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bell hooks e o amor na infância em O meu pé de laranja lima


É bem verdade que desmontar a infância a partir de uma perspectiva do amor como ação pode ser constrangedor. O amor que não obceca, que escolhe ensinar através do diálogo e da vulnerabilidade é bem pouco conhecido; é um agente limitado, pois quem o assume se coloca na condição de aprendiz constante das relações humanas. Assumir o amor nessa forma é desfazer o que compõe o Ser Adulto numa relação com crianças. É sair da posição de superioridade, é ser responsável pela própria vontade de aprender a partir de qualquer experiência, ainda que com quem pouco entende da vida cotidiana. 

O amor que nos conecta socialmente se sustenta na dependência e no punitivismo. Diz que acolhe a partir da violência, na manipulação, baseado no olhar do Outro. É o olhar externo que define o amor tradicional: a educação é distribuída de forma a comprimir personalidades, como um encaixe perfeito ao mercado de trabalho inflexível, ao relacionamento contido na emoção e confuso na razão e às amizades que tendem a desconfianças e desentendimentos. Assim é forjado o adulto disfuncional que cria ciclos disfuncionais. 

Na obra Tudo sobre o amor: novas perspectivas, de bell hooks, encontramos a teorização do amor através de camadas de desconstrução e construção das perspectivas sociais do ato de amar. No segundo capítulo do livro, “Justiça: lições de amor na infância”, a autora se utiliza do argumento que permeia sua construção do amor: o amor é ato, é ação; e como ação, é dotado de escolha. Neste capítulo, discorre sobre a importância e as problemáticas de escolher amar uma criança e do ensinamento dessa prática nos anos iniciais. A autora levanta o debate do amor na infância buscando aprofundar a dimensão dos traumas emocionais quando nos deparamos com o amor que prega o afeto aos pais e cuidadores incondicionalmente, independentemente de noções de respeito e afeto mútuo. Assim, criam-se gerações de adultos que perpetuam comportamentos em suas relações baseados numa realidade infantil pouco saudável emocionalmente. 

Buscando na literatura brasileira o retrato da infância carregada na punição e no amor que não se diz, mas que tenta se mostrar no sustento financeiro - ainda que mínimo -, encontramos a obra O meu pé de laranja lima (1968), de José Mauro de Vasconcelos. A obra desvenda as aventuras de Zezé, menino da periferia do Rio de Janeiro, e sua família numerosa e com grandes problemas financeiros. A dinâmica familiar cercada pelo desemprego e desigualdade social tenciona as relações entre pais e filhos, além de destacar as responsabilidades dos irmãos mais velhos sobre os mais novos. Zezé se apresenta como uma criança bagunceira, indisciplinada, mas inteligente e interessada. Assim, apesar das habilidades com a leitura e a escrita, por exemplo, ele é constantemente punido por seus atos. 

É importante chamar atenção para a relação de Zezé com as irmãs mais velhas, que cuidam da vida doméstica e são responsáveis pelas crianças menores. São sobrecarregadas com as responsabilidades da casa pelos pais, e, consecutivamente, descontam no irmão mais novo. Há um modelo de infância pautado pela constante da violência. Retornando à violência física sofrida principalmente por Zezé, encontramos a função de adequação. Como destacado por Lilian Almeida de Oliveira Lima: 

"No século XVIII, com o surgimento da filosofia das Luzes, como pontua Maria Lúcia Rocha-Coutinho, e da noção de infância, uma revolução sentimental ocorre a partir das ideias de igualdade e felicidade, proporcionando o desenvolvimento da amorosidade. Como assinala Philippe Ariès, 'a família tornou-se o lugar de uma afeição necessária entre os cônjuges e entre pais e filhos, algo que ela não era antes. Essa afeição se exprimiu, sobretudo, através da importância que se passou a atribuir à educação'. [...] Por conta do reconhecimento de que a criança não é um adulto em miniatura, ela torna-se alvo das atenções adultas, que visam a educá-la, moldá-la segundo os padrões socioculturalmente aceitos. Ao se dispor a 'formá-la', os adultos estabelecem as bases de crescimento e desenvolvimento dos pequenos seres que, mais tarde, serão adultos também, confirmando a concepção de criança comumente aceita e exposta por Manuel Jacinto Sarmento: 'a criança é considerada como não adulto, e este olhar adultocêntrico sobre a infância registra especialmente a ausência, a incompletude ou a negação das características de um ser humano completo'. A proposta de formação costuma vir sobrecarregada de formatos e modelos que a criança deve aprender e aos quais deve se adequar."

Para alcançar esses modelos aceitos, adota-se a violência como estratégia rápida de impor limites, buscando no medo o aprendizado. É comum o adulto que reconhece na própria infância os excessos parentais, entretanto, nega os traumas psicológicos derivados da prática. Mas poucos são os que recorrem para além da violência física, psicológica ou desespero na resolução de conflitos. Não há na narrativa de Zezé pontuações objetivas sobre as problemáticas de convivência da família, pois raramente há o deslocamento das crianças para a posição de vítimas. Assim, demonstra um universo que assimila a violência, enquadrada à normalidade, e prossegue, apesar da formação que diz o que é e não o porquê. 

