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A inquietação humana dos vampiros de Anne Rice


Ao pensar no vampiro literário, é quase impossível não imaginar o emblemático conde Drácula, o morto-vivo que dá nome à obra mais famosa de Bram Stoker. O vampiro do escritor inglês imortalizou características que nos séculos seguintes continuaram a ser associadas à figura mitológica: os sentidos aguçados; a repulsão por alho e símbolos religiosos - como a Hóstia Sagrada e o crucifixo -; a metamorfização em animais; a morte que espreita na luz do sol e em uma estaca enfiada no peito e um coração que não pulsa.

“Existem coisas que o afligem tanto que não tem poder contra elas, como o alho, que nós conhecemos, e entre as coisas sagradas, como símbolo, meu crucifixo. Há ainda outras coisas: um ramo de rosa-silvestre colocado no seu caixão o impede de sair de lá; uma bala abençoada disparada contra seu caixão mata-o de verdade.” 

(Drácula, Bram Stoker)

Drácula é o mal encarnado. O crucifixo que o repele e a Hóstia que o queima só compravam a maneira como o personagem do romance, bem como as outras criaturas como ele, são como filhos do diabo. Há uma dualidade encarnada na ideia do “Outro”; o forasteiro; aquele que é diferente.

No livro, Drácula não tem voz. Ele é uma criatura. Apesar de se parecer e se vestir como um humano, da inteligência e da riqueza, ainda sim é descrito como demônio. Alguém totalmente a parte dos outros personagens da história, que são quem descrevem sua figura e a jornada para erradicá-lo. Drácula é um não-ser. Não possui sombra; os espelhos não refletem sua imagem. As necessidades e sentimentos das criaturas de Stoker não se estendem para além do desejo por sangue e do ódio e sedução que são associados ao mal supremo. Sua figura imortalizada perdurou por séculos. Os vampiros eram os vampiros de Drácula; no cinema, na literatura e no imaginário popular. Não passavam de criaturas vis. Eram filhos de Satã. Incapazes de sentir.

Então, Anne Rice publicou, em 1988, Entrevista com o vampiro. E o que conhecíamos mudou. Tirando o desejo por sangue humano e a morte que espera na luz do sol, os vampiros de Rice e Stoker não poderiam ser mais diferentes.

Entrevista com o vampiro possui uma narrativa carregada de elementos góticos, em que os seres dormem em caixões, não saem durante o dia e precisam se alimentar de sangue regularmente. Entretanto, o alho não os afeta, muito menos os crucifixos ou qualquer outro objeto religioso. Podem entrar em igrejas e suas imagens são refletidas no espelho. Seus corpos, embora imutáveis, não se transfiguram e nem se tornam vapor ou névoa, como acontecia em Drácula. Possuem um coração que pulsa sangue, embora bata eternamente.

Louis, assim como tantos leitores, também é confrontado com o que pensava saber a respeito da criatura vampiro logo no início da obra. Lestat, seu criador, acha graça dos seus julgamentos.

“Gargalhou estrondosamente quando descobri que podia me ver no espelho e que as cruzes não me afetavam, e me confundia com seu silêncio sempre que lhe perguntava sobre Deus e o diabo.”

(Entrevista com o vampiro, Anne Rice)

Ademais, é interessante pensar como na obra de Anne Rice, o próprio vampiro conta sua história. O leitor conhece Louis durante sua vida humana e o acompanha nos anos de existência após sua transformação em vampiro. É uma aproximação quase hipnotizante, sobrenatural. As “criaturas” têm pensamentos tão complexos quanto os humanos, sentimentos viscerais e, no caso de Louis, uma tristeza e inquietação tão profunda que sua vida imortal é um tormento.

Os vampiros de Rice sentem como humanos. São capazes de amar e sofrer, têm necessidade de companhia e dilemas morais e metafísicos. A dor e os questionamentos de uma vida inteira, seus vampiros acumulam por séculos de existência, precisando carregá-los e lidar com eles.

No caso de Louis, ele sofre por não saber a quem pertence. Seria possível uma criatura como ele não ser negada por Deus? Para ele, é óbvio que não. Ao mesmo tempo, o Diabo não dá sinais de sua presença. Louis não é chamado por nenhum tipo de entidade sobrenatural que possa ter criado os vampiros. Ele fita as cruzes que não o queimam e suas perguntas se acumulam sem resposta. Ele não sabe quem é. Ou melhor, o que é. Sente remorso em matar e no início tenta se alimentar apenas de animais. Católico de criação, ele se pergunta se há um Deus e um Diabo, e, se sim, se seu despertar da morte significa que a partir de então é um filho do segundo.

“Sou um condenado? Sou enviado do diabo? Tenho a mesma natureza de um demônio? - perguntava-me repetidamente. E se assim é, por que então devo me revoltar, tremer quando Babette me lança uma lanterna flamejante, ou afastar-me desgostoso quando Lestat mata? Em que me tornei ao virar vampiro? Onde devo ir?”

