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O feminino representado na literatura fantástica

Perguntar-nos sobre a representação feminina na literatura fantástica é, antes de tudo, analisarmos o imaginário que a rodeou durante a História. Segundo o historiador francês Jacques Le Goff, em seu livro Heróis e maravilhas da Idade Média, apesar de o termo “imaginário” nos remeter à imaginação, sem dúvida ele também está ligado “na criação e no uso das imagens que fazem uma sociedade agir e pensar, visto que resultam da mentalidade, da sensibilidade e da cultura que as impregnam e animam”

Também precisamos tomar como ponto de partida o que caracteriza a literatura fantástica. Segundo Tzvetan Todorov, em seu livro Introdução à literatura fantástica, seu cerne está na incerteza entre o que é real e o que é imaginário. A hesitação é o que dá vida às histórias fantásticas, ou seja, quando o personagem e/ou o leitor têm dificuldades para encontrar explicações aos estranhos fatos apresentados ao longo da narrativa, oscilando entre o natural e o sobrenatural, temos, então, uma história fantástica. 

Adiciono a essa definição um complemento que acredito ser crucial para entendermos algumas obras fantásticas. No livro The Fantastic in Literature, escrito por Eric Rabkin, o autor nos mostra que o fantástico também é a propriedade que transmuta os elementos e leis do mundo natural para causar assombro ou deleite. Um grande exemplo são as flores no País das Maravilhas, presentes no livro Através do Espelho e o que Alice encontrou por lá. A lei da Natureza é clara: plantas não podem falar. Entretanto, Lewis Carroll muda em 180 graus essa lei, permitindo que as flores não apenas falassem, como também expressassem seus sentimentos. 

Sendo assim, analisar como o feminino se comportou dentro da literatura fantástica significa observarmos, mesmo que brevemente, os mitos e as lendas que influenciaram o imaginário da sociedade ocidental ao longo dos séculos. Desta forma poderemos analisar, com mais recursos, como essas histórias permanecem influenciando a maneira como as mulheres são interpretadas dentro da literatura fantástica. 

As mulheres como Musas

As Musas, segundo Jaa Torrano, “têm e mantém o domínio da revelação (ser) e do esquecimento (não-ser) e este domínio é o da raiz originante de todo o poder e exercício de poder. Na expressão mítica de Hesíodo isto se diz: as Musas são filhas de Memória e Zeus”. Enquanto filhas de Memória, as Musas fazem revelações ou impõem o esquecimento. E, sendo filhas de Zeus, que é todo-poderoso, elas possuem muito poder. 

Não é a toa, portanto, que Homero inicia a Ilíada proclamando uma invocação às Musas. Elas eram de suma importância para o trabalho de um rapsodo, que dependia exclusivamente de sua memória para recitar incontáveis versos. Além disso, também estavam ligadas à inspiração divina, no sentido de ser conduzido para algo que está fora de si mesmo

Terpsichore, Muse of Music Dance, por Jean-Marc Nattier (1739)

A atuação das Musas não ficou isolada na Antiguidade, mas atravessou o tempo e se mostrou presente na lírica dos séculos precedentes. Da mesma forma, o entendimento desta palavra se estendeu, abarcando também outras mulheres, que eram contempladas pelos poetas como “musas inspiradoras”, por serem dotadas de grande beleza e graciosidade. 

Melusina e a ambiguidade feminina

Segundo Jacques Le Goff, Melusina pertence a outro grupo interessante de seres medievais do sexo feminino: o das fadas. Acreditava-se que elas eram descendentes das Parcas da Antiguidade, cujo nome em baixo-latim, fatae, revela uma ligação com o destino, fatum. Essas fadas, pouco a pouco, foram introduzidas no imaginário cristão, que as distinguia entre boas e más. 

Ainda segundo Le Goff, nenhuma heroína medieval ilustra melhor do que Melusina a crença de que nenhum ser humano é inteiramente bom ou mau. Afinal, em várias versões de suas histórias, Melusina é uma bela fada que esconde algum segredo terrível. Ela se apaixona por um homem, casa-se com ele e promete lhe oferecer prosperidade e filhos, mas com alguma condição. Quando esta é quebrada, Melusina desaparece, pois a sua outra forma foi revelada: a de um dragão ou serpente. 

Melusina no banho, espionada pelo marido (século XV)

Em todas essas histórias, é possível perceber a ambiguidade feminina, onde nem tudo é o que parece, e que existem mistérios que são, aos homens, sempre inacessíveis  —  os fazendo questionar mesmo sua própria razão. Melusina faz parte das mulheres fantásticas cujo poder está velado pelas aparências, mas uma vez descoberto, é para sempre perdido

Edgar Allan Poe e suas personagens misteriosas

O famoso escritor estadunidense, que viveu de 1809 a 1849, muito conhecido pelo conto O gato preto, também escreveu histórias nas quais a personagem fantástica era uma mulher. Berenice é seu conto mais famoso, mas junto a ela também existem as histórias Morela, Ligeia e Eleonora

Uma característica presente em todas essas narrativas é a aparente distância que existe entre elas e seus respectivos narradores-personagens. Assim como Melusina, todas encerram mistérios próprios, que são inacessíveis ao conhecimento do homem, mas que o influenciam de alguma forma. Em Morela, por exemplo, conhecemos a história de um homem que sempre se sentiu especialmente atraído por essa mulher, sem saber exatamente de onde provinha tamanha afeição:

Levado a conhecê-la por acaso, há muitos anos, minha alma, desde nosso primeiro encontro, ardeu em chamas que nunca antes conhecera; não eram, porém, as chamas de Eros, e foi amarga e atormentadora para meu espírito a convicção crescente de que eu não podia, de modo algum, definir sua incomum significação, ou regular-lhe a vaga intensidade.

