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Beleza é terror: As Bacantes e A História Secreta

Dioniso é o deus da metamorfose, do teatro, da transformação e da insanidade. Suas máscaras e personas múltiplas, antropomorfas ou não, são umas de suas imagéticas mais características. Assim como o termo "tragédia", que está diretamente ligado ao também deus do vinho e dos bacanais desde o início dos tempos. As mênades, ou bacantes, são sacerdotisas de Dioniso, e para entrar em transe sagrado, além da ingestão de vinho e outros alucinógenos, também há a ligação com o sexo. Mas engana-se quem pensa que por conta disso elas eram vistas como mulheres indecentes. As bacantes, em seu transe de loucura e êxtase sexual, assim como os ritos dionisíacos, são tão sagradas quanto qualquer outra sacerdotisa: 

"A mania e a orgia provocavam uma explosão de liberdade e, seguramente, uma transformação, uma liberação, uma distensão, uma identificação, uma kátharsis, uma purificação. É necessário, no entanto, não confundir essa explosão das Mênades dionisíacas ou humanas (como acontece na gigantesca tragédia euripidiana, As Bacantes) com 'crises psicopáticas', porque a mania, loucura sagrada e a orgia, agitação incontrolável, inflação anímica, possuíam indubitavelmente o valor de uma experiência religiosa."

(Junito de Souza Brandão)

Tendo em vista tudo isso, e também que a tragédia clássica grega foi inspirada em lendas e mitos, e que a circulação se dava via transmissão oral e escrita, não é de surpreender que em algum momento um autor do mundo contemporâneo se perguntasse: "O que aconteceria se um rito dionisíacos fossem realizado em tempos modernos?". Não é possível saber se foi exatamente isso que Donna Tartt pensou ao escrever A História Secreta, seu primeiro romance, em 1992. Mas que ela foi inspirada pela peça de Eurípides, As Bacantes, isso é evidente. Donna Tartt quase deu o título do romance de "Deus das Ilusões", uma das diversas denominações de Dioniso. Além do romance ter todas as características de uma tragédia grega, ele se tornou também um dos precursores do movimento que conhecemos como Dark Academia.

"Existe, fora da literatura, aquela coisa de 'falha fatal', a nítida fenda escura que se estende e racha uma vida ao meio?"

(A História Secreta)

Ao contrário da peça de Eurípides, em que o próprio Dioniso é o personagem principal, no romance de Donna Tartt, o deus aparece apenas em relatos confusos de memórias perdidas e traumatizadas. Porém todas as ações dos personagens se dão ao seu redor, antes, durante e depois do bacanal. Pois é importante lembrar que, mesmo que Dioniso seja o deus mais próximo da humanidade, e a insanidade faça parte de seu ser, os castigos de Dioniso são conhecidos por fazerem com que o homem sucumba à própria natureza selvagem.

Existe algo de cômico em tragédias, principalmente nas mais sanguinárias como As Bacantes. Como é dito em A História Secreta, "Beleza é terror". O terror também faz com que, de forma involuntária ou não, soltemos risadas nervosas e sem controle em meio a situações de puro pavor. Situações essas que As Bacantes e A História Secreta também têm em comum - livros que são uma tragédia clássica, um clássico contemporâneo, que nos fazem chocar-nos, da melhor forma possível, pelos limites entre a beleza e o terror:

“Não sei não”, disse, “você já se deu conta de como tudo isso é engraçado, de um jeito terrível?”

(A História Secreta)

Loucura sagrada

Eurípides, ao lado de Ésquilo e Sófocles, é um dos grandes autores trágicos da Grécia antiga. Dentre diversas obras de autoria de Eurípides, é possível citar Medeia e As Troianas, assim como As Bacantes, datada de aproximadamente 405 a.C.

Dioniso é um deus que vem de longe, de lugares desconhecidos e pouco habitados, mas, por ser de fácil adaptação, encontra morada até mesmo nos grandes polos, como foi o caso de Atenas. Na peça de Eurípides, Dioniso, um deus ainda jovem, chega a Tebas disposto a se vingar da cidade e em especial da própria família de sua mãe, Sêmele, por desmerecê-la e também por se recusarem a venerá-lo e sequer acreditarem que ele é um deus.

