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Hilda Hilst, uma escritora além do erótico

Tentar adjetivar Hilda Hilst talvez seria assumir um erro grotesco, mesmo que faltem palavras para descrever e captar as nuances da expansão de sua existência e toda sua obra. Marcada por um caminho ingrato no meio literário, os anseios fizeram com que a poeta construísse seu público, fazendo o parto de uma mulher que nascia com sua utopia voltada ao descompasso entre querer ser vista e lida; foram diversos os seus atos, sua aproximação com a literatura pornográfica é a porta de entrada para o erótico que ainda hoje se posiciona em uma balança. Tal gesto estratégico e sarcástico fora o meio de reivindicar seu espaço no meio literário e nortear seu fascínio ao que considerava obsceno junto com o que fascinava seu grande público, ainda que houvesse o escasso chamamento para que voltassem vossos olhares uma outra vez para sua escrita, "Olha-me de novo. Com menos altivez. E mais atento", para além do erótico que, até mesmo, por vezes não foi compreendido. 

"O que é obsceno? Ninguém sabe até hoje o que é obsceno. Obsceno pra mim é a miséria, a fome, a crueldade, a nossa época é obscena. [...] O erótico não é a verdadeira revolução. O erótico para mim, é quase uma santidade."

Possuidora de uma carga afetiva cheia de vigor e rigor, a poeta tampouco se colocava passiva diante das palavras, sentimentos, ideias e histórias, ao mesmo tempo em que era dominada pela embriaguez da necessidade de um estado de paixão, a qual movia seus poemas que atravessavam o desejo de superar o Nada, beirando o inconformismo, pois o nascer de sua poesia é a não aceitação dos momentos em que a vida se diluirá, e toda a carga que faz companhia dentro de nós. Antes de ser mulher, era inteiramente poeta; o emaranhado de suas palavras cobre todos os gêneros literários ainda que fosse vítima da distância do público e o descaso dos editores; a complexidade é presença constante nos olhares que a cercavam, estes que mal se esforçavam para compreendê-la. Enquanto dava adeus à literatura tida como séria, certa de seu talento, também se tornara cantada até mesmo por nomes da música popular brasileira. A curiosidade era uma busca constante, pois manter-se bem informada era um dos propósitos que a norteavam como escritora, com questionamentos para além de sua composição literária. Seu texto, por vezes considerado controverso pela crítica, é denso, duro e viril, mas não deixa fugir o lirismo e a vontade de comunicar os mistérios do mundo.

O Brasil demorou a descobrir Hilda Hilst, suas obras não obtiveram uma das melhores recepções e sua insatisfação não passara despercebida, vista como uma autora que muitos conhecem e poucos leem. O interesse de Hilst tampouco era chocar seu público, mas o desafio de suas palavras não mediava o quão selvagem era o seu eu poético, nos fazendo entender que o poeta também pode ser violento; percebe-se que a escrita Hilstiana nos remete ao Trovadorismo e que estaria facilmente entrelaçada às cantigas de escárnio e maldizer. Sua obra poética atravessou as fronteiras dos gêneros tradicionais, virando a mesa de uma elite que a rotulava por diversos conceitos e confrontando de forma ousada os críticos literários. H. não suportava estar cercada por imagens que a aprisionavam e afastavam o autor de sua obra, pois se derramava na procura de uma identidade nuclear que fosse sua. Ainda que houvesse um silêncio em torno de sua obra, a escritora não possuía papas na língua, o medo não a acompanhava, o que dava espaço para que sua vulnerabilidade e buscas estivessem expostas.

Nossa "obscena" senhora H não abdicava do que tinha de bonito, mas, sim, supria o que bem desejava e queria; a independência de Hilst era provocativa, atraída pela loucura, sua célebre existência causou incômodos para além da escrita. Conceituada como mulher da vida, a travessia da poeta nunca fora ser apenas "distração", logo, compreende-se que sua rebeldia é sua intuição selvagem de si mesma, esta que é propositalmente repugnante. Enquanto saboreava o chá da juventude, HH tocava nas feridas de uma sociedade conservadora, beirando entre a defesa de suas opiniões e o despertar de paixões e conflitos que causava, arrastando quem se atrelasse à natureza de seu ser.

"Quero ser lida em profundidade e não como distração, porque não leio os outros para me distrair, mas para compreender, para me comunicar."

