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Edith Wharton e a Era Dourada em A Velha Nova York


Edith Wharton foi uma escritora nova-iorquina e a primeira mulher a vencer o Prêmio Pullitzer. Apesar de ser conhecida pela sua obra-prima A época da inocência, suas outras obras não ficam atrás em questão de crítica à sociedade. Na coletânea A velha Nova York, Wharton explora diferentes facetas da sociedade e seus costumes.

Formadas por diferentes protagonistas, as tramas de suas novelas representam diversos níveis e momentos da elite de Nova York. Para que as diferenças fiquem ainda mais visíveis, é importante lembrar que cada novela retrata uma década. Todos os contos têm algo em comum: o reforço de que a sociedade nova-iorquina não era mantida por princípios nobres e altruístas, mas, sim, por representar esses princípios, mesmo sendo vazia deles. Não é novidade que a sociedade renasce e sobrevive através da propaganda, ou seja, através da ideia que revela, mas que nem sempre é verídica; a sociedade só existe por causa de suas aparências, já que não há nada por trás dela.

Edith Wharton é celebrada por dissecar a alta sociedade nova-iorquina em suas obras mais famosas, A época da inocência e A casa da alegria, de forma única e magnânima; no entanto, pouco se fala sobre seu conjunto de novelas A velha Nova York, obra subestimada, mas com valor incrível, tanto para o estudo da sociedade quanto para a compreensão da própria vida da autora.

Enquanto A época da inocência foca nos contrastes do Old Money e do Nouveau Rich, com uma espécie de triângulo amoroso digno de causar escândalo, e A casa da alegria trata sobre as minúcias que podem fazer ou desfazer o futuro de alguém na alta sociedade, também abordando temas voltados ao papel da mulher e o casamento na Era Dourada, A velha Nova York se difere em alguns aspectos. Mesmo que trazendo à tona temas bastante semelhantes, a obra conta com uma gama maior de personagens e de situações corriqueiras que impactam em suas vidas supérfluas. 

As suas obras mostram um nível de observância à altura de Honoré de Balzac – que se autodenominou “o estudioso da sociedade" – devido a sua notável vivência no meio social. Fica em evidência que a grandiosidade dos escritos da autora se dá pela perspicácia de suas ponderações, assim como salta aos olhos sua delicadeza única ao debater sobre a hipocrisia da sociedade, trazendo beleza à sua prosa. Se todos os trabalhos de Edith Wharton são sobre suas observações e sobre sua vida, esse conjunto de novelas vai além e se torna mais pessoal ainda, abordando a linhagem da autora e pequenas situações “desconfortáveis” e impossíveis de abafar em um círculo tão exclusivo. Para compreender melhor suas obras, em especial esse livro tão pouco estimado, é necessário saber um pouco sobre Edith Wharton e Nova York durante a Era Dourada, ou, como é mais conhecida – talvez por causa da série da HBOMax, talvez por causa da presença constante do inglês em nosso país –, The Gilded Age.

“A velha Nova York sempre evitava pensar em qualquer coisa que interferisse com o decoro perfeito de seus arranjos.”

Edith Newbold Jones nasceu em uma família nova-iorquina bem estabelecida na sociedade. Sua educação foi realizada a partir de tutores privados, tanto nos Estados Unidos quanto na Europa, já que sua família viajava bastante devido a Guerra Civil. Quando Edith debutou, ou seja, fez sua aparição para se tornar parte da sociedade e “arrecadar” pretendentes, isso aconteceu durante a Era Dourada, a qual os Estados Unidos estava em um período de forte crescimento econômico, grande taxa de imigração e enorme desigualdade. O nome foi usado a partir de um livro de Mark Twain, que satirizava o período vivido pelos estadunidenses, dizendo que era um época feita por problemas sociais disfarçados por uma máscara dourada; muitos críticos consideram o termo pejorativo, pois foi um período de uma desigualdade social gigantesca; os ricos só se importavam em demonstrar opulência, gastando quantidades absurdas de dinheiro para esbanjar suas posses materiais, enquanto os pobres morriam de fome. Esse sucinto resumo da Era Dourada já mostra uma sociedade cheia de falhas e lascas, que Edith, muitos anos após se casar e se tornar Edith Wharton, aproveitaria para denunciar em suas obras.