A vingança de Dioniso envolve levar todas as mulheres da cidade em transe báquico ao Monte Citéron, incluindo Autónoe, Ino e Agave, irmãs de sua mãe. Agave, esta que também é mãe de Penteu, rei da cidade e primo de Dioniso, rei que blasfemou o nome de Sêmele e o humilhou perante a cidade. Após convencer Penteu a usar vestes femininas para se infiltrar nos ritos e vigiar as bacantes no alto do monte, Dioniso dá a ordem às filhas de Cadmo para que o dilacerem vivo. Sendo a líder e a mais violenta, que consegue arrancar a cabeça de Penteu e a leva de volta ao palácio, Agave, sua própria mãe, retorna ainda em transe, desconhecendo seus atos e acreditando ter matado um leão da montanha. A morte de Penteu dilacerado não é apenas uma ato de vingança, mas também faz parte de uma parte importante dos ritos dionisíacos, o sacrifício. E é justamente esse o principal ponto de ligação entre a peça de Eurípides e o romance de Donna Tartt.

Penteu dilacerado por Agave e Ino (século 5 a.C.)

“— Lembram-se do que falamos há pouco, das cenas terríveis, sanguinárias, que por vezes são as mais sedutoras? Trata-se de um conceito bem grego, e muito profundo. Beleza é terror. O que chamamos de belo provoca arrepios. E o que poderia ser mais aterrorizante e belo, para mentes como a dos gregos e a nossa, do que a perda total do controle?"

(A História Secreta)

A trama de A História Secreta se passa em meados dos anos de 1980, e é ambientada no estado de Vermont, na Nova Inglaterra. Além de uma mansão em estilo gótico na qual os protagonistas passam boa parte de seu tempo, a trama se desenrola no campus da universidade Hampden College, onde os membros do grupo de estudos de grego, liderados pelo professor Julian Morrow, estudam. Richard Papen, Henry Winter, Charles e Camilla Macaulay, Francis Abernathy e, por último, mas definitivamente não menos importante para a trama, Edmund "Bunny" Corcoran. Começamos a leitura tendo conhecimento da morte de Bunny, o que torna a construção do romance ainda mais instigante. Aos poucos, Donna Tartt apresenta ao leitor os motivos do assassinato do jovem pelas mãos de seus amigos mais próximos. No decorrer da trama, fica claro que as ações de Bunny que o levaram à morte têm a ver não apenas com sua personalidade, mas também com chantagens e histórias secretas envolvendo incesto, assassinato e um deus grego:

“— Recorda-se, no outono passado, quando estudávamos no curso de Julian o que Platão chamava de loucura telésia? Bakcheia? Frenesi dionisíaco?
— Sim —, respondi impaciente. Só mesmo Henry para vir com essa conversa logo agora.
— Bem, decidimos chegar a isso.
Por um momento, pensei não ter compreendido.
— Como assim?, falei.
— Resolvemos realizar um bacanal.
— Duvido.
— Sério.
Olhei fixo para ele.
— Está brincando.
— Não.
— É a coisa mais excêntrica que já escutei na vida.
Ele deu de ombros."

(A História Secreta)

O fato de o romance se passar nos anos 80 não é por acaso. Antes mesmo de o grupo realizar o ritual, fica evidente os excessos de drogas e bebidas alcoólicas que as personagens ingerem todos os dias, o que faz com os relatos a respeito da suposta aparição de Dioniso sejam ainda mais discutíveis e imprecisos. Afinal, eles conseguiram mesmo invocar Dioniso? Tudo aquilo verdadeiramente aconteceu? Toda a parte do bacanal é brilhantemente construída, nem Richard Papen — que não participou do ritual — e nem mesmo o leitor conseguem ter plena certeza se tudo aquilo dito pelo grupo de fato aconteceu ou não. Ao mesmo tempo que Henry e Camilla conseguem dar descrições detalhadas dos fatos, há sempre uma dúvida se aquilo verdadeiramente aconteceu. Principalmente porque Dioniso é o deus das ilusões, e sair de si é mais que fundamental para romper com o véu e adentrar em outra realidade adulterada. O leitor experimenta as mesmas sensações que os próprios personagens, tentando decifrar enigmas, recuperar memórias e construir mentalmente uma experiência de êxtase e terror que vem diretamente de um mundo antigo que não existe mais.