São muitos os conceitos que emanam de suas obras e sua essência, mas é perceptível que a natureza humana é o principal alvo de sua escrita, esta que dialoga com questões que se contradizem com o nosso tempo e de forma subversiva atravessam códigos sociais, para além do que enxergamos, mostrando que nada é o que parece, curando a ferida ao mesmo tempo em que a toca e apresenta outros futuros possíveis. Há no trabalho de Hilda uma vontade fundamental de diálogo – não apenas com o leitor ou os gêneros literários; o anseio de comunicação se estende à história da literatura aos alicerces da arte, transitando entre formas e tradições, sendo aluna da própria vida para também compreender sua obra.

"Acho que consegui ter um trabalho de escrita valioso. Parece que eu consegui de verdade dizer poeticamente, do mesmo modo como para mim era importante que algumas coisas fossem ditas. Mas eu também precisava me exprimir de forma que o outro 'escutasse'... Porque é preciso reconhecer isto: não é todo mundo que consegue entrar facilmente no mundo da poesia, entrar poeticamente no meu mundo. A dificuldade de comunicar é muito grande. Eu sou editada, mas não sou lida. Meus poemas são citados, mas ninguém os compra. Isso me deixava um pouco triste antigamente, por que ninguém me falava 'Eu li o que você escreveu. Eu também vivi um momento parecido com o seu. Eu também sinto o que você sente'."

Em 1950, ainda estudante de direito em São Paulo, vivia uma vida agitada – abandonando a vida social e boêmia para se dedicar à reclusão de estar inteiramente entregue à literatura, largando uma vida de prazeres durante as década de 50 e 60, se muda para uma chácara no interior de Campinas, a Casa do Sol, onde vive até o fim de sua vida, mudança que influencia muito do trilhar de seu caminho, este que agora estaria voltado a um tempo integral sem as demais distrações da cidade; fugindo dos conceitos e da necessidade de explicar suas obras. Sob o vasto céu de estrelas, foram muitos os acontecimentos que destacaram a Casa do Sol – discos voadores, vozes de antigos mortos sendo capturadas meio confusamente no rádio ou em frases musicais de fitas. A imagem da escritora complexa se quebrava para os mais próximos que se cercavam de sua humanidade, expressa de forma simplória e carregada pelo humor e essência amorosa da poeta. Na casa do sol, H. viveu e escreveu a maior parte de sua obra, alojando todos os resquícios da intimidade de suas cartas, agendas, desenhos, mapas astrais e sua vasta biblioteca. Ainda que fosse o espaço singular de sua paz, tampouco deixara de ser uma casa movimentada que abraçava uma variedade de grupos de amigos da escritora, os quais eram vistos como figurinhas carimbadas pela constante presença e companhia. Enquanto viva, HH chegou a acolher mais de 60 cachorros, ato que deixa visível sua paixão afetuosa por estes que, até então abandonados, encontraram um lar. Atualmente, muito se diz sobre a casa ser mais que um ponto de encontro, se tornando patrimônio por tanto inspirar e acolher artistas que buscam entender e abraçar suas criações, movida por relatos que validam a magia imortal que Hilda deixou e eternizou.

Hilda Hilst (1970)/ imagem: reprodução

Caio Fernando Abreu não mediava elogios para narrar a obra de Hilst. Para Caio, a poeta bagunçava o correto, chocava a paróquia e derrubava estruturas; em suas palavras, enxergava Hilda como um tanto subversiva, para além do incômodo que subverte o âmago do ser humano; na travessia da dignidade da linguagem, os estilos, as figuras e os ritmos, traços que confessavam a genialidade e o "pum" no nariz dos críticos e da sociedade. Enquanto isso, Lygia Fagundes Telles narra Hilda Hilst entre o equilíbrio dos apetites de sua essência temperamental e suas paixões, esta que, na visão da amiga, apreciava a intensidade do amor de Hilst, a qual quando amando não possuía freios para celebrar esse amor. Lygia dizia que não havia modos que pudessem moderar alguém com uma alma tão flamante, que o pouco que se continha acabava por ser quebrado pelos impulsos que abriam as comportas e emanava-se, então, a essência da poeta. O encontro de ambas as almas das escritoras fora um dos mais fortes laços no universo literário, HH dizia que queria morrer segurando as mãos de Lygia.

