Li pela primeira vez O retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde, quanto tinha 17 anos. Lembro que achei a edição muito bonita, livros de capa dura não eram tão comuns na época. Toquei a lombada coberta por uma textura semelhante a tecido e percebi que não apenas as páginas amareladas eram aveludadas, mas também as palavras e a história. Fiquei encantada com tamanho rebuscar da escrita, com as falas complexas e os detalhes dos sentidos impressos. Eu nunca havia lido um livro com tantas minúcias e uma coleção de palavras entremeadas daquela forma. Hoje eu me pergunto se entendi muito do que estava escrito, mas acredito que sim, pois desde então, se tornou um dos meus livros preferidos.
Recentemente tive oportunidade de reler a obra e o toque da capa e das páginas foi o mesmo. No entanto, no início não senti as palavras tão aveludadas quanto da primeira vez, apesar da empolgação ao reconhecer tantas referências e questões filosóficas nos diálogos e reflexões dos personagens. Meu olhar se volta principalmente para as relações de gênero e relações sociais, por ser parte da minha área, e não é muito animador focar nas mulheres durante essa leitura. Elas têm pouca presença e grande parte vem da fala pejorativa de Lorde Henry, que insiste em vê-las como seres incomodativos, enfadonhos e sem inteligência. Que ele é um cretino, não há dúvidas, desde o primeiro parágrafo que descreve sua presença e personalidade. Até porque, é sua fala mansa e seu pseudointelecto cheio de palavras bonitas, porém vazias, que encantam Dorian Gray e o levam a realizar atos horrendos. Porém, não demorou muito para eu sentir a fascinação que a leitura me causou da primeira vez.
Dorian Gray é um jovem muito belo, todos dizem, e todos se fascinam com sua beleza — olhos azuis, boca avermelhada, maçãs do rosto rosadas e cachos dourados, um brilho de inocência no olhar. Isso o faz se tornar modelo para o pintor Basil Hallward, que logo cai de amores pelo jovem, tamanha sua beleza e pureza. De fato, ele era inocente e gentil, até conhecer Lorde Henry. Curioso de sua relação com Basil, e diria, até invejoso, Henry usa de artimanhas para que Dorian se fascine por ele e não se contente mais com a vida simples que costumava levar. Ele agora quer mais e, incentivado por todos os olhares e falas que o dizem ser tão belo, com uma juventude tão preciosa, ele assume já possuir uma perfeição inestimável. E qualquer coisa que ameace sua “perfeição”, sua beleza e juventude, é um inimigo que deve ser eliminado a qualquer custo. Basil pinta um retrato de Dorian, muito belo e realista, o qual é levado para a casa de Dorian, que se chateia, pois sua imagem pintada continuará jovem e bela, livre de imperfeições, ao contrário dele, que envelhecerá e perderá o próprio brilho.
Para a surpresa de todos, não é o que acontece. Inspirado pelas falas românticas de Lorde Henry, Dorian se apaixona por Sibyl Vane, uma moça que trabalha como atriz em um teatro de péssima estrutura. Para ele, ela tem tanto talento que chega a alcançar a perfeição, e ele se apaixona. Em uma noite, embriagada no suposto amor de Dorian e no pedido de casamento que ele lhe fizera, ela faz uma péssima atuação, argumentando que, diante do amor verdadeiro, qualquer outra representação tornou-se suja. Quando Dorian a assiste, é uma quebra no ideal de perfeição que ela representava, e isso o deixa desamparado emocionalmente. Ele termina o namoro e vai para casa em sofrimento, pois as expectativas que colocara sobre ela, o ideal que ele criara sobre ela e que ela deveria agir de acordo, foram quebrados. No outro dia, embora arrependido inicialmente, ele descobre que ela se matou. Antes mesmo de saber disso, ele olha seu retrato, e percebe que há mudança nele: há crueldade nas linhas em torno da boca, algo que o apavora até o espírito. Quando ouve a notícia, Dorian percebe que já sabia, pois o retrato absorveu a experiência e a contava na expressão cruel que agora carregaria para sempre. Ele percebe que, de alguma forma, é o retrato que carregará todas as suas marcas, todos os seus defeitos, a falta de beleza e de jovialidade que virá com o passar do tempo. É o retrato que será imperfeito — ele permanecerá.
Ao ter sua beleza e juventude exaltadas, Dorian se apega a isso como sendo seu valor, para si mesmo, reconheceu-se como a própria perfeição. É por isso que enxergar a crueldade na imagem do retrato o apavora tanto: é quando ele se confronta consigo mesmo. Sem coragem, tapa o quadro e o esconde. Ninguém quer se olhar e enxergar a imperfeição, os defeitos, as coisas ruins que estão mergulhadas no poço do nosso eu interior. Dorian muito menos, pois está tão apegado ao próprio ideal (de que é perfeito) que não suportaria quebrá-lo, não suportaria sequer considerar que não é tão perfeito assim.
