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Quando a lenda se tornou literatura: como o vampiro se transformou em ficção

Quando estavam a poucos metros do montículo, a luz trêmula da lanterna encontrou o rosto pálido de Ângelo, inconsciente, como se estivesse dormindo, e o seu pescoço voltado para cima, onde um fio vermelho de sangue descia até a gola; e a luz da lanterna tremulou sobre outro rosto, que do meio do banquete olhava para cima; sobre dois olhos profundos, mortíferos, que enxergavam a despeito da morte; sobre lábios separados, mais vermelhos que a própria vida; sobre dois dentes cintilantes onde brilhava uma gota rosada.

(Porque o sangue é vida, de Francis Marion Crawford. In: Contos Clássicos de Vampiro, p. 117-118)

Enquanto um ser que, usualmente, nos chega ao conhecimento por meio de produções da cultura pop, o vampiro teve seu berço nas tradições folclóricas da Europa Central e Oriental, especialmente na Polônia e na região da Península Balcânica, como nos explica Matangrano no prefácio de O Vampiro. Apesar disso, precisar a origem folclórica da criatura não é tarefa simples, considerando a baixa incidência de registros significativos datados de períodos anteriores à época moderna; sabe-se, porém, que boa parte das culturas medievais germânicas, eslavas ou balcânicas contavam lendas acerca do retorno dos mortos, que não resultavam em uma nova existência. Esse retorno, na verdade, consistia num estado que pairava entre vida e morte, quando certas criaturas ocupavam corpos de cadáveres.

Esse entendimento de nova vida do vampiro é próximo daquele proposto pelo termo vârkolac, na acepção que se refere ao “espectro composto de um cadáver e um demônio”, conforme Leconteux pontua em História dos Vampiros. Com essa palavra, não só a reanimação do morto é trazida à tona: o ser que o ocupará passa a ser descrito como uma entidade maléfica. Além do vârkolac, outras denominações são atribuídas à criatura, diferenciadas a partir de características pertinentes à origem e ao comportamento do ser. Aleksei Konstantinovitch Tolstói nos traz:

Os vurdalaks, senhoras, sugam, de preferência, o sangue de seus parentes mais próximos e de seus amigos mais íntimos, que, mortos, tornam-se por sua vez vampiros, de modo que se acredita terem sido vistas na Bósnia e na Hungria aldeias inteiras povoadas por vurdalaks

(A família do vurdalak, de Aleksei Konstantinovitch Tolstói, traduzido por Nina Horta. In: Contos de Horror do Século XIX, p. 29)

(Nota: vurdalak é, na verdade, um vocábulo croata e dálmata, introduzido no vocabulário russo por Alexander Pushkin. Fonte: LECONTEAUX, 2005.)

A citação acima, oriunda de um texto literário, abre espaço para nos perguntarmos sobre os fatores que levaram o vampiro, antes presentes em documentos oficiais, a ocupar espaço nas obras ficcionais, indicando uma realocação do local ocupado pela criatura. A seguir, abordaremos pontos relevantes para a compreensão dessa mudança. Antes disso, assinalamos que, apesar da origem acima pontuada para o vampiro folclórico, é relevante recordar que a crença em mortos-vivos se faz presente no folclore de todos os continentes, como indica o professor Alexander Meireles no texto introdutório de Contos Clássicos de Vampiro.

Natural, sobrenatural e o mal

A ficção bem nos apresenta a usual associação da figura vampiresca ao mal. Lucy Westenra, por exemplo, ao tornar-se vampira e emergir como uma criatura fatal, traduz a linha de pensamento que afirmava o “perigo” incitado pela associação do feminino e de sua sexualidade ao decadente, aspectos visualizados como ameaças aos ideais de “pureza feminina” predominantes até metade do século XIX, como explicam Gruner e Silva. Essa caracterização se apoiava em proposições científicas do fin-de-siècle e personagens como Lucy atuavam como retratos do interesse da medicina oitocentista pelo corpo feminino, atribuindo às mulheres uma suposta “fraqueza” como causa biológica, associando-as à decadência física e moral. Os setores conservadores das classes médias vitorianas, ao mesmo tempo que estabeleciam para a mulher um papel ideal de “guardiã doméstica”, suspeitavam de sua (suposta) tendência decadentista.

