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O absurdo de Camus em Abstract (Psychopomp), de Hozier

Abstract, 14° música do álbum Unreal/Unearth do cantor irlandês Hozier, foram atribuídos diversos significados. Há quem não a atribua nenhum, e há quem simbolize a letra em sua totalidade para nela ver algum sentido; outros, e este próximo sendo o significado mais atribuído, optam pelo caminho do meio e enxergam literalidade no relacionamento retratado pela música, ao passo que o acidente é apenas uma analogia para tal, uma retratação do início, meio e fim de uma paixão romântica.

O objetivo deste texto é propôr uma outra visão, entranhar um significado na cena já descrita pelo cantor. Amplificá-la em uma visão absurda: o absurdo do filósofo francês Albert Camus. A notoriedade da música de Hozier é que esta constitui o perfeito cenário para a compreensão do absurdo camusiano.

Para começar, o cerne da canção é a morte, ao passo que o do absurdo é o mesmo. Ambas as visões, o absurdo e Abstract, se iniciam cotidianamente - no caso da canção, numa memória do cotidiano - e são interrompidas por algo maior, intransponível.

“A morte é o conteúdo da absurdidade. É contra esse conteúdo que o homem consciente luta e se revolta.”

Camus acreditava que uma mente não conformada, mas sim revoltada com esse fator imutável não deveria ver na morte a falta de sentido da vida, e sim o começo dela, isso sendo feito não através do conformismo, mas da revolta. O conformismo leva à depressão, mas a revolta leva à clareza, à retomada do que é seu por direito, o aceite inconformado do próprio destino que faz de um homem o dono de seus dias.

Claro, esse processo só se inicia com a compreensão da própria finitude. Enquanto para alguns esse processo é feito automaticamente, não carecendo de um evento significativo, podendo ser natural e espontâneo, em Abstract o personagem principal, nosso sujeito oculto, se depara com a morte em primeira pessoa ao presenciar um acidente na estrada entre um carro e um animal:

“The speed that you moved [...] The creature still moving
That slowed in your arms
The fear in its eyes
Gone out in an instant”

“A velocidade com que você se movia [...] A criatura ainda se mexendo
Que desacelerou em seus braços
O medo nos olhos dela
Desaparecido em instantes”

Outro elemento descrito por Camus é o divórcio entre o homem e a natureza. A falta de compreensão embarcada pelo desespero que nos atinge ao notarmos que nossas aspirações, ética e moral de nada valem num universo inconsciente e impiedoso em sua ignorância inocente.

“Esse divórcio entre o homem e o mundo, entre o ator e seu cenário é propriamente o sentimento do absurdo.”

O ser humano atinge altos níveis de consciência, quebra barreiras, constrói muralhas e ergue impérios apenas para vê-los todos soterrados na poeira do esquecimento, a maioria nem digna da memória de um século. Dizemos que nosso amor quebra barreiras enquanto somos todos vítimas da impermanência da carne, algo que é perfeitamente retratado na música de Hozier quando vemos o protagonista com seu par romântico, em frente a uma cena que em nada combina com o amor infindável que estão sentindo um pelo outro. Em frente aos olhos de ambos está o lembrete de que tudo, inclusive eles, um dia termina:

“Your hand in my pocket
To keep us both warm
The poor thing in the road
Its eye still glistening.”

“Sua mão no meu bolso
Para nos manter quentes
A pobre criatura na estrada
Seu olho ainda brilhando.”

É aí que Camus difere de outros filósofos. A maioria demora uma vida para assimilar a crueza da verdade humana e morre vítima da tristeza; quantos filósofos não abandonaram suas filosofias em frente ao medo da morte?

Camus enxerga com frieza e sem saltos o nosso fim, sem remédio para a dor que a consciência traz, mas então se revolta, e na revolta descobre a felicidade através da consciência de um universo que nunca será compreendido pela pequenez da consciência de uma dentre as milhares de espécies evoluídas em um planeta que não deixa pistas de passado ou futuro. Camus aceita essa verdade, e opta por enxergar beleza nela. O personagem de Hozier faz o mesmo ao presenciar o ápice do absurdo e o divórcio entre o humano e o lar infinito que o cerca, entre o ator e seu cenário; dentre as milhares de conclusões possíveis de serem tiradas frente àquela situação, ele decide ver a situação pelo que ela é:

“Sometimes there’s a thought
Like you choose what you’re doing
But it comes to nought
When I look back through it”

“Às vezes tem um pensamento
Como se escolhêssemos o que estamos fazendo
Mas ele se torna nada
Quando olho para trás.”