Reconhecemos em José Mauro traços que violam os direitos da criança. No artigo "Violação de direitos da criança desvelada pela literatura: uma análise jurídica da obra O meu pé de laranja lima acerca da violência infantil no ambiente familiar", Ana Cláudia Neres de Jesus aponta: 

"Tendo em vista que a obra estudada é considerada autobiográfica, é possível deduzir que a história narrada se passa no ano de 1925, pois o autor José Mauro de Vasconcelos nasceu em 1920 e o personagem Zezé era uma criança de 5 anos na época em que ocorreu a narrativa. Naquele contexto, não existiam leis de proteção das crianças vítimas de maus-tratos no Brasil. Como explanado no presente trabalho, a primeira manifestação em prol dos direitos da infância aconteceu em 1924 com a Declaração de Genebra. É necessário pontuar, que apesar da história se passar em um contexto social precário, no qual a família do personagem vivia em condição de extrema pobreza, histórias iguais a de Zezé acontecem com outras crianças em países desenvolvidos e em famílias de variados níveis sociais, o que desmistifica que violência doméstica contra criança está ligada à pobreza e desestruturação familiar. Sendo assim, pode-se dizer que Zezé era vítima de uma cultura na qual espancar uma criança era considerada a maneira correta de se educar os filhos. A história vivida por Zezé na década de 20 continuou a se perpetuar. No ano de 1960 nos Estados Unidos iniciou-se as discussões acerca da 'síndrome da criança espancada', sendo colocada em pauta a violência doméstica, objetivando despertar a sociedade para o uso da força contra criança. No entanto, essas declarações de nível internacional tendo sua importância enquanto suscitadoras de discussões a nível mundial e sendo referências para legislações vindouras, no Brasil, permaneceram em termos abstratos no período compreendido entre 1964 e 1985. Durante esse tempo o país era governado por uma ditadura militar que restringia a liberdade de expressão, impedindo a participação no processo de construção de direitos. Logo, nota-se que na época da publicação da obra, ano de 1968, muitas crianças ainda sofriam as agruras da violência, assim como as mazelas que surgiram das desigualdades criadas pelo sistema capitalista."

Resgatando o debate sobre amor levantado por bell hooks, é necessário ampliar o olhar sobre a máxima de que o primeiro contato com o amor se dá no âmbito familiar. É olhar com cuidado para as relações familiares e reconhecer que o amor esteve em falta em alguns momentos. Como apontado por hooks, "Minha família de origem me proporcionou, ao longo da infância, um ambiente disfuncional, e essa situação não mudou. Isso não significa que não seja um ambiente no qual a afeição, o prazer e o cuidado também estão presentes"

O contexto vivenciado por Zezé evidencia uma família disfuncional. Não há ausência de afeto: as relações também estão referenciadas em cuidados, brincadeiras e defesas. Mas incorporando as noções de amor reivindicadas por bell na narrativa de Vasconcelos, notamos que não há o ato de amar. Tudo porque o diálogo, o aprofundamento de sensibilidade e respeito estão ausentes; o que rege é a imposição de vontades e da vida que deve ser vivida sem explicações plausíveis para o engrandecimento das personalidades infantis. 

Experiências vivenciadas na infância refletem em uma realidade adulta traumática e com poucas capacidades de reconhecimento dos próprios traumas. Como mencionado por bell hooks: "A maioria das crianças abusadas física e/ou psicologicamente foi ensinada pelos adultos responsáveis que amor pode coexistir com abuso. E, em casos extremos, que o abuso é uma expressão de amor. [...] Então, assim como nos apegamos à ideia de que aqueles que nos machucaram quando éramos crianças nos amavam, tentamos racionalizar o fato de sermos machucados por outros adultos, insistindo que neles nos amam". A história de Zezé e sua família nos convida a refletir acerca das perspectivas infantis sobre o abuso, a violência e as desigualdades sociais; através da literatura conseguimos uma reflexão sobre a infância. As percepções de amor de bell hooks também nos convidam a buscar o amor e construi-lo com mais responsabilidade, influenciando um futuro com novas lembranças e horizontes de relações sociais. 

Referências 

  • O meu pé de laranja lima (José Mauro de Vasconcelos)
  • Tudo sobre o amor: novas perspectivas (bell hooks)
  • Violação de direitos da criança desvelada pela literatura: uma análise jurídica da obra "O meu pé de laranja lima" acerca da violência infantil no ambiente familiar (Ana Cláudia Neres de Jesus)
  • Abuso e repressão: fibras do mesmo fio na infância das meninas de Helena Parente Cunha (Lílian Almeida de Oliveira Lima)



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