Edith Wharton

Wharton, apesar de ter nascido em uma “boa” família e ter recebido educação apropriada, “quase” foi considerada uma solteirona, afinal, depois de debutar na sociedade aos 17 anos, fazer as aparições necessárias, participar de danças e jantares, ela só se casou aos 23 anos, o que era muito tarde no século XIX.

Um dos aspectos sociais mais famosos da Era Dourada era a existência dos “The 400”, o crème de la crème da sociedade. Era o nicho mais alto da sociedade, com o nome supostamente advindo da capacidade de pessoas que cabiam no salão de bailes da Sra. Astor ou de Ward McAllister, que disse só haver 400 pessoas elegantes em Nova York; a origem exata da alcunha é desconhecida. No entanto, a lista que, diga-se de passagem, era bem menor do que as quatro centenas, era disputadíssima, já que todo mundo que era incluído nessa lista era considerado mais elegante, mais rico e mais refinado que todos. Era a alta sociedade da alta sociedade, e, uma vez fora ou dentro, o destino não seria mais o mesmo. A nata era liderada pela Sra. Astor, e a lista oficial foi publicada em fevereiro de 1892; a família de Edith Wharton estava inclusa nesse círculo, claro, pois muitos anos antes de existir “Keeping up with the Kardashians”, a frase que circulava era “Keeping up with the Joneses”.

Através dessas informações, é possível compreender como os romances de Edith Wharton eram tão fiéis à vida real, afinal, ela estava no meio da sociedade vendo tudo acontecer, tanto o melhor quanto o pior. Assim, os temas presentes em suas obras são assuntos que permearam toda a alta sociedade nova-iorquina: escândalos, vergonhas, hipocrisia e a necessidade de manter as aparências e de se distinguir do Nouveau Rich, desprezado pela “verdadeira sociedade”.

Então chegamos ao conjunto de novelas, A velha Nova York, um projeto ambicioso que abrange quatro histórias em quatro décadas diferentes. Todas possuem os temas comuns às obras de Edith Wharton; ela utilizou da ficção para analisar os efeitos da classe social no comportamento dos indivíduos da alta sociedade: como eles se comportam, como são suas relações, como eles reagem e como pensam, dentro do contexto opulento em que eles vivem. Divórcio, etiqueta, costumes estadunidenses, casamentos adequados – já que a palavra “arranjado” era muito démodé e nem um pouco fashionable para os nova-iorquinos – que são benéficos para ambas as famílias, porém, uma jaula para a esposa etc. Assim como as relações sociais, o papel da mulher em uma sociedade patriarcal e a rivalidade entre as mulheres da alta sociedade também eram temas presentes. Edith Wharton pôde observar e viver tudo isso em primeira mão, afinal, a primeira mulher a vencer um Pulitzer não chegou ao sucesso sem obstáculos; ela era uma mulher da sociedade que ousou escrever sobre seu tempo e criticar a sociedade em que vivia. Uma escritora que ousou escrever personagens que desafiavam as construções sociais, tão frágeis e ao mesmo tempo tão enraizadas.

Os contos presentes no livro são sobre situações “corriqueiras”, mas que causariam escândalo caso viessem à tona. Ao invés de utilizar uma trama principal que se desenvolve e, a partir disso, vários costumes a serem analisados e criticados, nessa obra ela decidiu escrever quatro contos, e em cada um mostrar uma faceta diferente da sociedade usando contextos únicos; além do mais, os quatro contos se complementam ao mostrar como a alta sociedade nova-iorquina se desenvolveu em quatro décadas, desde a sua força na insurreição, à sua decadência infame – a decadência é apenas teórica, pois a alta sociedade sempre está viva, no entanto, é necessário atualizar a imagem, em especial quando uma roupagem em particular foi motivo de críticas ou escândalo.

