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As Meninas: um retrato político e social dos anos 70


Em 1974, Lygia Fagundes Telles publicava As Meninas, a história de três universitárias coligadas pelo inquilinato no Pensionato Nossa Senhora de Fátima, o ponto de convergência onde aprendem a cultivar, além de amizade, a cumplicidade. Mas muito mais que um romance sobre três meninas jovens adultas compartilhando a vida e suas experiências amorosas, o livro é um recorte do Brasil dos anos 1970, um retrato da falta de esperança e degradação do que é uma sociedade aprisionada em uma ditadura militar, e nos conta muito sobre as juventudes conturbadas e comprometidas que se forçaram a crescer em meio a esse período turbulento. 

Na trama, acompanhamos a rotina e os pensamentos de Lorena, Lia e Ana Clara, jovens mulheres unidas pelos dramas pessoais que se entrecruzam de uma forma ou de outra. Apesar de provindas de passados e origens completamente distintos, se encontram unidas pelos suportes emocionais que oferecem uma a outra, não só enriquecendo a narrativa, como demonstrando também toda a destreza da escrita de Lygia, que utiliza do caráter psicológico e emocional para moldar suas três meninas no imaginário do leitor. 

Lorena é dramática e melancólica, carrega em si não apenas o peso do luto, mas o fardo de ter presenciado a morte de um ente muito querido. Apesar de rica e descendente de bandeirantes, vê sua estrutura familiar ruir após a morte do irmão, a doença do pai e a degradação mental da mãe, e com isso aprende a maquiar sua própria realidade para criar um lugar onde possa viver em paz, mas sempre dispensando muito zelo aos seus protegidos. Por ser a mais intelectualizada – e mais abastada – das três, acaba sendo o porto seguro de ambas, a âncora a qual sempre recorrem nos momentos de aflição. Lorena é uma moça doce e, constantemente tachada de frágil pelas outras, vai mostrando sua força ao longo do livro. 

Vive à esperança de um romance com um homem casado, com quem sabe, no fundo de seu coração, não ter futuro algum. E talvez até goste dessa configuração, pois desse emaranhado nada sairá do plano dos sonhos ou se concretizará no âmbito da realidade, e essa seria uma coisa muito mais simples de lidar do que encarar os fatos. 

Vinda de um contexto social totalmente diferente, Ana Clara, ou Ana Turva, para os mais chegados, é uma moça que já passou por todo tipo de trauma e abuso, e vê no laço matrimonial a grande oportunidade de ascensão social que sempre sonhou. Uma infância roubada, soterrada por tantos traumas que talvez nem mesmo a própria Ana fosse capaz de se recordar as verdades de sua história em meio às tantas mentiras que contava aos outros e a si mesma para tentar amenizar a memória. Nessa busca desesperada por remediar a mente conturbada, Ana se lança ao mundo das drogas, no qual se engendra e do qual nunca mais consegue sair. 

Apesar do sonho matrimonial com o noivo rico e os grandes planos que tem para sua vida na alta sociedade, seu grande amor é um traficante, que ontem mesmo era um menino de família abastada, mas assistiu sua vida ruir e seu gradual salto em rumo ao precipício da dependência química. Ana o ama profundamente, sabe que sim, e por isso se culpa, pois vê nesse amor uma ponte que a equipara com a mãe, figura por quem nutre um misto de revolta, pena e desprezo. 

Conhecida por apresentar sempre uma perspectiva feminina, Lygia é fantástica em sua escrita. Há de sua parte uma sutileza sagaz ao construir protagonistas solidamente estruturadas a partir do emocional e, valendo-se do fluxo de consciência, por vezes nos faz pensar o comportamento humano por um prisma mais intimista e pessoal. 

Lygia Fagundes Telles

A autora transita entre primeira e terceira pessoas de forma muito suave, e isso é essencial para a captação máxima de todos os sentidos das personagens; lê-las é como estar em suas cabeças e a escolha de palavras feita por ela é imprescindível para que isso se concretize. Lygia molda, com palavras, as personalidades de suas meninas, nas gírias, nos trejeitos como elas se expressam, não apenas nas falas, mas também nos raciocínios, e isso é de uma riqueza imensurável, pois traz ao leitor experiências que, na grande maioria das vezes, são totalmente inesperadas.

Há uma dor excruciante em acompanhar e reviver as memórias de Ana Clara, é devastador e brutal tudo aquilo ao qual uma menina de vinte e poucos anos já foi submetida em sua breve existência, dói estar no camarote dessas lembranças, dói entender os caminhos que a levaram à degradação total de sua integridade física e psicológica, e essa imersão é o que torna Ana Clara talvez a personagem mais interessante do livro. Dessa mesma forma, existe uma melancolia nas viagens de Lorena, que apesar de ter uma vida muito menos ingrata, carrega sua dose de dor e dribla seu fardo pessoal de formas diferentes, e com suas meditações, indaga no leitor questionamentos quase filosóficos, como quando nos diz, em uma de suas viagens particulares:

"Quero te dizer também que nós, as criaturas humanas, vivemos muito (ou deixamos de viver) em função das imaginações geradas pelo nosso medo. Imaginamos consequências, censuras, sofrimentos que talvez não venham nunca e assim fugimos ao que é mais vital, mais profundo, mais vivo. A verdade, meu querido, é que a vida, o mundo dobra-se sempre às nossas decisões."

