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Circe: feiticeira e protetora


Na Odisseia, poema épico que narra as desventuras de Odisseu durante e após a Guerra de Tróia, Circe é introduzida ao leitor como uma feiticeira cruel que, após transformar a tripulação de Odisseu em porcos, tenta estender o mesmo tratamento a ele. Odisseu, como o herói corajoso e inteligente que é, consegue resistir ao encanto de Circe com a ajuda de um deus. Após um breve relacionamento com ela, Odisseu retorna para casa e para a sua esposa, Penélope, que se tornou um símbolo do comportamento virtuoso e comedido esperado das mulheres na cultura grega – templos chegaram a ser erguidos para ela, que permaneceu leal ao marido apesar da sua ausência de mais de 20 anos e dos relacionamentos extraconjugais e filhos que ele teve no período. Enquanto Penélope se tornou conhecida por sua virtuosidade, o seu marido ficou conhecido como um herói.

Na Grécia antiga, as mulheres possuíam pouquíssimos direitos se comparadas aos homens, não podendo possuir propriedades, direitos políticos ou conjugais. Sua educação era incompleta, não abrangendo assuntos que poderiam estimular demais o seu pensamento, e o seu valor viria pelo casamento. Elas eram submissas ao pai, e, após o casamento, ao marido, lhes devendo obediência e respeito. Traições eram motivos plausíveis para o assassinato se não da esposa, pelo menos do amante, e a violência doméstica era corriqueira no dia a dia, fosse de forma física, moral, sexual ou patrimonial. Os homens podiam ter amantes fixas, se relacionar com prostitutas, ter filhos com outras mulheres, se envolver em assuntos políticos, e tinham plena liberdade de ir e vir, comportamento completamente repudiado se viesse de uma mulher. Mesmo na mitologia grega, com suas deusas poderosas, ninfas e feiticeiras, são muitos os mitos que retratam a desigualdade dos sexos e a violência contra as mulheres, seja por homens quaisquer ou por seus familiares e amantes.

Em Circe, de Madeline Miller, podemos acompanhar uma releitura da história da feiticeira que mostra outra face não apenas do seu relacionamento com Odisseu, mas do seu mito enquanto feiticeira cruel. Apesar de ter sangue de titãs e ser uma feiticeira poderosa (quiçá, a mais poderosa de todas), Circe nunca deixa de ser vista por seus semelhantes como "apenas uma mulher". Miller entrega aos leitores não somente a releitura de um mito grego, mas uma Odisseia feminina que, além de jogar luz às injustiças sofridas pelo sexo feminino como um todo, tanto na Grécia antiga quanto na atualidade, especifica as diferentes formas com que cada mulher absorve e se defende destas crueldades, especialmente com as poucas opções disponíveis à época.

Miller escreve sobre a vida de Circe desde o seu nascimento, do qual, sendo uma ninfa, Circe se lembra bem, e a decepção de sua mãe por ter uma filha que descreve como comum, sem nenhuma característica especial. Sua infância solitária, atormentada pelas crueldades dos irmãos mais novos e carente da atenção do pai, o primeiro amor e o início de seus poderes, seguido do seu exílio da família, são todos descritos por uma Circe jovem, que ainda não entende plenamente como o mundo dos homens (deuses ou mortais) funciona, mas que já compreende que parece não possuir lugar para ela. Ela percebe ainda no início da sua vida que os homens são cruéis, e os deuses ainda mais, e que assim como existe uma abismo entre homens e mulheres, existe outro entre deuses e deusas. Ainda que seja uma ninfa imortal, com poderes únicos, Circe não deixa de ser uma mulher. E pode até possuir algum poder para agir contra homens mortais, mas agir contra deuses está fora de cogitação: ela não deixa de ser apenas uma mulher e ninfa. 

O livro explora outras faces da feminilidade além das que Circe desenvolve ao longo de sua vida. Algumas que ela sequer entende e outras que sente na própria pele: a ambição e egoísmo da sua irmã Pasiphae, como forma de autoproteção; a crueldade da sobrinha Medeia, disposta a fazer tudo por amor após uma vida de abusos nas mãos do pai; a submissão de Penélope para tentar garantir a proteção do filho e a satisfação do marido; a inocência de Ariadne, que enxerga um monstro como seu irmão e confia cegamente no amor de um herói. A vida de Circe toca a de todas essas mulheres, de uma forma ou de outra. A algumas ela tem algo a ensinar. Com outras, algo a aprender. O que une todas essas personagens é a vida feminina, o que se espera e o que se teme delas enquanto mulheres, e o quanto seus familiares e maridos podem machucá-las sem sofrerem nenhuma punição.