Falso amanhecer 


Os pontos principais aqui são a inflexibilidade da hierarquia familiar e a reafirmação do poder através da participação da alta sociedade, afinal, dinheiro não é suficiente, os outros têm que saber que alguém tem. No entanto, a vontade do patriarca da família em ser abraçado pela sociedade nova-iorquina também vem da validação de sua linhagem, de ser reconhecido como superior aos seus pares. Para isso, ele conta com o primogênito, que carrega todas as expectativas de seu pai. O peso de conseguir algo tão ambicioso como fazer parte de um nicho extremamente exclusivo está em um menino que não conhece nada sobre a sociedade ou sobre a vida, ele nunca nem havia estado em Nova York.

O diferencial em Falso amanhecer é a abordagem do impacto que uma relação familiar recebe por causa da arrogância e da soberba; além disso, a forma com que Edith Wharton trata a “Arte” e o que pode ser considerado artístico ou não mostra o quanto ela respeitava a arte e que ela também era uma mulher muito progressista. No texto, as obras escolhidas pelo jovem Lewis, e que são a razão de sua queda e miséria, se tornaram obras icônicas que sobreviveram o passar do tempo; enquanto as obras que o pai queria não chegam perto da fama daquelas. É interessante o ponto que a autora faz sobre a permanência da arte, que não precisa da validação da sociedade ou da apreciação de pessoas ricas.

Pintura representando Edith Wharton na juventude

Representando os anos 1840, o conto nos mostra a família de um autoritário, Sr. Raycie, que pretende se mudar para a parte urbana de Nova York enquanto seu filho faz uma grande viagem pela Europa, um itinerário chamado de Grand Tour. Lewis, o único filho homem, não tem o porte ou a aura de imposição de seu pai; ele é um rapaz sensível, apaixonado por uma órfã que não está na "mesma altura" da sua família, em termos de reputação, além de ser apaixonado por arte. Nas primeiras páginas, já notamos o peso da responsabilidade posta sobre Lewis: por ser o único homem de uma família rica, precisava levar à frente um legado que não compreendia, a fim de atender às expectativas inalcançáveis de seu pai, que tem a pretensão de impressionar Nova York com sua riqueza e bom gosto.

Apesar de o Sr. Raycie ser considerado prático e inteligente para os negócios, o conto deixa claro que ele não é uma pessoa de "bom-gosto"; ele não possui a elegância e desenvoltura que a elite nova-iorquina espera de seus membros. Assim, para poder inserir sua família nesse meio, ele decide ter uma galeria de arte em sua nova casa e deixa Lewis encarregado de comprar obras de arte para compor a galeria; é uma tarefa da qual o jovem gosta, porém, que o aterroriza, já que as escolhas deveriam agradar sobretudo ao pai.

A propósito do que foi dito anteriormente, deve-se ressaltar, para compreender outros pontos da narrativa, o que seria o Grand Tour: trata-se de uma viagem à Europa, realizada por jovens de famílias ricas ao completarem 21 anos, que visava momentos de prazer. Essa viagem também servia como um "tour cultural e artístico", já que as cidades que eram priorizadas eram aquelas que davam o maior acesso à história e à arte.

"E o tempo inteiro, o Sr. Raycie continuou a pregar.
— Um jovem, na minha opinião, antes de se preparar para si mesmo, deve ver o mundo; formar seu gosto; fortificar seu julgamento. Deve estudar os monumentos mais famosos, examinar a organização das sociedades estrangeiras e os hábitos e costumes dessas civilizações mais antigas, cujo jugo tem sido nossa glória abandonar. Embora ele possa ver neles muito o que lamentar e reprovar (...), muito do que o fará agradecer pelo privilégio de ter nascido e sido criado sob nossas próprias instituições livres; embora eu acredite que ele também — o sr. Raycie admitiu com magnanimidade — será capaz de aprender bastante."