Foram muitos os críticos que cortaram laços com Hilda, poucos foram os que entenderam e valorizaram a celebração de sua existência e a poesia que nascia dela. O querer ser lida não a colocou na posição de seguir um caminho diferente do que não fosse coerente para ela. Em suas palavras, Hilst não sabia escrever compreensivelmente e a agressão do que escrevia foi muito mais que uma "banana" para os editores, a coerência consigo mesma fora o suportável pra continuar lidando com o que enfrentava e com a sensibilidade de suas palavras. Hilst não se posicionava na bolha de fazer coisas normais, a proposta de seus textos fugia da visão que a policiava, a sequência de sua obra reunida possuía o anseio de revelar as ambições do outro, do eu lírico em contato com suas palavras, e que estas se libertassem das amarras e repressões que as cercavam.

"Será que alguém terá coragem de tirar todas as máscaras e existir com o rosto nu e suportar a sua humanidade diante de um destino tão opressor à sua volta? É valida a libertação de um só ou nem todos podem salvar-se?"

Fazendo jus ao título do texto, vale ressaltar o quão visível foi a falha que cometeram com Hilst. Uma escritora além do erótico, que escancarava sua ousadia e a genialidade em provocar com a acidez de sua escrita, enquanto tantos outros homens de sua época escreveram coisas ainda mais repugnantes e na linha do tempo seguem sendo vistos como gigantes; logo, entender que o espaço que fora negligenciado à HH possui um único nome e que tamanho incômodo diz muito sobre censurar as obras da autora. Não temendo o absurdo, a obscenidade e o ridículo, sua poesia passeia por temas como a solidão, o amor, a loucura, a morte, o misticismo e o amor erótico. Sua busca por uma ideia de Deus estava enraizada na incapacidade de dar nome a Ele, detalhe presente nas diversas vezes que o conceituou por tantos nomes e apresentava suas diversas facetas sobre não conhecê-lo, ao mesmo tempo em que a curiosidade se mostrava aguçada junto à uma contradição que se entrelaçava as dúvidas e oposições da escritora. Ela estava fugindo dos quereres de quem a idealizava, se colocando nua no papel e combativa com os críticos que não reconheciam o valor de sua literatura. A pluralidade de sua narrativa é um convite para celebrar as várias facetas de sua escrita, esta que perdurou por muitos caminhos. Além de poesia, na década de 1970, a escritora ampliou sua produção para ficção e peças de teatro, com parte delas sendo críticas à Ditadura Militar e à repressão das grandes instituições. Nos anos 1990, se despedia do que chamava de "literatura séria" devido ao pouco caso feito por sua escrita, inaugurando a fase pornográfica, atingindo o ápice de sua aventura literária com os títulos que integrariam a "tetralogia obscena": O caderno rosa de Lori Lamby, Contos d'Escárnio. Textos grotescos., Contos de um sedutor e Bufólicas, reunidos em coletânea. De 1992 a 1995, colaborou para o Correio Popular de Campinas com crônicas semanais.

A relação com seu pai não foge de cena, o desejo e fascínio por querer ser semelhante ao homem era algo confessado; a descoberta de sua vocação para a literatura estava voltada ao anseio da procura pelo pai e o encontro de uma ligação entre ambos. Foi na adolescência que os pesares se destacaram; a figura paterna para ela teve grande importância, não é à toa que parte de sua escrita é composta por traços deste homem que até o fim de sua vida fora um detalhe que percorreu seu caminho e parte de suas obras. Os comentários alheios sobre seu pai foram traços fundamentais para que somasse ainda mais à construção e espécie de magia que H. criou em torno dele. Hilst se via como a perfeita "edipiana", pois tanto se encantava e era intrigada com a beleza da figura paterna, sendo o tipo de homem que a deixava desconcertada e a fazia ficar perplexa com tamanha beleza, que a fragilidade de sua loucura acabou por ser o tiro de largada, se somando ao pouco que tinha dele e os fragmentos do que conheceu, em contato com a fragilidade da perturbação de sua doença, rótulo que norteou as suas paixões por outros homens que pudessem remeter a ele, enquanto sua escrita alimentava o desejo de encontrar um alguém que possuísse tais traços. A loucura por muitas vezes assustou a autora, momentos estes em que o pai a confundia com sua mãe e lhe pedia "três noites de amor", quebrando a imagem idealizada que Hilda tinha daquele pai ideal, o que moldou e embaçou sua visão para o amor, pois este nunca chegara de uma forma definitiva para ela, quando sua procura estava objetificada na imagem que a poeta tinha daquele homem e sua "perfeição" idealizada. Hilst ansiava por conhecer o amor, estava convencida de que era algo a se viver e sua infraestrutura era completamente amorosa, pois destaca o prazer que seria dedicar anos de sua vida para viver unicamente em função dessa paixão e conhecer esse estado.