Já no conto Ligeia, a mulher é representada de maneira diferente, ainda que a ambiguidade e a distância permaneçam. Nele, lemos a história de um homem que se apaixona por uma mulher diferente, excepcional em todos os sentidos: sua beleza era rara e hipnotizante; era muito inteligente e seus conhecimentos estavam muito acima dos que portava o narrador. Além disso, ela o amava apaixonadamente e sua existência era como uma luz aos seus dias sombrios. Ela era sua guia e detinha todo o conhecimento do mundo que não pode ser visto; era sua Musa: 

Com que vasto triunfo, com que vivo deleite, com que tamanha esperança etérea sentia eu  —  quando ela se curvava sobre mim, em meio de estudos tão pouco devassados, tão pouco conhecidos  —  alargar-se pouco a pouco, diante de mim, aquela deliciosa perspectiva, ao longo de cuja via esplêndida e jamais palmilhada podia eu afinal seguir adiante até o termo de uma sabedoria por demais preciosa e divina para não ser proibida!
Ligeia, por Harry Clarke (1923)

As mulheres descritas por Edgar Allan Poe são misteriosas, distantes, pertencentes a um outro plano que não pode ser alcançado por seus narradores. Suas qualidades extraordinárias ora suscitam raiva, ora louvor da parte de seus amantes. Logo, podemos entender o feminino fantástico como a aproximação a um lado desconhecido da mulher, cuja figura possui a sombra da mitológica Esfinge. O fantástico feminino pode ser adorado ou odiado  —  mas a resposta não parece se encontrar em nenhuma dessas alternativas. Nenhum dos narradores-personagens de Poe jamais conseguiu entender definitivamente suas companheiras — e não é de se espantar que todos tenham sido devorados. 

Gérard de Nerval e a Aurélia mítica

Tzvetan Todorov, em seu livro Introdução à Literatura Fantástica, conta que esta história é um grande exemplo da ambiguidade fantástica. Aurélia é uma novela publicada em 1855, escrita em meio aos acessos de loucura de que sofria Nerval. Essa novela pode ser chamada de uma grande viagem onírica, na qual seu narrador percorre o mundo em busca de um perdão transcendental que salvaria sua alma. 

Ao longo da narrativa, a personagem que intitula a novela, Aurélia, ganha proporções míticas. Ela se torna a grande Musa que o inspira a viver melhor, a ser melhor, e o leva a paisagens belas e tranquilas. Mas também, ao final do livro, torna-se uma deusa, onde todas as coisas boas e belas confluem e um símbolo de restauração e perdão. Ela, assim como as Musas gregas, eleva o narrador a algo que ele não poderia alcançar por conta própria. O feminino, portanto, é representado como um símbolo de beatitude.

Em um trecho presente no livro, o narrador escreve que:

Cadenciando a cintura esguia num movimento que fazia cintilar as dobras do vestido em tafetá furta-cor, a dama por mim seguida, graciosamente, cingiu um longo talo de malva-rosa com seu braço nu; depois começou a crescer sob um claro raio de luz. Aos poucos o jardim adquiria-lhe a forma, e os canteiros e as árvores tornavam-se as rosáceas e grinaldas de suas vestes, enquanto seu rosto e seus braços imprimiam contornos nas nuvens purpúreas do céu.

Aurélia engloba a natureza, como se ela mesma fosse sua grande mãe. Nela, portanto, o narrador pode encontrar a paz para suas noites mal dormidas e o conforto para um coração perturbado pela culpa. 

O fantástico feminino de Lygia Fagundes Telles 

A partir de então, outros temas surgiram na literatura fantástica feminina, temas estes que abarcam o próprio cotidiano e os medos das mulheres. Aqui no Brasil, destaca-se o trabalho de Lygia Fagundes Telles que, com seus contos fantásticos, revelou os segredos que vivem escondidos na alma humana. 

Segundo Geneviève Faé:

Por caminhos fantásticos também passeia o leitor da brasileira Lygia Fagundes Telles, autora pertencente à geração de 45, de tom intimista, que enfoca temas como amor, solidão, conflitos e medos da sociedade moderna, com um olhar especial sobre o universo feminino. Os contos, a maioria narrada em primeira pessoa, são riquíssimos de monólogos interiores, possibilitando ao leitor captar diretamente suas falas e seus silêncios, num misto de emoções e palavras desordenadas.

Na literatura fantástica de Telles, o fantástico é usado para que o personagem possa conhecer mais de si mesmo ou do outro. Sendo assim, as representações femininas, ora mais íntimas e precisas, ora mais ameaçadoras e misteriosas, se colocam em um cenário mais conhecido e atingível pelos leitores. As situações que desencadeiam os acontecimentos fantásticos são imprevisíveis, mas seus desdobramentos mergulham profundamente e, principalmente, no interior feminino. Lygia Fagundes Telles traz o mistério para mais perto de nós, para as mulheres que vemos diariamente. E, ao fazer isso, ela consegue cobrir o fantástico com uma nova roupagem  —  uma mais conhecida e vivenciada por nós  —  e, por isso, o confere mais força que as outras histórias poderiam conferir. 

Referências



Arte em destaque: Mia Sodré



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Rebeca Pereira
É estudante de Letras e apaixonada por literatura fantástica e maravilhosa, fantasia, contos de fadas, folclore e mitologia.

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