Nessa citação, fica claro o que é esperado de um jovem que está se preparando para realizar o Grand Tour, na mesma intensidade em que se evidencia o que a sociedade pensava sobre a Europa: o lugar não trazia nada além de mera diversão, ainda que trouxesse algum aprendizado, mas nada além disso. Essa ideia fica ainda mais nítida ao lermos as histórias dos colegas de Raycie, que contam suas experiências quando fizeram o mesmo tour. Assim, fica nítido que, para eles, a viagem para a Europa servia para "aproveitar a vida" antes de voltar para as responsabilidades, e então finalmente se tornar um homem civilizado e de família.

Desviando apenas por um momento da trama principal, Edith Wharton não esquece de mostrar como era restrita e cheia de regras a vida das mulheres, mesmo as ricas. Em todas as suas obras, a autora é feroz ao apontar as hipocrisias da sociedade em relação ao papel feminino, e aqui não seria diferente. O Sr. Raycie, que tinha tanto a provar para a sociedade nova-iorquina sobre seu sucesso, seu dinheiro, sua árvore genealógica, era "menos" rico que sua esposa. No entanto, logo após o casamento, assumiu a administração do dinheiro dela e reduzia, da renda que ela recebia, todas suas pequenas despesas. Podemos tomar o Sr. Raycie como um hipócrita, escancarando mais uma das frágeis facetas da elite: ainda que pretendesse colocar um Rafael em sua galeria, possuía um lado egoísta que descontava da esposa até mesmo o valor dos selos que ela usava em cartas, fazendo com que ela tivesse de economizar no uso de lareiras para poder guardar os irrisórios centavos. Esses pequenos detalhes, que podem passar batidos se comparados com as grandiosas tramas, são os que realmente expõem as pessoas que faziam parte de um grupo tão restrito e tão privilegiado. Características como egoísmo, frieza e hipocrisia são coisas esperadas da alta sociedade. Mas avareza? Edith Wharton era genial pois, através dessas ações, denunciava muito mais os costumes patéticos da elite.

Uma realidade de todos os homens e mulheres da elite, é que todos querem tudo. Não basta ser rico, tem que vestir o melhor. Não basta vestir o melhor, tem que conhecer os artistas. Não basta conhecer os artistas, deve ser culto. Não basta ser culto, etc... No caso, não necessariamente conhecer ou entender, mas conseguir fingir e ter credibilidade o suficiente para que acreditem. O homem da casa não era exceção; sua ignorância era clara e ele também não tinha interesse em ser verdadeiramente culto, mas, assim como todas as outras pessoas de seu nível social, gostaria de passar a impressão. Esse é um termo muito importante, pois todos os personagens de Edith Wharton sobrevivem à base de impressões. Nenhum é, de verdade, aquilo que considera ser. O casamento feliz? Traição. A herança gigantesca? Acabou e agora há pilhas de dívidas. As personagens de Wharton são fraudulentas, mas aqui elas imitam a vida, e as pessoas são fraudulentas. Assim como na era da internet, ninguém precisa ser nada, contanto que consiga convencer os outros de que é. Em meados de 1840, não era diferente. Tudo o que alguém precisava era ser filho de alguém e passar a impressão de ser rico, feliz, inteligente e culto.

"— Um homem — repetiu o sr. Raycie — preparado para desempenhar um papel, um papel considerável, na vida social da comunidade. Espero que você seja uma celebridade em Nova York; e eu lhe darei os meios para que isso aconteça."

Aqui, a escritora nova-iorquina retira mais um véu da sociedade que ela tanto retrata: o futuro escolhido como se fosse um presente, e não uma obrigação. Ser uma celebridade é algo que o filho, tímido e introvertido, quer, ou é um reflexo das próprias pretensões do pai que não conseguiu ser uma? O plano do sr. Raycie é simples, ele quer que seu filho compre algumas obras de arte durante a viagem para compor a galeria e torná-la famosa. Diz que um Rafael será difícil de conseguir, mas um Albano, um Carlos Dolci ou um Salvator Rosa é possível. O filho terá uma generosa soma disponível e contato com certos negociadores de arte. E então, a trama toma forma.

