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Carrie White e a monstruosidade feminina


No ano em que Stephen King completará 75 anos, a editora Suma publicou uma nova edição de uma das mais famosas histórias do mestre do horror. A história da adolescente que tinha uma mãe abusiva e fanática, que sofria com humilhações na escola e descobre ter poderes telecinéticos após sua primeira menstruação: trata-se de Carrie, primeiro livro de King, publicado pela primeira vez em 1974, com nova tradução de Regiane Winarski, mais um título que agora faz parte da coleção Biblioteca Stephen King, que já contava com os títulos Trocas Macabras, A Metade Sombria, A Incendiária, O Iluminado, A Hora do Lobisomem e Cujo.

Apesar de ter sido publicada pela primeira vez há quase cinquenta anos, a história de Carrie White continua muito atual, para melhor e para pior, provocando reflexões, pesquisas e trazendo a cada releitura imagens icônicas já imortalizadas na história do horror. Mesmo sem ser um fã, é impossível ficar indiferente às injustiças que Carrie sofreu ou não se lembrar da lendária cena do baile de formatura e, a maneira com que direta ou indiretamente, sua história demonstra como apenas o fato de ser uma mulher pode ser considerado um ato monstruoso. 

Sangue

O sangue está em todos os lugares na história de Carrie White, seja apenas na menção ou em sua materialização. Sangue de diversos tipos: o menstrual, o de porco ou o da morte. E após uma rápida reflexão é fácil entender o porquê: a imagem da mulher sempre foi ligada ao sangue, principalmente ao menstrual, e durante a caça às bruxas essa perseguição se intensificou transformando tudo que representa o feminino em algo monstruoso, perigoso, sujo e depravado.

E não se trata apenas de uma especulação, a própria mãe de Carrie se refere a ela muitas vezes como uma bruxa. O fato de Carrie começar a desenvolver seus poderes durante sua menarca não é um caso isolado. O ciclo menstrual sempre foi visto como uma época em que a mulher fica mais poderosa ou mais perigosa, desde o início dos tempos, como foi apontado por Barbara Creed em seu livro The Monstrous-Feminine:

"Em algumas culturas, uma jovem que teve sonhos proféticos na época da sua menarca era frequentemente apontada como uma futura xamã ou bruxa. Novamente, vemos a associação entre o sangue da mulher e o sobrenatural. A menstruação também estava ligada à maldição da bruxa - tema explorado em Carrie. As bruxas eram temidas porque pensavam que podiam lançar terríveis feitiços e trazer a morte para aqueles que elas amaldiçoaram. Historicamente, a maldição de uma mulher, principalmente se estivesse grávida ou menstruada, era considerada muito mais potente do que a maldição de um homem. Uma 'maldição de mãe', como era conhecida, significava morte certa. A maldição de uma mulher que também praticava bruxaria era ainda mais mortal do que a de uma mulher comum."

A maldição de sangue é citada muitas vezes por Margaret White, mãe de Carrie, que utiliza de seu fanatismo religioso para tentar explicar suas ações odiáveis, como não contar à filha que a mesma algum dia iria menstruar, fazendo a menina pensar estar morrendo quando sangra pela primeira vez. Durante a cena no vestiário, Carrie mais uma vez é humilhada por suas colegas de turma, que começam a gritar, rir, xingar, agredir, jogando absorventes em cima da moça assustada que não fazia ideia do que estava acontecendo. Quando Carrie vai até a mãe à procura de conforto, mais uma vez é tratada como um monstro,pela mulher que, mesmo sendo sua mãe, também vê o feminino como demoníaco.

"Você é mulher. [...] E Deus fez Eva da costela de Adão. Levanta, mulher. Vamos entrar e orar. Vamos orar a Jesus por nossas almas femininas fracas, malignas e pecaminosas. [...] E Eva era fraca e soltou o corvo no mundo e o corvo se chamava Pecado, e o primeiro pecado foi o coito. E o Senhor visitou Eva com uma maldição, a maldição era a maldição do sangue. E Adão e Eva foram expulsos do jardim e jogados no mundo e Eva descobriu que sua barriga crescia com uma criança dentro.[...] E houve a segunda maldição, a maldição do parto e Eva teve caim em meio a suor e sangue[...] E depois de Caim, Eva deu à luz a Abel, por ainda não ter se arrependido do pecado do coito. E assim o senhor visitou Eva com a terceira maldição, e essa foi a maldição do assassinato."