Com sua escrita poderosa e imersiva, Lygia alcança um lugar que poucos se atreviam a visitar, um lugar onde expõe de forma crua e sem floreios temas latentes na sociedade brasileira dos anos setenta. Tange o ápice da explosão das drogas sintéticas, as discrepantes disparidades socioeconômicas características do período, a naturalização de profissionais da saúde mental na sociedade e, principalmente, a realidade brutal vivida em uma ditadura militar. 

O cenário do romance é um Brasil já arrasado pelo o golpe de 1964. Em 1969, cinco anos após o golpe, iniciam-se os anos de chumbo, quando os porões da ditadura eram palco para todo tipo de tortura e a morte havia sido institucionalizada, tudo maquiado sob o véu do dito "milagre econômico". É em meio a essa obscuridade que nasce As Meninas, e o nascimento de Lia se torna então uma urgência.

Lia é aguerrida e imponente, uma guerrilheira de primeira que dá tudo de si no combate às práticas violentas dos militares. Filha de uma baiana e um alemão que se rebelou contra o regime nazista, a menina traz em si a mistura genuína do sangue fervente de ambos, em uma combinação de extrema personalidade e firmeza. Faz parte de um grupo de militantes, reúne fundos e doações para ajudar seus amigos foragidos, e roga por todos aqueles perseguidos, presos e torturados. Sabe que o melhor caminho é o diálogo e a união, mas há tempos já deixou de acreditar que essa ainda seja uma possibilidade de lutar contra toda a violência instaurada pelo sistema ditatorial. Em seu drama pessoal, teme pelo amado que, como tantos outros, é um preso político. Mas não há tempo para dramas pessoais em seu itinerário; vive por seus ideais e está disposta a morrer por eles, caso preciso for. 

Segundo um depoimento da própria autora, foram três anos trabalhando em suas três meninas, convivendo com elas e muitas vezes confessando algo através de suas bocas. Apesar de todo o espectro  desenvolvido em Ana Clara e Lorena, é nos discursos de Lia que encontramos denúncias severas a um dos períodos mais violentos vividos pelo Brasil, onde diariamente a censura e a repressão calavam as vozes de milhares de pessoas. 

Lia é não só a voz dos pobres. Lia é a voz que Lygia encontra para denunciar sua própria revolta com o período sociopolítico no qual estava inserida, a voz com a qual denuncia a fome e a violência, expondo não apenas sua opinião e descontentamento, mas tendo a ousadia de narrar de forma explícita, pela boca de Lia, o primeiro depoimento de tortura já publicado. 

 À luz da ficção, Lygia delata detalhadamente diversas atrocidades cometidas pelos militares naquele período. O relato em questão é o depoimento de um botânico, que apesar de não possuir nenhum vínculo partidário, foi preso sob a suspeita de incitar os operários de uma fábrica ao distribuir panfletos. Perante a Justiça, o homem narra sua prisão, um interrogatório de vinte e cinco horas, e todos os dias tenebrosos de tortura que sofreu nos porões da ditadura, citando práticas de violência psicológica e física, espancamentos, choques elétricos e mencionando o terrível pau-de-arara. 

Além do emblemático depoimento, é também através dos pensamentos de Lia que vêm à tona ponderações claras sobre problemáticas presentes ainda nos dias de hoje, como quando recorda que "se a Nova Esquerda não se unisse aos outros grupos acabariam todos tão multiplicados e enfraquecidos que quando se tentasse uma linguagem comum, ninguém mais se entenderia".

A década de 70 foi um período repressor no qual centenas de pessoas eram mortas, exiladas e torturadas em nome da lei, sobretudo artistas e comunicadores que usavam suas vozes para se opor publicamente ao regime em vigor. Apesar de a censura literária não ter sido tão rígida quanto a censura aos demais meios de comunicação e arte, denunciar esse tipo de abuso demonstra a coragem monumental de Lygia como escritora. 

Ao publicar As Meninas, Lygia condensou em uníssono as três vozes que refletiam a visão de mundo que carregava consigo, mas para além das declarações feitas – e nós nunca saberemos verdadeiramente sob quais camuflagens jaziam os fragmentos pessoais dela –,  todo esse relato é fruto da mente de uma artista que necessitava registrar, em palavras, a sociedade na qual estava inserida e a qual testemunhava. Sua voz é esculpida sob o formato das vozes de três meninas, cujas personalidades e mentalidades fortes se incumbem de externar tudo aquilo que mais se fazia necessário, do ponto de vista feminino, tal como Lygia via o mundo à sua volta. 

Como uma grande defensora da figura feminina, a autora é tão cirúrgica e sua entrega é tão profunda que por vezes suscita o questionamento de que talvez tenha depositado uma parte de si mesma em cada uma delas, como diferentes facetas de uma mesma figura central. Suas meninas potencializam a força feminina em n sentidos, não apenas como mulheres de seu tempo, mas como construções de arquétipos que, como dito pela própria autora, estão perdidas por aí. 

Tido hoje como um dos maiores clássicos da literatura brasileira, o livro é um recorte de uma juventude conturbada e problemática que sobreviveu aos enevoados anos 70, cheios de problemas de todos os lados, e tão real e sóbrio que envolve o leitor até o último fio de cabelo no gosto amargo daquela realidade, embrulha o estômago. As Meninas é um romance brutal, escrito com maestria por uma das mais emblemáticas figuras femininas de nossa história. Lygia Fagundes Telles foi uma das maiores escritoras brasileiras, mas para além da figura pública, foi uma mulher que abriu caminhos e deu voz a milhares de outras. 


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Comentários

  1. Perfeito. Uma apresentação impecável, que os transporta pa dentro dessa esplêndida obra literária. Parabéns

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