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Maternidades assombradas em Mary Shelley e Toni Morrison

A temática da maternidade, escassa nas obras de escritoras antes do século XX, está presente na literatura de autoria masculina desde a Antiguidade, como atesta a tragédia Medeia, de Eurípedes (século V a.C.). No entanto, como resultado das conquistas femininas das últimas décadas, veio à luz uma profusão de textos de mulheres sobre os dramas das relações maternas – pela lente de mães e também de filhas –, com a potencialidade de exibir as faces sombrias de tais experiências. Mas é preciso reconhecer que, mesmo antes de se consolidar como mote na autoria feminina, a maternidade já a atravessava – metaforizada, indireta, camuflada, como se a assombrasse. 

Frankenstein como horror feminino

Mais de um século após sua publicação, ao ganhar atenção da crítica feminista ascendente, um novo olhar interpretativo foi explorado sobre o célebre romance Frankenstein (1818), de Mary Shelley. Chamando-o “gótico feminino”, Ellen Moers (1974) leu Frankenstein como uma história de terror sobre maternidade, na qual estão dramatizados grandes conflitos femininos em relação ao gesto de dar vida. A trajetória da própria escritora serviu de base para essa lente interpretativa: Mary Shelley foi assombrada pela ausência da mãe, a escritora Mary Woolstonecraft, morta durante seu parto; com dezesseis anos, viveu a primeira gravidez, imediatamente seguida de outras quatro – todos os cinco bebês mortos logo após nascerem. 

Mas ainda que se desconsidere a força das experiências biográficas, Frankenstein se sustenta como um texto de mulher e ainda um texto sobre maternidade. Para enxergá-lo como tal, porém, é necessário ir além de sua temática masculina, que trata da superação e da manipulação artificial da natureza, para retornar às forças que conectam (ou assujeitam) as mulheres à procriação. 

Mary Shelley

Se as produções artísticas sempre trataram da vida e da morte, dos conflitos humanos com a finitude, a contribuição odiosa de Mary Shelley e seu “Prometeu moderno” foi dramatizar essa tensão por um prisma facilmente vinculado às mulheres: a criação da vida. É mais significativo, ainda, que ela o tenha feito sem atribuir a nenhuma mulher o protagonismo narrativo. Como se condensasse a sentença bíblica, Frankenstein, lido como gótico feminino, é uma releitura do mito do nascimento pelo viés do trauma “pós-parto”, pois explora o vínculo assombroso entre criador(a) e criatura, amarrados um ao outro de formas misteriosas e implacáveis.

Amada e o fantasma do infanticídio

Em 1987, quase dois séculos após a primeira publicação de Frankenstein, a escritora afro-estadunidense Toni Morrison lançou sua história de terror sobre maternidade e escravidão: Amada. Focalizando o contexto imediatamente após a emancipação do povo negro, o romance apresenta a história da ex-escrava Sethe e sua filha, Denver, mulheres afetadas pelo passado escravocrata e pelo crime materno de Sethe que, anos antes, havia tirado a vida da filha mais velha ainda bebê para evitar que a levassem como propriedade escrava.

A personagem que dá nome ao romance aparece à família de modo misterioso e nada revela sobre si. Aos poucos, porém, fica evidente que ela seja a filha assassinada por Sethe consubstancializada na jovem que teria sido caso tivesse sobrevivido. Sua presença macabra significará o retorno do acontecimento enterrado pelas vidas envolvidas, em especial pela própria mãe, e, a partir dela, o evento central da narrativa (seu assassinato) exigirá reassimilação, reinterpretação e rearranjo em linguagem. O inexprimível precisará ser posto em narrativa, mesmo que possa apenas assinalar que a maternidade é, de fato, um território assombrado. 

Toni Morrison

Distante de Frankenstein no tempo e no enredo, Amada, ao contrário do romance de Mary Shelley, enfrenta a temática maternal diretamente, mas mostra também que ela é sempre enigmática e povoada de fantasmas. Lançando mão de elementos góticos que carregam o texto de suspense e horror, a narrativa embala o crime materno em uma rede formada pelos fios das vozes, todas em profunda conexão com o acontecimento medular, relembrado em flashbacks e fragmentos. Através da alternância entre as personagens focalizadas, a narradora ilumina lentamente novas nuances e perspectivas sobre o ato, mas nunca o apresenta de modo nítido. Dessa forma, o contato do leitor com o infanticidio permance semissoterrado no texto, vislumbrado apenas de soslaio, seja porque as sugestões do monstruoso são mais efetivas que sua aparição, ou, ainda, porque mirar o sangue do bebê nas mãos maternas pintaria de preto nossos olhos, como fez com os de Sethe: “já que o branco neles tinha desaparecido e eram pretos como sua pele, ela parecia cega”.