Love and Pain ou Vampire, por Edvard Munch (1893)

Mas é possível ir além e falar de uma diferenciação semântica entre natureza e sobrenatureza que passou a ser utilizada como um recurso contra aquilo considerado maléfico. Para conduzir nosso pensamento nessa direção, nos basearemos no livro Vampiros na França Moderna, de Gabriel Braga, considerando, ainda, o recorte do objeto de estudo estabelecido pela pesquisa que resultou nesta obra (1659-1751).

O conceito de Natureza não era único e singular na França do final do século XVII a meados do século XVIII. Os múltiplos significados atrelados a esse conceito resultaram em interpretações plurais de fenômenos tidos como naturais ou sobrenaturais. Nesse período, a elite letrada recorria ao racionalismo como meio de combater superstições e crendices, buscando uma justa opinião. Essa busca, almejando o alcance de um entendimento que superasse credulidades, revelava a existência de novos critérios de investigação para que tal objetivo pudesse ser cumprido e uma das mudanças por trás dessa nova maneira de pesquisar é denominada controle da imaginação investigativa por Braga. A expressão indica um controle exercido sobre a imaginação com o intuito de redirecionar os esforços investigativos para a Natureza, tida como o lugar do indefinido, e, por essa característica, ela se constituiu como alvo de inferências por parte dos estudiosos.

Cabe um destaque às categorias infinito e indefinido. A primeira comportava Deus, que, tido como onisciente e onipotente, não poderia ser capturado pelo entendimento humano; a segunda cumpriu um papel relevante para o desenvolvimento das ciências, pois estas poderiam agir sobre o indefinido: era tudo aquilo que não fosse Deus e, portanto, se mostrava passível de alcance pela compreensão humana e pelo pensamento crítico. Nessa divisão, esbarramos em algumas questões relacionadas ao sobrenatural e ao natural, como o entendimento da figura do Diabo. Durante o Medievo, a Igreja comprometeu-se em construir um Diabo simetricamente oposto a Deus, fato que terminou por resultar em um Satã dotado de plenos poderes, embora essa característica não correspondesse à sua história bíblica. Porém, especialmente no século XVII, a Igreja igualmente se empenhou em revestir Satanás numa roupagem menos potente e poderosa, rebaixando-o da categoria de sobrenatural. Mesmo sendo uma criatura pertencente ao domínio da sobrenatureza, ele passou a estar circunscrito à Natureza, portando poderes limitados e sendo ele mesmo reduzido em relação a Deus. Neste momento, considerou-se o Diabo como apto a exercer apenas um poder de influência, despejado, justamente, na imaginação.

A recorrência à imaginação e suas potencialidades revela um dos pontos do período que podem lançar luz sobre esse novo modo de investigar, além do incentivo à dúvida - a fim de encontrar a verdade - e a admissão de mais de uma forma de saber para o conhecimento. A própria ideia de imaginação investigativa indica que a busca pelo conhecimento a ser alcançado pela pesquisa passava pelo crivo imaginativo - pela produção de imagens -, que se mostrava relevante para a abstração. O processo de criação de imagens mentais a partir de objetos sensíveis mostra uma transformação dos estímulos captados pelos sentidos e, assim, a imaginação poderia ser utilizada para se chegar à compreensão. Por essa característica, a imaginação era também vista como perigosa e, embora destacada como uma “importante faculdade do espírito”, deveria ser utilizada com cautela. Ela seria capaz de distorcer a percepção dos estímulos e era importante manter a “boa saúde” imaginativa, valendo-se de estudo e acúmulo dos conhecimentos para tal. O sobrenatural se mostrava nocivo ao poder levar impressões errôneas àqueles que não controlavam a imaginação e, logo, o controle da imaginação implicava em uma arma na luta contra o Mal. Nisso, denota-se que, além dos alertas quanto ao “bom uso” da imaginação e da adoção da Natureza como o local “adequado” para pesquisa, os temas das investigações também precisariam atravessar um filtro para chegar às publicações oficiais do período. Num contexto de apreço pela Natureza, textos sobre vampiros não eram bem recebidos e, assim, passaram a chegar às pessoas somente por meio de poemas e romances; o sobrenatural já não era mais investigado de maneira científica no século XVIII. Mas ainda nos resta comentar sobre o medo duplo causado pelos mortos-vivos sugadores de sangue.

