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O vazio que anseia: a figura da preceptora no período vitoriano

Quando o romance Jane Eyre foi publicado em 1847, suscitou opiniões diversas e efusivas. Algumas resenhas aplaudiram o vigor e a originalidade da narrativa. Outras, frisaram o caráter nocivo que o livro poderia exercer sobre os leitores influenciáveis. O Atlas o descreveu como “um dos mais poderosos romances domésticos que foi publicado em muito tempo”. Já a escritora Margareth Oliphant se referiu à personagem principal como “uma pequena perigosa inimiga da paz”. E não foi a única a enxergar um caráter disruptivo na trama. Lady Eastlake, no Quarterly Review, salientou que a personagem era a “personificação de um espírito degenerado e indisciplinado” e que “o tom da mente e do pensamento que derrotou a autoridade, que violentou códigos divinos e humanos e que causou rebelião no lar, é o mesmo que escreveu Jane Eyre”. Além da insatisfação com a narrativa, outra linha de pensamento ligava essas e outras opiniões: a indignação com a ousadia da autora em dar protagonismo a uma figura que suscitava sentimentos contraditórios dentro da rígida sociedade vitoriana: a preceptora.  

A preceptora, ou professora residente, representava um quiasma social, pois estava dentro do lar vitoriano, mas não pertencia propriamente a ele. Era, por um lado, uma mulher que vinha de fora da esfera familiar burguesa, e dessa forma, não era considerada parte da mesma, apesar de educar as crianças da casa e viver com elas por períodos geralmente extensos. Por outro lado, ela também era sui generis dentro de sua própria classe (dos prestadores de serviço), pois não estava submetida à criadagem. A própria Charlotte Brontë, em carta a sua irmã Emily Brontë em 1839, esboçou essa ambiguidade: 

“A preceptora particular não tem existência, não é considerada um ser vivo e racional, exceto em relação aos deveres enfadonhos e cansativos que tem que cumprir. Enquanto está ensinando, trabalhando e divertindo as crianças, tudo bem, mas se rouba uns momentos para ela, torna-se incômoda.”

A profissão era uma das poucas atividades remuneradas que uma mulher vitoriana poderia exercer sem perder a confiabilidade e certa respeitabilidade. A formação para educar era a única área que permitia sustento a uma mulher de classe média sem dinheiro, como bem representou Charlotte em Jane Eyre. Sua órfã, destituída de poder e dividendos, recebe, no internato Lowood, a educação que lhe confere integridade e aptidão para se posicionar no mercado de trabalho. Como bem frisa Maria Conceição Monteiro: “na Inglaterra do século XIX, a mulher pobre e distinta tinha apenas um recurso disponível de independência se não casasse: abraçar-se com a literatura e exercer a profissão de professora ou de preceptora”

No lar, se exigia que a preceptora ensinasse a boa educação inglesa, considerada necessária para manter o status de englishness da classe burguesa, em ascensão durante o período vitoriano. Sua missão era incutir valores sociais e morais nas crianças através da educação doméstica e familiar. Dentre suas atribuições se esperava que dominasse a gramática, a literatura inglesa, a história, a geografia e também um pouco de aritmética. Para as meninas, a norma determinava que o ensino as dotasse de habilidades humanísticas, além de moldá-las para ser a mulher ideal: dócil e hábil em diversas atividades, como música, desenho, dança e línguas modernas. Para os meninos, a educadora deveria ser um dos instrumentos responsáveis por propagar os ideais imperialistas que serviam à construção e manutenção do nacionalismo inglês. A preceptora vitoriana e seu trabalho faziam parte do projeto de conservação da masculinidade burguesa etnocentrista, necessária para a expansão do Império Britânico. 

Dessa forma, Jane Eyre e outros livros com o mesmo tema que surgiram no período, (inclusive Agnes Grey, romance de Anne Brontë, publicado também em 1847), espelhavam a vida de milhares de mulheres que estavam na mesma categoria, categoria esta que mesclava necessidade e conflito, pois, apesar de absorver um papel burguês de gênero para ensiná-lo aos seus pupilos, a preceptora não podia viver de acordo com esse mesmo padrão. Para sobreviver, ela performava o papel de dama, mas sua condição social a obrigava a não viver como uma. Era, em suma, uma figura necessária para a manutenção e propagação do status quo, mas que não pertencia a ele de forma concreta. Presente e ausente, a preceptora ocupava um não-lugar social. 