"O ékstasis, todavia, era apenas a primeira parte da grande integração com o deus: o sair de si implicava num mergulho em Dioniso e deste no seu adorador pelo processo do enthousiasmós, de entheos, isto é, 'animado de um transporte divino', de 'dentro, no âmago' theós, 'deus', quer dizer, o entusiasmo é ter um deus dentro de si, identificar-se com ele, co-participando da divindade. E se das Mênades ou Bacantes, e ambos os termos significam a mesma coisa, as possuídas, quer dizer, em êxtase e entusiasmo, delas, como dos adoradores de Dioniso, se apossavam a mania, 'a loucura sagrada, a possessão divina' e a órguia, 'posse do divino na celebração dos mistérios, orgia, agitação incontrolável', estava concretizada a comunhão com o deus."

(Junito de Souza Brandão)

Mas as evidências físicas são irrefutáveis. Como as mordidas que não foram feitas por animais e nem humanos no corpo de Charles, assim como o fato de que, após o rito, ele vai perdendo ainda mais a sanidade e se entrega de vez ao álcool. Contudo, o fato mais irrefutável é o corpo do homem assassinado por Henry durante o transe báquico.

O sacrifício e a dilaceração de um corpo, humano ou animal, fazem parte dos ritos dionisíacos. A iconografia de Dioniso envolvendo a omofagia e o sacrifício tem relação com o mito de criação do próprio Dioniso. O primeiro Dioniso teria sido sequestrado, morto e dilacerado pelos Titãs a mando de Hera, que, com ciúme, queria se livrar de mais um dos filhos, fruto de mais um de muitos casos de Zeus. Nos cultos a Dioniso, o sacrifício de um animal, seja um bode ou touro, e a ingestão da sua carne e seu sangue, fazem com que os participantes do culto estejam em total e completa harmonia física e religiosa com o deus.

"Um touro, que acompanhava o alegre cortejo, era destinado ao sacrifício. Ao que tudo indica, esse sacrifício se realizava por diasparagmós e omofagia, ou seja, por desmembramento violento do animal vivo e consumação de seu sangue ainda quente e de suas carnes cruas e palpitantes. [...] O despedaçamento do touro, símbolo da força e da fecundidade, se de um lado representava os sofrimentos de Dioniso, dilacerado pelos Titãs, de outro, o fato das Bacantes lhe beberem o sangue e comerem as carnes, pelo rito da omofagia, inseparável do transe orgiástico, configurava a integração total e a comunhão com o deus. [...] Foi assim que Penteu, vítima da loucura sagrada, como se há de assinalar, desejando acorrentar o deus, o vê sob a forma de touro, que não é outra coisa senão o próprio Dioniso dissimulado pela máscara."

(Junito de Souza Brandão)

Penteu dilacerado por mênades (afresco romano encontrado em Pompeia)

Em A História Secreta, o homem, que para o grupo era desconhecido, toma o lugar do animal no ato do sacrifício. Os membros do grupo cobertos de sangue e o corpo destroçado do homem brutalmente assassinado remetem à ideia de canibalismo. Mas o que acontece quando, mesmo sem memória, ao voltar ao mundo palpável dos homens, a ideia de ter matado alguém e devorado sua carne não afeta tanto quanto um segundo asasssinato? Dentro de um ritual de cunho religioso, para alcançar uma divindade, tudo isso pode se tornar algo sacro. No caso do assassinato de Bunny — o rapaz que, assim como Richard, também não participou do ritual —, e que enxerga aquele assassinato como algo vil, mas que, acima de tudo, se sente traído por ter ficado de fora e por não estar no mesmo nível social que os demais, a história é diferente. Seu assassinato é realizado durante o dia, de maneira consciente e até mesmo planejada. E mesmo que Francis, Henry, Charles e Camilla não se pegassem pensando a respeito da morte do homem misterioso, a morte de Bunny afeta não apenas a vida de todos, mas também suas personalidades. Inclusive a de Richard Papen, o narrador da trama, que, anos depois, expõe ao leitor relatos do episódio que mudou sua vida para sempre.

“Acostumamo-nos a pensar no êxtase religioso como uma característica exclusiva das sociedades primitivas, embora ocorra com frequência entre os povos mais civilizados. Os gregos, como sabem, não eram muito diferentes de nós. Um povo muito formal, extraordinariamente civilizado, bem reprimido. E, contudo, eram freqüentemente levados en masse ao entusiasmo mais turbulento — em danças, frenesis, matanças, visões —, que para nós, suponho, pareceria demência clínica, irreversível. [...] Pensei nas Bacantes, uma peça teatral cuja violência e selvageria me incomodam, tanto quanto o sadismo e sanguinolência do deus em questão. Comparada a outras tragédias, dominadas por princípios reconhecidos de justiça, por mais medonhas que sejam, representa o triunfo da barbárie sobre a razão: sombria, caótica, inexplicável."