E

“Darling, there’s a part of me
I’m afraid will always be
Trapped within an abstract from a moment of my life”

“Querida, tem uma parte de mim
Que tenho medo que sempre estará
Presa em um abstrato de um momento de minha vida.”

Quando vemos a música do ponto de vista de um acontecimento, nenhuma outra sublimação para além dessas é vista, e ambas ainda são acompanhadas de racionalidade. O personagem viu a paixão como ela é, não deixou de se entregar conscientemente a ela, viu a dor e a assumiu completamente, viu a morte como aconteceu, não sublimou ou traumatizou em cima do ocorrido. O divórcio foi para ele nu e cru:

“all my love and terror balanced between those eyes”

“todo o meu amor e terror equilibrado naqueles olhos”

A partir daí o personagem poderia seguir, pelo ponto de vista camusiano, dois caminhos: deixar a consciência da morte o vencer, desistir da vida antes mesmo de a ter perdido e, como ocorre em alguns casos, dependendo da disposição pessoal do sujeito, saltar e usar falsas e improfícuas esperanças, geralmente concedidas por outros seres humanos com menos esperança ainda e mais desespero, que pintam um passado e propósito humano onde não há, para lidar com a dor; ou encarar as coisas como elas são, e achar beleza no formato original da vida e do mundo e na nossa falta de noção acerca dele.

“Um mundo que se pode explicar, mesmo com raciocínios errôneos é um mundo familiar. Mas num universo repentinamente privado de ilusões e de luzes, pelo contrário, o homem se sente um estrangeiro. É um exílio sem solução, porque está privado de lembranças de uma pátria perdida ou da esperança de uma terra prometida.”

Nosso personagem, frente a esse sutil e sublime momento que, apesar de sua simplicidade e rapidez, ditará o resto da vida e da percepção do sujeito sobre ela, escolhe sua perspectiva:

“The earth from a distance
See how it shines.”

“A terra vista de longe
Veja como brilha.”

É assumir a ignorância que nos abre espaço para o conhecimento. Assumir a impotência e a impermanência concede à pessoa um espaço de poder em sua própria vida.

Quando Camus escreve “O mito de Sísifo” ele aponta que o personagem Sísifo da mitologia grega, condenado a rolar uma pedra monte acima com todo seu esforço por todo o dia apenas para ver, no final dele, a pedra rolar para baixo novamente, estava fadado ao fracasso se tentasse atribuir ao seu sofrimento outro significado, se tentasse justificá-lo. O segredo estava no mais simples, para assumir o destino de Sísifo, para fazer de seu lar e sua escolha a rocha que ele carregava e o monte que o derrotava, o personagem devia controlar a única coisa que ele realmente poderia controlar naquele cenário caótico: a sua revolta. E quando ele se revolta e, revoltado, empurra a rocha acima, ele pega o destino pela mão, por um simples fato: ele está feliz.

“One must imagine Sisyphus happy.”

“Deve-se imaginar Sísifo feliz.”

É sorrir ao destino, sorrir para a pedra em nossa frente, olhar a morte nos olhos e notar, sem adicionar ou retirar algo dela, como ela, e todo o resto, brilha.

O título da música, Abstract (Psychopomp), faz referência ao Psicopompo, personagens que em mitologias tinham a função de levar os humanos para o mundo dos mortos, como o barqueiro do Hades, por exemplo. Quando Hozier relaciona o abstrato com o símbolo da conclusão da vida, da transição da vida para a morte (Psicopompo), ele fecha o cenário camusiano do absurdo em sua totalidade.

Referências

  • Abstract (Psychopomp) (Hozier)
  • O mito de Sísifo (Albert Camus, na tradução de Ari Roitman e Paulina Watch)



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