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O sol é para todos, de Harper Lee, e a síndrome do white savior


Considerado um dos maiores clássicos da literatura mundial, O sol é para todos (To kill a mockingbird), da autora Harper Lee, se passa nos Estados Unidos de 1930. A narrativa é contada do ponto de vista infantil de Jean Louise, referida pelos seus mais próximos como Scout. A menina de 6 anos mora com o pai, Atticus Finch, o irmão, Jem, e a governanta, Calpurnia. A palavra "scout", em uma tradução livre do inglês, pode significar "explorador", "curioso" e "observador", o que reflete a personalidade de Jean Louise. No livro, não é explicitada a razão do apelido carinhoso, mas percebe-se que a autora deixa isso à interpretação do leitor, uma vez que Scout é curiosa e, durante a trama, não para de consultar incessantemente o pai sobre assuntos considerados complexos para a sua idade.

Por meio da narração infantil de Scout, o leitor se depara com as temáticas do racismo, preconceito social, conformismo perante às injustiças e as relações coletivas da comunidade de Maycomb. Tudo começa quando o pai de Scout, o advogado Atticus Finch, assume um caso de acusação de estupro contra Tom Robinson, homem negro acusado de estuprar uma mulher branca em Maycomb, no sul dos Estados Unidos, em 1930. Ao assumir a postura de defensor de Tom Robinson, Atticus Finch, advogado e homem branco, passa a enfrentar rejeição por grande parte dos moradores do município do Alabama, enquanto se torna herói para outros – inclusive para os leitores da obra.

Quero dizer apenas que há homens neste mundo que nasceram para fazer o trabalho duro para nós. O pai de vocês é um desses.

A obra, ganhadora do Prêmio Pulitzer em 1961 – prêmio de origem estadunidense concedido a pessoas que realizam trabalhos de excelência na área do jornalismo, literatura ou composição musical –, também deu origem a um filme, que carrega o mesmo título, ganhador do Oscar em 1962. Inegavelmente um sucesso, o livro foi publicado originalmente em 1960.

Harper Lee


Nelle Harper Lee nasceu em Monroeville, Alabama, em 1926. Sendo a mais nova de duas irmãs e um irmão, Harper partilhava da personalidade de Scout, uma vez que não se comportava da maneira tradicional, isto é, da maneira que era esperado das meninas e mulheres da época, o que pode fazer da personagem o seu alter ego. O pai, Amasa Coleman Lee, assim como o pai de Scout, era advogado, mas também era editor de jornal e político. Sua mãe, Frances Cunningham, era dona de casa, e, na maior parte da vida de Lee, sofreu de desordens mentais, razão pela qual não deixava a casa. Por isso, ainda sob a análise de Scout como alter ego de Lee, a mãe da menina não está presente na narrativa, uma vez que é informado que a mãe faleceu quando Scout tinha apenas dois anos de idade.

Harper Lee no set de O sol é para todos (1962)

No ensino médio, a paixão de Harper Lee por literatura inglesa já havia despertado. Ela se formou na Monroe County High School, em 1944. Após a formação, atendeu à faculdade só para mulheres de Huntingdon College, em Montgomery. Lá, foi membro da Sociedade de Honra Literária (Literary Honor Society). Após um ano, transferiu-se para a Universidade do Alabama, onde estudou direito, até desistir faltando um semestre para a conclusão do curso, com o intuito de perseguir seu sonho de escrever. No verão de 1949, antes da sua desistência, seu pai a mandou a um intercâmbio na Universidade de Oxford, com o objetivo de reviver o interesse da filha pelo curso de direito. Lá, Harper Lee fez parte de um curso sobre a Civilização Europeia no Século XX. O plano frustrado do pai não surtiu efeito. Em 1949, após deixar a faculdade de direito, Lee mudou-se para Nova York em busca do seu sonho de se tornar escritora.

