas e não conseguisse aceitar seu destino, o quão estranho é esperar moralidade e humanidade de um ser que não é humano? Vampiros podem ser ótimos atores a ponto de fazer leitores e espectadores não se incomodarem com o fato de que são criaturas que precisam de sangue humano para viver e que literalmente bebem a vida inteira de outro ser e as dilacera, como dito pelo próprio Lestat: “Eu morri, sou um vampiro. E coisas morrerão para que eu possa viver; beberei o sangue deles para poder viver”

A arte não precisa ser moral e personagens tampouco. A arte muitas vezes dilacera com emoções complexas que transmitem a margem entre o mundo real e o palco, que é justamente a beleza de tudo, e a ambiguidade do vampiro faz com que ele seja o monstro perfeito, sempre entre o outro monstruoso e o humano, com emoções ainda humanas fervilhando dentro de um invólucro de carne morta e vida eterna. Lestat é o exemplo perfeito para se debater a questão do duplo no vampirismo. Por que perder tempo pensando na vida que não existe mais, nas pessoas que logo se tornarão pó, se você agora vai viver para todo o sempre?

“Uma estranha serenidade invadiu-me aos poucos. Era sombria, cheia de amargura e crescente fascinação. Eu não era mais humano. [...] Eu não fazia mais parte do mundo que se encolhia de medo daquelas coisas. E, com um sorriso, percebi que eu era agora parte daquela família sombria que fazia os outros se encolherem de medo. Dei uma risada, lenta e cheia de prazer.”

(O Vampiro Lestat)

Um outro bom exemplo que transforma o livro de Anne Rice em uma quase tragédia grega está na relação de Lestat com a mãe, Gabrielle. A relação complicada que Lestat tinha com o pai e a quase inexistente com os irmãos era muito similar com a que Gabrielle de Lioncourt tinha com a família. Enquanto humanos no ambiente familiar, Lestat e Gabrielle tiveram apenas um ao outro, e no caso de Gabrielle, tudo se tornava ainda mais sufocante por ela ser uma mulher em uma sociedade onde se esperava que apenas gerasse crianças e fosse esposa. 

– Foi a mesma coisa na primeira vez em que dei à luz – ela disse. – Padeci em agonia extrema durante doze horas, e me sentia tomada pela dor, sabendo que o único alívio para o meu sofrimento seria parir ou morrer. Quando acabou, eu estava com seu irmão Augustin em meus braços, mas não queria nenhuma outra pessoa perto de mim. E não foi porque os culpava. Foi apenas porque eu havia sofrido daquela maneira, hora após hora, indo e voltando até o círculo do inferno. Eles não conheciam o círculo do inferno. E me senti calma, por completo. Nesse acontecimento comum, nesse ato simples de dar à luz, compreendi o sentido da solidão absoluta.

(O Vampiro Lestat)

A relação entre Gabrielle e Lestat vai muito além de um complexo edipiano. Ao ter a oportunidade de transformar a mãe em vampiro e dar a liberdade que ela sempre desejou, eles se tornam bem mais do que mãe e filho, são também criador e criatura. Talvez a parte mais fascinante nesse caso é que o lugar que ocupam nessa relação está em constante mudança: mãe humana, companheira vampira, filho humano e criador vampiro. Gabrielle aceita a imortalidade e o fato de não ser mais humana como se tivesse esperado a vida inteira por isso, como se os deuses a tivessem feito para que se tornasse a mais perfeita criatura das trevas, e desapega com muita facilidade de seus laços humanos, passando a agir como se nunca tivessem existido. Ao se tornar vampira, ela se livra dos vestidos e do cabelo, veste calças e caminha com a liberdade que apenas um homem no século XVIII poderia ter, se desfaz de todos os contratos sociais que fora obrigada a formar, não é mais mãe, não é mais esposa, não é mais nem ao menos mulher, ela se torna uma força da natureza que anseia caminhar por todos os territórios do mundo.

Em sua jornada, Lestat encontra também um dos vampiros mais antigos ainda vivos, Marius, que também utiliza a arte como condutora da vida eterna de diversas formas. Além de ser um artista, ele coleciona as eras que caminhou pelo mundo e reside em seu próprio museu particular:

– Ele descobriu uma maneira de imitar a vida mortal. De ser idêntico aos mortais. Ele matava apenas os malfeitores e pintava como os mortais pintam. Anjos e céus azuis, nuvens, foram essas coisas que você me fez ver quando estava contando. Ele criava coisas boas. E eu vejo sabedoria e ausência de vaidade nele. Ele não precisava revelar-se. Ele viveu mil anos e acreditava mais nos panoramas do céu que pintava do que em si mesmo.

(O Vampiro Lestat)

Marius também é guardião de Akasha e Enkil, os primeiros vampiros, tão antigos e poderosos que suas histórias se mesclam com as de Osíris e Ísis, que após tantos milênios de existência se transformaram em obras de arte. A vida de todos os vampiros está interligada a deles .Como Pai e Mãe de uma espécie, eles precisam continuar vivos para que toda a raça assim o permaneça, mas o que acontece quando um vampiro é tão poderoso e antigo que nem se desejassem conseguiriam morrer? E quando é preciso continuar existindo, mas não se tem vontade alguma de sequer se alimentar, quando se é tão poderoso que isso é um mero detalhe? Akasha e Enkil se tornaram estátuas vivas indestrutíveis, vivendo e existindo paralisados em silêncio, nos fazendo crer que dentro de qualquer escultura produzida por um grande mestre, que hoje se encontra perdida ou em museus, possa existir um deus adormecido e trancafiado em si mesmo, e que, assim como Akasha, aguarda o momento propício, como o som de uma banda comandada por um vampiro, para despertar.

Os vampiros de Anne Rice mudaram não apenas a forma como o público, mas também outros autores enxergavam essas criaturas tão fascinantes. Seus vampiros também são artistas, não apenas porque atuam entre dois mundos, mas porque vivem através disso. No caso de Lestat, ao se tornar um vampiro, o mundo se tornou seu palco, e ninguém melhor do que ele para, assim como Dioniso, que rompeu o véu entre o humano e o divino, o terror e o belo, a arte e a vida, dirigir e atuar em sua própria peça, ou melhor, sua vida imortal.

“Então, eu poderia ser apenas Lestat, o monstro, não poderia? E sempre fui tão bom sendo monstro! Ah, bem… [...] Se existia um Deus, ele não tinha importância agora. Ele fazia parte de algum reino triste e monótono cujos segredos haviam sido saqueados muito tempo antes, cujas luzes se apagaram muito tempo atrás. Aquilo era o centro pulsante da própria vida, em torno do qual girava toda a verdadeira complexidade. Ah, o fascínio daquela complexidade, a sensação de estar lá…”

(O Vampiro Lestat)

Referências

  • O Vampiro Lestat (Anne Rice)
  • Lestat de Lioncourt: Faces de um vampiro (Patrícia Hradec)




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Babi Moerbeck
Carioca nascida no outono de 1996, com a personalidade baseada no clipe de Wuthering Heights, da Kate Bush. Historiadora, escritora e pesquisadora com ênfase no período do Renascimento, caça às bruxas e iconografia do terror. Integrande perdida do grupo dos Românticos do século XIX e defensora de Percy Shelley. Louca dos gatos, rainha de maio e Barbie Mermaidia.

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