A mulher sempre foi vista como um outro masculino imperfeito, mais propensa a loucuras e ao desejo carnal e menos inteligente e incapaz. A bruxa era vista como algo ainda pior, como o outro feminino, a que mata bebês ao invés de cuidar deles, aquela que amamenta seres demoníacos com sangue, a que envenena e castra homens, que destrói plantações e a que se deita com o diabo. Assim como é lembrado pela própria Carrie em um trecho do livro:

"Ela pensou em diabretes e famílias e bruxas (eu sou uma bruxa mamãe a puta do diabo) Cavalgando pela noite, azedando o leite, virando potes de manteiga, arruinando plantações enquanto Eles se encolhiam dentro de casa com sinais de proteção entalhados nas portas."

Mesmo que os poderes de Carrie estivessem sempre com ela, como no episódio das pedras que caíram sobre sua casa quando a menina tinha apenas três anos, é durante a primeira menstruação que eles se tornam mais evidentes e fortes. A puberdade feminina sempre foi vista como um período em que o corpo da mulher passa a não estar mais no controle da própria, e a sociedade passa a ver isso como uma possibilidade de algo espiritual possuir esse corpo independente da vontade da mulher. No cinema de horror e na historiografia da bruxaria, essa possessão muitas vezes é demoníaca. Como se a partir daquele momento, o corpo feminino fosse automaticamente pecaminoso. Assim, os desejos da mulher passam a ser vistos como pecaminosos e destrutivos, como acontece com Carrie. Já afirmou Barbara Creed: 

"O corpo de cada mulher é marcado por feridas sangrentas; a ferida é um sinal de abjeção na medida em que viola a pele que forma uma fronteira entre dentro e fora do corpo. [...] A jovem bruxa (Carrie) evoca simpatia e horror porque seus atos malignos estão associados com a puberdade e a menarca. O monstruoso-feminino é construído como um objeto-figura porque ele ameaça a ordem simbólica."

Monstruosidade feminina

É importante ressaltar que a mãe de Carrie não é a única que enxerga a menstruação como algo pecaminoso. Mesmo que seja de uma forma diferente, as meninas que humilham Carrie no vestiário também têm uma ideia do sangue menstrual como algo sujo e digno de piada, e em nenhum momento pensam em ajudá-la ou explicar o que de fato está acontecendo até a professora de ginástica, a srtª. Desjardin, aparecer. Há também uma parte do livro em que uma das meninas acha graça ao lembrar que certa vez viu Carrie usando um absorvente para limpar o batom porque achou que era para isso que servia, e a moça apenas riu e confirmou que era de fato para limpar maquiagem. Essa visão de que a menstruação é algo sujo não existe apenas na mentalidade de muitas pessoas que não menstruam. Como é apontado pela srtª. Desjardin logo após o episódio do vestiário:

"Eu tenho um teto de vidro, sabe? Eu entendo o que as garotas sentiram. Aquela situação me fez querer segurar a garota e a sacudir. Talvez haja algum instinto relacionado a menstruação que faz as mulheres quererem rosnar, sei lá."

É importante lembrar também que meninas podem ser malvadas, principalmente na adolescência. Não é algo surreal pensar em meninas humilhando outras sem nenhuma razão aparente, assim como a maternidade nem sempre é algo sacro ou como muitos dizem ser um instinto que toda mulher tem. O ódio que não apenas as meninas sentem por Carrie, como também que sua própria mãe sente, é muito real.

Chris Hargensen é a única apontada como verdadeira vilã da história, por jogar o sangue de porco em cima de Carrie no baile, mas ela não foi a única que continuou a rir e a humilhá-la mesmo após o fato. Sue Snell é também é uma personagem muito complexa, pois diferente do que o filme de 1974 demonstra, ela não é uma santa que pede ao namorado para que leve Carrie ao baile porque quer que ela se divirta. Sue é uma garota confusa sobre si mesma, seus atos, seu relacionamento e seu futuro, presa em uma realidade que já foi moldada para ela, mas que não necessariamente escolheu. A relação aparentemente perfeita entre ela e Tommy Ross, o fato de acima de tudo querer se sentir melhor consigo mesma pelo que fez com Carrie, nada disso faz dela uma garota ruim, mas simplesmente uma garota. Uma moça que era sexualmente ativa e estava possivelmente grávida do namorado do ensino médio e que não era uma garota boazinha e perfeita como o filme parece querer demonstrar. Mas que no final das contas, é apenas uma garota tão perdida quanto qualquer uma da idade dela.