Em 11 de julho de 1960, ela publicou O sol é para todos. O livro, na época, obteve sucesso quase instantâneo. Um ano após a publicação, já havia vendido 500 mil cópias e sido traduzido para dez línguas. As críticas, no entanto, eram mistas. Apesar disso, com a adaptação cinematográfica em 1962, a crítica reconsiderou O sol é para todos e a obra voltou a ser aclamada quase por unanimidade. O filme chegou a ser indicado para oito Oscar, recebendo três das estatuetas. Tal fato, contudo, causa estranhamento, dado o histórico extremamente racista vigente nos Estados Unidos – e no mundo todo, durante os anos 1960. Por várias décadas, em estados como o Alabama – local onde ocorre a trama –,  havia leis segregacionistas de espaços e vivências. As leis proibiam que pessoas negras ocupassem o mesmo ambiente que as brancas, mesmos se fossem públicos; proibia, também, casamentos entre pessoas pretas e brancas, limitava o acesso de pessoas negras a benefícios básicos etc. Diante disso, formaram-se organizações que visaram a luta contra o racismo e o segregacionismo, tendo o seu auge entre os anos 1950 e 1970. Por isso é de se estranhar que uma obra que aborda questões raciais em anos tão conturbados para não só a comunidade negra, como também para história pós-escravocrata dos Estados Unidos, tenha sido alvo de tanto sucesso.

A síndrome de White Savior e o herói branco de Harper Lee


A síndrome de white savior, ou, em tradução livre, síndrome de branco salvador, possui a seguinte faceta: uma pessoa branca – nesse caso, Atticus Finch, o herói branco de Harper Lee – resolve as adversidades de uma pessoa não-branca, adversidades estas que não poderiam ser resolvidas pelo personagem não-branco por conta própria, assim como Tom Robinson não poderia dar cabo delas. Dessa forma, Harper Lee criou na ficção o que a professora de direito Osamudia R. James enxerga na vida real como a maneira com que os Estados Unidos estimam as histórias sobre raça: centradas em protagonistas brancos que exercem seu poder benevolentemente, com personagens negros presentes às margens, mesmo nas histórias sobre a sua própria opressão.

O sol é para todos (1962)

O livro O sol é para todos, como já mencionado, se passa do ponto de vista de Scout, uma criança branca de classe média, que narra, além dos momentos de sua infância, o processo de defesa do pai advogado a favor de Tom Robinson, homem negro acusado falsamente de estuprar uma mulher branca. Nesse sentido, Atticus Finch torna-se o herói da história da opressão sofrida por Tom Robinson, exatamente como aponta a professora Osamudia R. James. Tom Robinson, homem negro, torna-se um personagem “extra” da sua própria violência, enquanto Atticus Finch é o protagonista corajoso e desbravador, justamente por assumir o caso de Tom.

Coragem é quando você sabe que está derrotado antes mesmo de começar, mas começa assim mesmo, e vai até o fim, apesar de tudo.

O sucesso do livro, em 1960, e do filme, em 1962, pode ser justificado, então, dessa forma. Segundo o professor de literatura inglesa Geoffrey Glover, que é também especialista em pedagogia antirracista, o livro aborda racismo por apenas uma direção – através de uma mentalidade externa e branca. Isso, em consonância com a afirmação da professora Osamudia, explica o sucesso de uma obra com a temática racial em anos tão conturbados para questões raciais como os anos 1960. Nesse sentido, ainda de acordo com Geoffrey Glover, não modernizar a discussão de O sol é para todos é um desserviço ao espírito do livro.

O livro, no entanto, pelo fato de ter sido escrito e publicado durante a ascensão do Movimento Pelos Direitos Civis nos Estados Unidos, foi amplamente visto como um libelo em prol da justiça racial. Por isso, de acordo com Geoffrey Glover, é necessário que se modernize a discussão em torno de O sol é para todos. O professor também aborda a necessidade de uma descentralização da branquitude, isto é, trazer a atenção para os personagens negros presentes na obra e repensar as cenas partindo desse ponto de vista.

A obra de Harper Lee, portanto, não deve ser esquecida, mas, sim, repensada. É vital que ela seja lida, desde que seja de forma crítica. É vital que seja discutida. 


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Referências




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Ana Clara de Menezes
Estudante de Jornalismo na Universidade Federal de Santa Catarina, é apaixonada pela temática da literatura clássica, assim como ama escrever sobre ela. Se considerando uma discípula de Jane Austen, é fã de comparações do atual e do antigo, que vão de Clarice Lispector a Elena Ferrante e Crepúsculo a Orgulho e Preconceito.

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