Percebe-se aqui uma grande questão filosófica, porque se Dorian tivesse estudado Platão, veria que a perfeição é inalcançável e o máximo que podemos fazer é tentar nos aproximar dela realizando o bem e a justiça. Daí vem a verdadeira beleza. Ele mesmo se aproxima disso em alguns momentos, antes de tapar o quadro e guardá-lo escondido, quando pensa em Basil e no que ele vê em Dorian. Bondade, gentileza e inocência. É quando percebe que deve agir de forma generosa e justa, e decide ir atrás de Sibyl para reparar seu erro e casar-se com ela, cumprindo sua palavra. No entanto, é Lorde Henry que conta ele que ela se suicidou, e diz para ele que essas tragédias e coisas da vida devem ser rapidamente superadas. Dorian vê nisso uma forma de escape das consequências de seus atos, de assumir sua imperfeição exposta no quadro, e concorda, recusando-se a pensar em qualquer “coisa feia”, tal qual a situação de Sibyl, como que entrando em uma zona de conforto.
Os antigos filósofos gregos também dizem que o ego faz de tudo para se proteger do sofrimento e, ao aceitar suas imperfeições, erros e as “coisas feias” que causou, Dorian sofreria imensamente. Então, ele escolhe ignorar e deixar que o quadro receba o peso de suas ações. O egoísmo passa a moldá-lo. Ser perfeito, pensa Dorian, é ter poder. Isso o move. Também associa à perfeição o prazer puro, e de um prazer superficial atrás do outro ele passa seus dias, sem se importar com consequências, ética e sentimentos alheios. Ele já é perfeito, portanto, o mundo lhe pertence.
Contudo, Dorian sempre leva consigo a sombra do retrato. Ele pode pensar-se perfeito, mas nenhum momento de sua vida é perfeito, pois nada é suficiente e, onde quer que olhe, o retrato parece estar lá, prestes a revelar-se. O medo de ser descoberto e de que o pano púrpura sobre o quadro deslize para o chão sob os olhos de outrem o acompanha. Na verdade, no fundo, Dorian sabe que não pode fugir de seus erros, de seus defeitos, de seu comportamento antiético e imoral. Seus fantasmas o perseguem, porque ele os criou e não os aceita, não lhes dá paz. Quando atinge o ápice de seus atos pavorosos, agora já suspeitados por toda a sociedade inglesa, ele começa a perder o controle. Ele pode correr, mas seus fantasmas são incansáveis e eventualmente, o alcançaram. Ele não pode deixar de se olhar no espelho por muito tempo. O quadro e o mal estar que sente consigo mesmo não podem ser ignorados. Assim, Dorian viveu uma vida de mentiras, em busca de prazeres supérfluos que pudessem sustentar a própria perfeição. Mas a perfeição não existe, dessa forma, nada pode sustentá-la. É o que ele começa a descobrir quando direciona-se para mudar a própria vida, muitos anos depois. Passa a enxergar certa clareza na generosidade e que, talvez, não seja má ideia. Mas está tão preso em um ciclo vicioso que até a aparente mais gentil ação está pesada com sua vaidade.
É isso o que Dorian é: egoísta, vaidoso e narcisista. Caiu num conto de fadas sobre si mesmo e idealizou a si próprio em condições de beleza e juventude. Quando percebe seu erro, é tarde demais. Quando finalmente olha para seu erro, é tarde demais. Ele quer recomeçar, mas isso implica em aceitar a si próprio e tudo o que fez. Por isso, ele não quer apenas recomeçar, quer apagar o próprio passado e quem foi até ali. Mas o que Dorian não percebe é que, ao apagar o próprio passado, apaga a si mesmo. Se tenta matar seus defeitos, acaba matando a si mesmo. Mas mais uma vez, ao se dar conta disso, é tarde demais.
Há tanta beleza nas palavras desse livro, no fluir e na desenvoltura da história e de toda filosofia por trás, que compensa a falta de beleza de Dorian. Ele quer fugir da própria humanidade e não percebe que, com isso, nega a si mesmo e se distancia cada vez mais de qualquer tipo de beleza e perfeição. Não há ideais para seguirmos, não há como sustentá-los. É preciso aceitar e acolher os próprios defeitos, atos e o passar do próprio tempo. A gentileza vem com o desinteresse por trás das ações, sendo a única intenção, o crescimento do ser. Dorian não quis crescer, quis manter, quis parar no tempo a aparência e seu ideal. Como seres humanos, nós devemos buscar a expansão, não o congelar de uma forma, é só assim que poderemos alcançar certa beleza. As flores só se tornam belas ao crescerem e nem por isso são perfeitas. A perfeição é ilusão, existimos nos erros, no aprendizado, no movimento, jamais no parar.
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