"Esse era o fato mais fundamental: nós éramos adolescentes. Carrie tinha dezessete anos, Chris Hargensen tinha dezessete anos, eu tinha dezessete anos, Tommy Ross tinha dezoito anos, Billy Nolan tinha dezenove… Adolescentes mais velhos reagem de formas mais aceitáveis socialmente do que os mais novos, mas eles ainda têm uma peculiaridade para tomar decisões, reagir com exagero ou subestimar coisas."

Algo muito importante de ressaltar na relação de Carrie com a mãe é a repressão sexual. Margaret é uma mulher altamente reprimida em todos os aspectos de sua vida, principalmente no sexual. E deixa claro para Carrie que o pecado é culpa dela, como mulher e como sua filha.

"Malignos, ruins, ah, eram. Mamãe tinha dito que havia uma Certa Coisa. A Certa Coisa era perigosa, antiga, indescritivelmente maligna. Podia te deixar Febril. Cuidado, disse a Mamãe. Vem à noite. Vai fazer você pensar no mal que aconteceu em estacionamentos de beira de estrada."

No clímax do embate entre mãe e filha, Margaret confessa à Carrie que sentiu prazer em ter relações com seu marido quando ela foi concebida, e por isso passa a jogar na menina todo seu ódio por ter pecado e Carrie ser fruto desse pecado, enxergando os poderes telecinéticos da filha como um castigo dos céus. Na icônica cena do filme em que Carrie esfaqueia a mãe para se defender, finalmente a matando, Margaret White parece morrer em meio a um êxtase quase sexual, finalmente se libertando de seus desejos carnais reprimidos por ela mesma.

Citando adaptações, com certeza a mais famosa é a de 1974 dirigida por Brian De Palma. E apesar das problemáticas envolvendo o male gaze, o olhar masculino sobre as mulheres levando à imagem da mulher uma perspectiva sexualizada e masculina do mundo, a primeira adaptação de Carrie ainda é uma das melhores das histórias de Stephen King. A atuação brilhante de Sissy Spacek como a protagonista cujo nome dá título à obra transformou a personagem em um ícone do cinema e da cultura pop, e a direção de De Palma recriou de forma magistral cenas icônicas do livro, como a do baile de formatura.

Carrie sentia desejo de vingança por todas as humilhações que sofreu, principalmente após a cena no vestiário, mas ao mesmo tempo sempre foi apenas uma adolescente e uma moça gentil que literalmente nunca fez mal a ninguém. Quando finalmente consegue se vingar após um último ato covarde de humilhação, é impossível não ficar ao seu lado. Sua fúria e destruição não poupam ninguém, nem os poucos que estavam ao seu lado, pois a partir daquele momento Carrie se torna aquilo que sempre viram nela, um monstro demoníaco, mesmo que lá no fundo ela continue sendo apenas uma moça perdida e inocente. Ainda que o público enxergue sua vingança como um grande deleite, a história tanto do livro quanto das adaptações deixam claro que, após os eventos, Carrie continua sendo vista como uma bruxa maligna, apagando todas as violências que sofreu e que a fizeram se tornar um monstro, mesmo que seja apenas uma mulher. No final do livro, Sue encontra Carrie e, antes de seu fim, Carrie faz a jovem sofrer um aborto, e o que começa com sangue termina com sangue.


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Babi Moerbeck
Carioca nascida no outono de 1996, com a personalidade baseada no clipe de Wuthering Heights, da Kate Bush. Historiadora, escritora e pesquisadora com ênfase no período do Renascimento, caça às bruxas e iconografia do terror. Integrande perdida do grupo dos Românticos do século XIX e defensora de Percy Shelley. Louca dos gatos, rainha de maio e Barbie Mermaidia.

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