Charlotte Brontë

É interessante reparar, no entanto, em como uma figura revestida de certa invisibilidade era, ao mesmo tempo, alvo de constante observação e escárnio. Apesar de precisar dela, a família burguesa também a temia, pois considerava a preceptora uma ameaça ligada à sexualidade. 

“O papel da preceptora era constituído por dois discursos conflitantes. Ela era uma lady e figura maternal que policiava o desejo sexual dos pupilos, e era também, às vezes um objeto de desejo dos homens de alta classe, na casa onde trabalhava.”

É nesse medo, de que a preceptora transgredisse a ideia de figura assexuada que se esperava dela que reside, talvez, o cerne de muitas críticas negativas à Jane Eyre, pois o livro ilustrava a vida de uma preceptora que cruzava o limiar que lhe fora imposto (o não-lugar silencioso) e se apaixonava por um homem acima de sua posição social. A narrativa, carregada de desejos e potência, inclusive sexual, exemplificava o medo vitoriano de que a preceptora poderia fazer o mesmo na vida real e ameaçar, portanto, a paz do lar. Outro receio da classe média em relação a essa figura era que a preceptora, por vir muitas vezes de famílias trabalhadoras (filhas de operários, não raramente, ascendiam à carreira), poderia levar para o âmbito doméstico médio a degradação que as classes superiores pensavam ser intrínsecas à classe trabalhadora.

A narrativa de Charlotte Brontë, naquele momento, dava eloquência a uma mulher que, por regra, deveria permanecer no anonimato das casas burguesas, escondida em cantos obscuros e sombreados. A história, contada em primeira pessoa, rompia a ordem simbólica ao frisar que a personagem era um ser humano livre, que reconhecia os próprios desejos e respeitava a si mesma. Ao discursar que as mulheres “sentem da mesma forma que os homens”, Jane chocou uma parte da opinião por transgredir a noção de completa submissão da mulher vitoriana em relação aos seus sentimentos e vontades. Ao lutar contra o domínio do outro, a personagem assumiu um tom de não conformidade com a regra que impedia mulheres de sua classe de se moverem livremente pelo corpo social. 

“Eu me importo comigo mesma. E quanto mais solitária, sem amigos e sem sustento, mais eu me respeito.”

Para o ano de 1847, teria sido mais fácil para Charlotte que ela tivesse moralizado o final de Jane Eyre e punido a sua protagonista por ousar fazer escolhas e se negar a assumir o papel puro e abnegado dela esperado. Mas ao se desviar do final corretivo que se observava comumente em histórias com protagonistas femininas, a autora possibilitou a reflexão sobre a existência da preceptora enquanto ser humano com vontades, desejos e necessidade de liberdade. Para alguns, isso representou um avanço nos debates sobre gênero e classe que, aos poucos, vigoravam no período. Para outros, como Lady Eastlake, significou um ataque direto a ordem e a moralidade estabelecidas. 

Em meio a apaixonados e descontentes, talvez o mais importante seja que, ao final, quando a personagem encontra paz e estabilidade emocional a despeito das forças contrárias, a autora assinala, para a posterioridade, que ninguém deve ser socialmente punido por lutar pela própria felicidade. E a força dessa mensagem ultrapassa quaisquer críticas negativas, do presente e do passado. 

Referências

  • A sound English Education (Marianne Thormählen)
  • Figuras errantes na época vitoriana: a preceptora, a prostituta e a louca (Maria Conceição Monteiro)
  • Jane Eyre (Charlotte Brontë)
  • O espírito do vento: uma fábula do desejo (Maria Conceição Monteiro)
  • Representações do feminino em The turn of the screw: a governanta como anjo do lar e monstro à solta (Linda Catarina Gualda)


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