(A História Secreta)

Os gêmeos

O incesto é um tema recorrente nas tragédias gregas. Um grande exemplo é a peça Édipo, de Sófocles. Mas o incesto também é muito recorrente na literatura gótica, seja em representações literais da relação ou apenas nas suposições. Tendo traços dos dois gêneros, A História Secreta também tem um espaço para debater esse tema tão controverso. Mas engana-se quem pensa que Donna Tartt inseriu a relação insestuosa dos gêmeos apenas para chocar ou para ser mais uma coincidência; Tartt sabia exatamente o que estava fazendo. Sua genialidade ao construir aos poucos uma trama que costura todas as outras laça com perfeição a conclusão da tragédia dos próprios personagens. Principalmente quando essa tragédia tem como ponto de colisão um deus como Dioniso, que, acima de tudo, faz com que os limites construídos no mundo humano sejam quebrados, como é o caso da relação entre irmãos. No caso de Charles e principalmente Camilla, é possível citar outra peça de Sófocles, Antígona.

"Atribuíra isso a minha mente suja, a pensamentos degenerados, a uma projeção de meus próprios desejos — pois ele era irmão dela e os dois se pareciam muito, e pensar nos dois juntos provocava, além de sentimentos previsíveis como inveja, aflição e repugnância, outro mais intenso, excitação."

(A História Secreta)

Muitos filósofos e teóricos acreditam que Antígona tinha desejos incestuosos pelo irmão, Polinices. A heroína de Sófocles coloca em risco sua própria vida para conseguir enterrar o corpo do irmão. E suas falas apaixonadas sobre ele deixam o leitor em dúvida a respeito da verdadeira relação entre os irmãos. Mas é preciso entender o quanto a linhagem e os ritos fúnebres eram importantes na Grécia antiga. O que Antígona está disposta a fazer pelo irmão Polinices muito se dá ao fato de poder honrar seu sangue e também aos deuses uma última vez.

A morte de Polinices aconteceu durante um rito dionisíaco, e quem o matou e também perdeu a vida foi Etéocles, irmão gêmeo de Polinices. Os gêmeos se sacrificaram em honra a Dioniso, e a relação dos irmãos de Antígona durante o rito adquire traços incestuosos, não no que diz respeito ao ato sexual em si, mas pela forma da morte. Ambos se apunhalando, misturando ainda mais o sangue da família, que já era incestuoso. Afinal, eles eram filhos de Édipo e Jocasta.

"O transe de Baco representa para os homens o perigo de uma possessão nefasta, de um ser arrancado aos interesses propriamente humanos e de um deslize para a esfera da natureza selvagem. [...] A ideia do transe inspirado pelo deus Baco reforça a ideia de uma estranha fusão entre os irmãos, Baco sendo o deus do thiase, isto é, de associações que desconhecem as distinções sociais e visam a elos cósmicos mais abrangentes. Vertendo o sangue proibido e sagrado do mais próximo parente, eles realmente não pertencem mais à ordem humana dos seres políticos."

(Introdução de Antígona)

Voltando a Antígona, a relação com A História Secreta não é apenas sobre o incesto, mas também como a personagem Camilla é vista pelos demais no decorrer da trama. Bunny tentava fazer da vida de Camilla um inferno, não apenas por desconfiar da relação entre os irmãos, mas também por não respeitá-la, única e exclusivamente por ser mulher. Assim como Creonte, Bunny não acreditava que Camilla tinha lugar no grupo e nem mesmo que deveria ter voz nas decisões, e o lugar que Bunny direcionava a Camilla era o doméstico. Enquanto a chantagem em cima dos homens dizia respeito a conseguir dinheiro e suas aprovações, Camilla era obrigada a lavar suas roupas e preparar sua comida:

"Camilla era atormentada apenas por ser mulher. De certa forma, ela era o alvo mais vulnerável... sem que fosse culpada, simplesmente porque no mundo grego, de modo geral, a mulher era considerada uma criatura inferior, para ser vista e não ouvida. [...] Bunny, longe de almejar a pureza helênica, defendia tal ponto de vista apenas por ser mesquinho. Não gostava de mulheres, não apreciava sua companhia, e mesmo Marion, sua raison d’etre, como proclamava, era tolerada apenas como concubina, de má vontade. Em relação a Camilla, Bunny era forçado a assumir uma postura um pouco mais paternalista, dirigindo-se a ela com a condescendência de um pai idoso ao lidar com a filha deficiente. Para o resto de nós ele se queixava de que Camilla atrapalhava a turma, sendo um empecilho para a seriedade dos estudos."