O horror! O horror!

[img 02] Legenda: Il Bacio, de Antonio Ambrogio Alciati, 1918. Fonte: MeisterDrucke.

Enquanto, por parte dos eruditos, havia um esforço em trilhar uma distância do sobrenatural, surgiam, paralelamente, relatos povoados de acontecimentos fantásticos. Isso demonstra um desequilíbrio entre o local de destino dos esforços imaginativos e o que era considerado, de fato, imaginável pelas pessoas, ainda conforme Braga. Esses relatos contavam sobre o comportamento dos mortos-vivos e os danos causados por eles, abrindo margem para visualizarmos o medo duplo: de um lado, havia uma ameaça à vida causada pela presença e pela existência das criaturas; de outro, erguia-se um temor às reações sociais causadas não somente pelo pânico despertado pelos vampiros, mas pelo perigo intelectual que eles representavam, aspecto já explorado na seção anterior deste texto.

Il Bacio, por Antonio Ambrogio Alciati (1918)

O recurso utilizado para conter o segundo medo veio sob a forma de classificação desses relatos enquanto crendices que não mereciam ser estudadas com afinco e seriedade - e isso funcionou relativamente bem durante o século XVII. Na última década setecentista, porém, periódicos tornaram a trazer artigos sobre sugadores de sangue em suas páginas, relacionando-os a demônios. Vale lembrar que, no contexto da época, a França já listava casos de possessões demoníacas em décadas anteriores e a caça as bruxas só viria a ser proibida no país no final do século XVII. O retorno dos relatos dos mortos-vivos aos periódicos, portanto, não se constituiu como algo isolado e esteve em meio a mais acontecimentos sobrenaturais de repercussão coletiva.

Citamos, ainda, mais um aspecto do medo. Como Matangrano explica em A recriação transnacional do vampiro, o medo cristalizado na criatura indica, ainda, um medo do outro. O vampirismo foi retratado como uma moléstia e sua disseminação, a exemplo do trecho do conto A família do vurdalak trazido neste texto, se mostra como uma espécie de pandemia. Também chama atenção o fato de que o morto-vivo era visto como externo às comunidades; como algo ou alguém vindo de fora, nocivo aos demais pertencentes àquele local - Ruthven e Drácula são estrangeiros não por um acaso. Grupos minoritários, então, eram associados ao surgimento de novas doenças, sublinhando a aversão ao estrangeiro.

Fechando o caixão: notas finais

[img 03] Legenda: Colagem de Max Ernst para Une Semaine de Bonté (livro 03), 1934. Fonte: Spamula.net

Colagem de Max Ernst para Une Semaine de Bonté (livro 03) (1934)

Neste texto, tivemos a intenção de demonstrar como as mudanças no significado de conceitos, bem como na maneira de conduzir pesquisas, implicaram em diferenciações na alocação dos vampiros em produções textuais. Discorremos, também, sobre a recorrente atribuição do mal à essa criatura e como o maléfico se caracterizou de tal maneira. Encerramos nosso escrito sublinhando alguns dos pontos que sintetizam o sentimento de medo associado aos sugadores de sangue, e, dentre eles, está a hostilidade ao estrangeiro, aspecto que permanece terrivelmente contemporâneo.

Referências



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