A autora faz um trabalho muito bom em descrever de maneira compreensível os tipos de violência sofridas por estas mulheres, sem transformar isso em uma panfletagem sobre os tipos de violência existentes. A violência de um pai que não enxerga as filhas como nada além de uma moeda de troca, enquanto seus filhos podem viajar o mundo e erguer impérios, não é descrita de maneira literal, mas pela perspectiva de uma ninfa que gostaria de ter os mesmos direitos que os irmãos, ainda que não culpe o pai por isso. Sua irmã, Pasiphae, é cruel e maldosa com todos, descrita pela própria Circe como preguiçosa e sedenta por poder. Logo descobrimos, no entanto, como Pasiphae usa de suas magias e ameaças para se proteger da violência do marido, ainda que não se importe em atingir outros para esse fim.

Já suas sobrinhas agem como dois lados de uma mesma moeda: enquanto Medea pune a violência do marido com derramamento de sangue inocente, Ariadne morre sozinha em uma ilha deserta, abandonada pelo homem que ela auxiliou e protegeu, deixando a casa dos pais para lhe acompanhar. Na vida e na família de Circe parece sempre haver extremos: ou você comete atrocidades ou atrocidades são cometidas contra você. A feiticeira fica perdida em um meio termo, sem saber qual dos dois é o seu caso, assim como não sabe qual é o seu papel na longa árvore genealógica. Apenas uma ninfa, sujeita a violências como as ninfas sempre são? Uma feiticeira poderosa, tão poderosa que foi banida pelos deuses? Uma filha, uma irmã, uma neta? Com uma visão muito mais humana que o restante de sua família, ao longo da sua eternidade ela fica por vezes de um lado da moeda, por vezes de outro.

As atitudes de Circe talvez a transformassem em heroína caso fosse homem. Punir homens maldosos, matar monstros, obter poder imensurável através de barganhas… Todas essas atitudes são louvadas em mitos conhecidos até hoje, como os de Perseu, Hércules, Teseu e muitos outros. Mas quando essas ações são feitas pelas mãos de uma mulher - principalmente se ela tiver poderes como Circe - são motivo de medo e terror. Os próprios deuses temem o que ela pode fazer, ainda que muitos deles apadrinhem heróis com atitudes semelhantes, como é o caso de Atenas e Odisseu. As desigualdades entre homens e mulheres, deuses e deusas, ninfas e titãs, é óbvia ainda que não seja descrita por Miller de forma óbvia. É Pasiphae, a irmã que a humilhava e em quem ela não confia, quem tenta abrir os olhos de Circe para a realidade do seu mundo:

“Eles não ligam se você é boa. Eles mal ligam se você é perversa. A única coisa que faz com que escutem é o poder. Não é o suficiente ser a favorita de um tio, agradar algum deus na cama dele. Não é o suficiente ser linda, pois quando você for até eles, se ajoelhar e dizer ‘eu fui boa, você vai me ajudar?’ eles franzem as sobrancelhas. ‘Ah, querida, não tem como. Oh, querida, você vai ter que aprender a conviver com isso. Você pediu ao Hélio? Você sabe que eu não posso fazer nada sem o consentimento dele’.”

Assim como muitas crianças sobreviventes de lares narcisistas e violentos, Circe demora a compreender as violências sofridas e como elas a moldaram. Ser queimada viva pelo pai por ousar discordar dele em um jantar de família, exilada assim que os deuses questionam seu poder, as humilhações e agressões sofridas pela mãe e irmãos, a abstenção de todos nas muitas situações de violência que sofre por centenas de anos, ainda que seus familiares sejam deuses e titãs, são apenas alguns dos exemplos de violência doméstica sofridos por Circe. Apesar disso, assim como muitos filhos de pais narcisistas, ela demora a entender a extensão das violências sofridas. Durante sua estadia na casa dos pais, ela é uma ninfa codependente, com baixa autoestima, insegura e sempre tentando alcançar o sentimento de pertencimento.

É através do seu exílio que, ironicamente, Circe consegue se tornar uma pessoa mais segura de si e desenvolver os seus muitos potenciais. Longe da família, ela se torna uma feiticeira poderosa e transforma sua prisão em uma espécie de lar, apesar de sempre se lembrar de que uma gaiola de ouro ainda é uma gaiola. Ela aprende a lidar também com a crueldade e benevolência dos homens: a escravidão de Dédalo, uma estrela que logo se apaga; as mentiras dos irmãos e do pai, que a desprezam; a companhia de Hermes, de Odisseu e de outros, que também contribuem para a sua história. E, ainda que seja uma ninfa, filha de um titã poderoso e uma feiticeira habilidosa, Circe não deixa de estar exposta a violências, sendo uma mulher em um mundo feito por e para homens. Homens e deuses, ela percebe, são quase o mesmo e, estando sozinha, isolada de qualquer outra pessoa ou deus, Circe pode ficar ainda mais exposta a essas violências se não estiver em um constante estado de alerta.