Em outro sentido, o assassinato da criança, embrenhado na teia da trama, é construído como um evento indecifrável eticamente. De um lado, estão as experiências usurpadas de mães escravas — gerar, nutrir, criar e ver crescer — pela violência dos interesses desumanos do sistema; do outro, a reação violenta de uma mãe que toma de volta para si a autoridade sobre a vida do ser gerado, mas escolhe interrompê-la. Como avaliar o infanticídio nesse cenário? Quais os limites do direito materno? 

Maternidades como terrenos assombrados

Se o horror suscitado pelo sobrenatural provém, ao menos em parte, do incompreensível e do misterioso, a maternidade é facilmente entendida como um locus horribilis, elemento básico da literatura gótica. Assim, enquanto Edgar Allan Poe mostrou que o espaço mal-assombrado pode ser a própria mente perturbada, Mary Shelley, talvez a mãe do horror sobre a maternidade, metaforizou o trauma da criação como território que cinge vidas, material e extramaterialmente, em um círculo amaldiçoado. 

Nessa leitura, o personagem Victor Frankenstein, alegorizando a experiência materna (e não o poder divino), produziu, com a mente e o corpo, com o intelecto e as próprias mãos, a fonte das tragédias que o assolaram. Como se fossem seus, os atos vis da Criatura preencheram o cientista de horror e culpa, além do senso de responsabilidade pela degradação física e moral do que concebeu. Amaldiçoado desde o momento em que desperta/nasce, o monstro, jogado no mundo e rechaçado, está preso ao vínculo tanto quanto Victor. O ímpeto de destrui-lo como vingança parece seu único propósito possível, reação contra sua sina de vagar num mundo hostil. As duas individualidades estão, portanto, fundidas, complicadas por um espelhamento que confunde os limites de suas existências.

Pela mesma ótica, Amada trata do vínculo sombrio entre o ser que gera e o ser gerado. No espaço sobrenatural da narrativa, o fantasma da filha morta retorna concretamente à vida da mãe e, assim como a criatura de Shelley em relação a Victor, torna-se sua maior antagonista, impedindo-a de abandonar o passado e seguir em frente. A relação entre as duas consome Sethe como o preço pelo seu gesto impensável, antimaternal e, por isso, antinatural, assim como Frankenstein é consumido por sua violação da natureza. Sem deixar explícitas suas motivações, Amada parece exigir da mãe assassina o cuidado e a dedicação de que foi privada. Ainda assim, as experiências compartilhadas entre mãe e filha morta possuem também a conotação de vingança, já que prendem Sethe a um laço fantasmagórico, e nenhum nível de entrega pode desfazer seu ato ou reverter o destino mutilado do bebê que ela tentou salvar pela morte. 

Descendência macabra

A partir da leitura paralela de Frankenstein e Amada, é possível conjecturar que, na tradição das obras subversivas sobre maternidade, a Criatura textual de Shelley inaugura um universo do qual Morrison descende. Conectados, seus romances são lidos como textos visceralmente femininos, já que elaboram o vínculo simbiótico, tão misterioso quanto terrível, envolvendo o poder das mulheres como portadoras da vida. A literatura, aqui, aparece como um espaço privilegiado para a exploração simbólica desse tema, que é tanto sentido pelas escritoras na realidade como figurativizado nos corpos de seus textos como cicatrizes – ora visíveis, ora espectrais.

Referências



  • Texto: Tisha G. 
  • Mestra em Literatura (UNICAMP) com enfoque em autoria feminina. Trabalha como tradutora, revisora e facilitadora de leitura literária. Sempre à procura de meios extra-acadêmicos de escrever sobre livros e criar comunidades em torno deles. Natural de Minas Gerais, atualmente reside em terras lusitanas. 


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