"Penso que a raiz disso em mim (a escrita) está na vontade de ser amada, numa avidez pela vida."

O traduzir de sua arte se diversifica por muitos rostos que H. ousara colocar na existência de sua obra poética, estes que só podem ser ditos e vistos de forma fiel em sua escrita, pois, o mais próximo que o autor pode revelar-se é no encontro daquilo que já se expôs, seu rosto aos inúmeros outros que leram este que escreve, não importa o que digam os que não compreendem. A resistência de querer ser lida parte da verdade do escritor que anseia por uma proximidade ao leitor, mas, quando não lido, tampouco há essa tal troca de uma via de mão dupla, este espaço de sedução não se incorpora às teias que prendem o leitor em sua obra, desnudando o autor a um silêncio que o cerca. Ao analisar tal fato, percebe-se a verdade do escritor que tanto fala de si mesmo e deságua suas palavras em um oceano, fugindo do sentido figurado seria, então, sua obra exposta ao mundo e o anseio de que esta seja vista, sentida e compreendida. Hilst ansiava por oferecer uma imagem pronta de si, uma que fosse concluída e bem recebida, mas poucas vezes teve tal chance, a distância ocasionada a cercou a uma imagem semelhante à loucura, e as tentativas que partiram dela eram dificultadas por uma parede que ao mesmo tempo a bloqueava. Portanto, para Hilda, a poesia é um tanto mais que a emoção, mas sim o desprender da emoção cotidiana, sendo a escrita quem disciplina os dizeres amorosos e os estados de emoções de uma comoção contínua.

"Eu imagino que posso ser várias pessoas, vários homens, várias mulheres e, dependendo de como estou comigo mesma e com o mundo, surge uma personagem. [...] Escrevo na primeira pessoa porque sinto que fico mais próxima do outro para contar. Tenho dificuldade em escrever na terceira pessoa, pois sinto sempre um distanciamento, como se eu não estivesse dentro da personagem."

Movida pela vaidade da juventude, a chegada da velhice era algo que assustava Hilda, com o receio de que esta se acomodasse e tomasse muito de sua essência com os fardos que a permeiam e viriam lhe fazer companhia, o medo escancarado de se tornar dependente e perder a lucidez a norteava aos questionamentos de que herdasse o desequilíbrio mental de seus pais, questionamentos ressaltados até mesmo nos receios de ser mãe, ainda que tal ideia não atraísse tanto sua atenção. A morte é presença constante e tema fundamental na poesia da autora, assim como o amor e o sagrado. E após décadas de íntimas conversas com a morte, esta levou Hilda na madrugada do dia 4 de fevereiro de 2004.

"Não sei nada sobre minha obra, só sei que a escrevi. Durante 50 anos pude escrever tudo o que queria escrever, nunca parei, apesar de dizerem que ninguém lia. Um dia parei, já tinha escrito tudo. Não sou espírita nem adepta de nenhuma religião específica, acredito na vida depois da morte, na reencarnação, acredito na alma e em espíritos que podem nos proteger, em santos e anjos, acredito na existência de outras dimensões, em discos voadores e na física quântica que um dia vai explicar todos esses fenômenos, e eu acredito na vida eterna."

Por fim, ousar conceituar Hilda Hilst talvez seria nomear suas obras aos níveis terrenos do inefável, fugindo do efêmero, pois ainda que não tenha tido um reconhecimento favorável em vida, a grandeza de sua escrita nos dias atuais é vista e sentida, anseio que caminhou com a poeta em todos os seus dias, ávida por ser lida – não por vaidade, mas pela certeza de ter o que comunicar, deixando a perturbação dos incômodos como o exemplo de movimento para não se cantar em vão. 

Referências




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Lyriel Damasceno
Amante da arte, cinéfila na maior parte do tempo e leitora assídua nas horas vagas. Aspirante a escritora que transborda na poesia das canções de Taylor Swift e sofre incondicionalmente por Crepúsculo, Antes do Amanhecer e Sociedade dos Poetas Mortos. Suas principais inspirações se fazem presentes nas escritas de Jane Austen, na poesia de Emily Dickinson e na melancolia de Clarice Lispector.

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