Circe, por Frederick Stuart Church (1910)

Não apenas na literatura de Miller, mas também na sociedade grega à época de Homero, uma das únicas formas de proteção que as mulheres possuíam era seu poder “religioso”, pois suas maldições e seu poder ritualístico eram temidos entre os homens. Devido a isso, as mulheres deviam ser silenciadas em público e dentro de casa, tendo suas vozes e a externalização de seus desejos restritos a rituais religiosos. Circe, por ser uma deusa e uma feiticeira, não obedece às regras sociais completamente, mas ainda assim é possível identificar que o seu poder é restrito aos seus encantamentos e poções. Ela não possui poder político, físico ou social. Ainda que possuísse, ele estaria restrito a sua ilha, uma vez que ela não poderia deixar o exílio.

O poder de escolha se torna crucial na vida de Circe, e, ainda que sua magia lhe dê muitas escolhas, suas escolhas principais (viver e morrer, ir e vir) são minadas pela sua condição familiar e o exílio imposto pelos deuses. É aos "trancos e barrancos" que ela experimenta a maternidade, desde uma gravidez difícil e solitária ao parto traumático, e à inquietação do filho enquanto cresce na sua gaiola dourada. A ameaça de fatores externos contribui para a psicose pós-parto que lhe acomete, e a falta de rede de apoio ou companhia contribui para uma situação que nenhuma de suas poções e feitiços parece solucionar. A retratação que Miller faz da maternidade solo é crua e genial, especialmente após acompanharmos algumas centenas de anos da vida de Circe e a intensidade de suas relações familiares.

A maternidade é um divisor de águas na vida de Circe, tanto para o seu amadurecimento quanto pela nova fragilidade adquirida. A relação ora amorosa ora conflituosa com o filho ganha um novo tom quando Penélope - a virtuosa esposa de Odisseu - e seu filho chegam à sua ilha. Ao abrigar os dois, Circe se aproxima da mulher considerada um exemplo de comportamento feminino e passa a entender um pouco melhor a realidade da situação e como a submissão de Penélope ao marido acabou machucando o próprio filho, que cresceu em um lar talvez tão caótico quanto o de Circe, ainda que protegido pelo seu status masculino.

As violências a que Penélope e seu filho foram submetidos ocorrem em um contexto diferente do que ocorreu com Circe. Eles são, afinal, uma família mortal que não possui os poderes ou influência dos deuses. Ainda assim, seja durante a longa ausência de Odisseu, em que ficaram à mercê dos homens que buscavam substituí-lo, seja lidando com o comportamento errático de Odisseu nos anos após seu retorno, ambos também são vítimas de violência doméstica. No caso de Odisseu, Miller faz mais uma vez um retrato brilhante de um homem que passou anos em guerra e então anos tentando voltar para casa: marcado pelo transtorno de estresse pós-traumático (TEPT), com um comportamento impulsivo e violento, incapaz de se relacionar com o outrora amado filho de maneira saudável ou de confiar na esposa. Penélope, o símbolo da virtude, se vê presa a esse papel idealizado e não consegue proteger o filho do marido, ou lidar com um homem tão diferente do que o seu marido era.

Já Circe, no entanto, encontra em Penélope alguém que ela há muito precisava: uma mãe, uma amiga e uma apoiadora. O relacionamento destas duas mulheres, cujas vidas se entrelaçam de diferentes maneiras, acaba dando um toque especial de sororidade, proteção e amizade à narrativa. Ainda que com suas opções de escolha limitadas, as mulheres conseguem transformar a ilha, outrora uma prisão, em um refúgio, um santuário onde a violência não pode alcançar, pelo menos por algum tempo.

Circe é chamada de feiticeira, mas poderia também receber a alcunha de protetora. Se não de outros, pelo menos de si mesma. Sua eternidade é uma Odisseia própria, narrada sob a perspectiva de uma mulher, com dores e prazeres que apenas a vida das mulheres proporciona e que, muitas vezes, apenas as mulheres conseguem entender. E Madeline Miller conseguiu criar uma história que respeita os mitos milenares e a natureza humana, sendo realista e mágica ao mesmo tempo.


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Comentários

  1. Gosto muito desse livro e acho a transposição da Madeline extremamente inteligente!

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