(Entrevista com o vampiro, Anne Rice)

É a partir dessas reflexões que Louis tenta buscar respostas. Ele não consegue simplesmente não saber. Então encontra os vampiros da Europa Oriental, criaturas tão famintas e selvagens que não se aproximam nem da figura de Drácula. Eles não são conscientes. Vagam pela terra e se alimentam e reproduzem sem pensar. A aparição de um deles perturba Cláudia e Louis profundamente, que se perguntam se são os únicos vampiros “civilizados” da Terra.

É neste contexto que eles encontram o Teatro dos Vampiros em Paris, e, ali, conhecem Armand, um vampiro de quatrocentos anos que já viu de quase tudo e percebe em Louis uma sensibilidade que o fascina. Louis, por sua vez, conta sobre suas inquietações para o vampiro mais velho e recebe respostas, embora elas não sejam exatamente o que ele esperava.

“- Então Satã... nenhum poder satânico lhe dá força, como líder ou vampiro?
- Não - disse ele calmamente, tão calmamente que foi impossível saber o que achara de minhas perguntas, se pensava como eu.
- E os outros vampiros?
- Não - respondeu.
- Então não somos.. - cheguei para a frente- os filhos de Satã?
- Como poderíamos ser filhos de Satã? - perguntou. - Acredita que Satã criou este mundo que nos cerca?
- Não, creio que Deus o criou, se é que alguém o fez. Mas Ele também fez Satã, e quero saber se somos seus filhos!
- Exatamente. Se você acredita que Deus criou Satã, deve compreender que todos os poderes de Satã provêm de Deus, que Satã é simplesmente filho de Deus, e que nós também o somos. Na verdade, não há filhos de Satã.” 

(Entrevista com o vampiro, Anne Rice)

Armand continua:

“- Este mal, este conceito, ele nasce da decepção da amargura. Vê? Filhos de Satã! Filhos de Deus! Esta é a única pergunta que me faz, este é o único poder que o obceca. Por que precisa nos transformar em deuses e diabos, quando o único poder que existe está dentro de nós mesmos? Como pôde acreditar nessas mentiras fantásticas, nesses mitos, nessas caricaturas do sobrenatural?”

(Entrevista com o vampiro, Anne Rice)

Mas a verdade atormenta Louis ainda mais nos momentos que se seguem. Como pode uma criatura que se alimenta do sangue dos mortais não ser amaldiçoada e nem comandada por um ser maligno superior? E como explicar Cláudia? A vampira adulta presa no corpo de uma criança imaculada? A verdade, parece ainda mais dura: “[...] não há nenhum significado nisto tudo!”

A imortalidade concedida aos vampiros talvez não fosse um fardo tão grande se as criaturas de Anne Rice fossem mais parecidos com Drácula e aqueles vampiros da Europa Oriental. Por mais que o sangue traga conforto e seja a fonte máxima de prazer que possam experimentar por toda a eternidade, eles sentem demais. Veem o mundo mudar ao seu redor, tudo que conheciam se transformar em algo novo, precisando se adaptar e viver sempre nas sombras. Em seu amor, se apegam às pessoas e precisam deixá-las ir, sendo vampiras ou mortais. O luto se acumula. As certezas minguam.

“Quantos vampiros você pensa que têm condições para a imortalidade? Para começar, têm uma visão completamente distorcida da imortalidade. Ao se tornarem imortais, querem que todas as características de suas vidas permaneçam imutáveis: carruagens seguindo sempre a mesma moda, roupas com cortes a seu gosto, homens se comportando e falando do mundo que sempre compreenderam e apreciaram. Quando, na verdade, tudo muda, exceto o próprio vampiro.”

(Entrevista com o vampiro, Anne Rice)

E então, o leitor e Louis entendem o motivo pelo qual tão poucos vampiros caminham pelo mundo:

“E não há mais nada para aliviar o desespero, a não ser o ato de matar. E este vampiro sai para morrer. Ninguém encontrará seus restos. Ninguém saberá para onde foi. E geralmente ninguém a sua volta - pudesse ele ainda procurar a companhia de outros vampiros - ninguém saberá que ele está desesperado. Há muito tempo terá parado de falar de si mesmo ou de qualquer outra coisa. Ele desaparecerá.”

E por mais que a verdade seja simples e dura e Louis carregue um fardo já pesado demais de culpa, ressentimento e perda, tanto ele quanto Armand sabem que sua natureza o impele a admirar e se distrair com as belezas do mundo. Apesar de não encarar os dons de vampiro como uma dádiva, são eles que tornam suportável viver. Louis, poderia passar horas encarando uma pintura e se distraindo com a chama de uma vela. A simplicidade das coisas que admira com seus sentidos de vampiro são opostos ao emaranhado de sentimentos dentro dele.

“Compreenda, alguém deve morrer a cada noite que saio, até que tenha coragem de terminar com isto.”

(Entrevista com o vampiro, Anne Rice)

Se Drácula faz com que o leitor termine o livro arrepiado e temendo aquela criatura horrenda e amaldiçoada, os personagens de Anne Rice inspiram compaixão, embora com uma boa e saudável dose de fascínio. Porque, ao mergulhar na vida de Louis, percebemos que seus sentimentos não diferem muito dos nossos. Os monstros que nos assustam são mais parecidos com nós mesmos do que gostaríamos de pensar.

Referências 





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