(A História Secreta)

A diferença de tratamento que os demais rapazes do grupo, e até o próprio Dioniso, tinham para com Camilla era totalmente diferente da de Bunny. Charles e a irmã tinham uma relação incestuosa, que envolvia ciúme e controle obsessivo; Richard a enxergava como uma espécie de musa; Francis, como sua amiga e confidente, mesmo que ele próprio tivesse uma relação complexa com Charles; Henry, a quem Camilla verdadeiramente amava e a amava de volta; e, finalmente, Dioniso.

As sacerdotisas de Dioniso tinham uma liberdade que muitas mulheres não conseguiam nem ao menos imaginar. Como dito pelo próprio deus em uma estrofe de As Bacantes: "Sem recorrer à força, eu trago as fêmeas". Camilla foi a única do grupo a sair intacta, ao menos fisicamente, do transe. Suas vestes estavam inteiras, sua pele não tinha marcas de mordidas e de violência, ela foi encontrada muito depois, sozinha, com os pés balançando na água, em transe. A única pista de que Camilla participou de tudo aquilo são seus cabelos tingidos de sangue.

É ela também quem melhor conseguiu visualizar de fato Dioniso, como um homem, uma mulher, um touro, um bode.

"Aparece
touro
dragão-serpente multicrânio,
leão piroflâmeo!
Deixa te verem!
Ó Baco, máscara-sarcasmo,
em horda mortífera circumprende
o caça-fera!
Que tombem à horda mênade!"

(As Bacantes)

Camilla foi a única que de fato viu o deus em todas as suas formas durante o ritual. Existe uma ligação direta na iconografia de Jesus Cristo com Dioniso, seja pela sua ressurreição, seja pelo vinho e pelo fato de ambos serem filhos de deuses com mulheres humanas. Outra ligação são as mulheres. São elas que permanecem com Jesus até o fim de sua vida, torturado na cruz. E é para elas também que Cristo aparece após a ressurreição. Em As Bacantes, Dioniso chega a Tebas disposto a cometer atos de crueldade e loucura para restabelecer a honra de sua mãe, e seu culto gira em torno do êxtase e da liberdade feminina. Assim como os gêmeos Polinices e Etéocles, os homens têm tendência a enlouquecer e se perder. As mulheres, como Camilla, são mais abertas para a junção entre os dois mundos, e para entrar em total e completa reunião e transe dionisíaco.

A História Secreta é um verdadeiro clássico contemporâneo, que funciona perfeitamente sozinho, sem o leitor ter consciência da inspiração na peça de Eurípides. Mas quando essa relação fica evidente, a leitura se torna mais completa, e a escrita genial de Donna Tartt, ainda mais irresistível. Seus personagens ambíguos, humanos e cheios de falhas, fazem parte não apenas da nossa realidade no mundo contemporâneo, mas também das tragédias gregas.

Não gostamos de admitir  Julian disse —, porém a idéia de perder o controle fascina pessoas controladas como nós mais do que a maioria dos outros temas. [...] Porque é perigoso ignorar a existência do irracional. Quanto mais instruída, inteligente e reprimida é a pessoa, mais necessita de métodos para canalizar os impulsos primitivos que subjugou com tanto esforço. Caso contrário, essas forças ancestrais poderosas acumularão força e energia até se tornarem violentas o bastante para romper as amarras, e tanta violência acumulada costuma, com frequência, suplantar totalmente a vontade."

(A História Secreta)

Referências




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Babi Moerbeck
Carioca nascida no outono de 1996, com a personalidade baseada no clipe de Wuthering Heights, da Kate Bush. Historiadora, escritora e pesquisadora com ênfase no período do Renascimento, caça às bruxas e iconografia do terror. Integrande perdida do grupo dos Românticos do século XIX e defensora de Percy Shelley. Louca dos gatos, rainha de maio e Barbie Mermaidia.

Comentários

  1. Amei! Me deu vontade de reler o livro mais uma vez, agora com essa perspectiva tão interessante!

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  2. Não conhecia a história, só vejo falarem horrores do livro no tiktok hahahahah Mas adorei o texto, vou já colocar na minha lista

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  3. Ah, e um livro que fala também um poquinho sobre Dionísio e as bacantes é "Ariadne". Não achei ele muito revolucionário, mas tem algumas cenas bem interessantes das bacantes

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