Durante sua viagem, Lewis faz um amigo que parece conhecer muito sobre arte, e o protagonista se impressiona com a arte que, de acordo com seu colega, irá mudar o mundo. Substituirá os antigos movimentos e artistas, que ficarão, por sua vez, obsoletos. Distante da presença imponente de seu pai, Lewis compra alguns desses quadros. Não teme a raiva de seu pai, sente que nessa viagem ele se tornou um homem capaz de escolhas formidáveis. Suas escolhas são retratadas pelos quadros que, coincidentemente, lembram o rosto da menina pela qual ele é apaixonado.

No momento em que vê seu pai, quando volta de viagem, todos os seus medos voltam. A Europa está distante demais para protegê-lo; Lewis está aterrorizado, pois a imponência de seu pai é implacável com sua presença. O desgosto de seu pai é claro; ninguém vê os quadros. A galeria é intocada e seu pai morre cerca de um ano depois, com todo mundo tendo a certeza de que sua morte foi causada pelos quadros. A única coisa que seu pai deixou para Lewis foram os quadros, todo o resto ficou para suas irmãs.

"Os Lewis Raycie estavam casados havia quatro anos, e durante esse tempo tinham desaparecido tão completamente da memória de Nova York como se o exílio tivesse durado meio século."

Quando Lewis e sua esposa se mudaram para Nova York, por causa de uma generosidade de um primo, ele expôs os quadros, para grande desgosto das irmãs, que haviam casado com pessoas da sua estirpe e possuíam galerias de "respeito". Lewis, que ainda era obcecado pelos quadros e sabia que eram arte e que valiam a pena, precisava de olhos que vissem e admitissem o quanto aquilo era incrível. Isso custou o conforto, o dinheiro e o resto da reputação que eles tinham. O protagonista decidiu abrir a galeria e cobrar uma quantia irrisória para poderem arcar com os custos; a lareira só ficava acesa no quarto da bebê. Não havia empregados. De novo, Lewis se tornava uma piada, um fracasso. Agora, para todos. Uma irmã tentou pagar para que ele fechasse a galeria e parasse de expor a família à vergonha. A outra irmã foi bondosa e pagou para que a galeria continuasse aberta.

O final desse conto ocorre quando tanto Lewis quanto sua filha estão mortos há tempos, e alguém, perdida na linhagem da família Raycie, descobre os quadros muitos anos depois. E então, ao chamar alguém para vendê-los, descobre que eles valem uma fortuna.

Esse conto não é "apenas" sobre arte; os quadros, aqui, representam a sociedade nova-iorquina e suas mudanças substanciais nos anos 1840 com a grande chegada de imigrantes alemães e holandeses. O que acharam que nunca iria mudar, que sempre continuaria a ser porque era o correto, na verdade estava errado. Os imigrantes fariam parte de Nova York cada vez mais, e não havia nada que pudesse mudar isso, mesmo tanta gente resistindo. Assim como os quadros desconhecidos se tornaram famosos e foram reconhecidos como arte, a sociedade foi obrigada a mudar, tanto em seu gosto estético quanto em seu núcleo.

A solteirona 


A segunda novela, A solteirona (anos 1850), pode parecer mais familiar em termos de trama para quem leu A época da inocência. A solteirona parece uma versão paralela de um triângulo amoroso, mas o objeto de "desejo" é uma filha, compartilhada por duas primas. Aqui, Edith Wharton mergulha de cabeça em um de seus assuntos recorrentes: o papel da mulher na sociedade e como ela é vista. Como uma mulher que fez parte da sociedade nova-iorquina da metade para o final dos anos 1800, a escritora falava muito sobre as regras implícitas que as mulheres deveriam seguir e, do seu jeito, mostrava que isso impedia as mulheres de serem realmente felizes. A impossibilidade de ser feliz e realizada como mulher devido à sua falta de independência não é um assunto novo e já foi explorado por muitas autoras clássicas, como Kate Chopin em O despertar, e Charlotte Perkins Gillman, algumas décadas mais tarde, em O papel de parede amarelo; esses são apenas dois de diversos exemplos de uma literatura "proto" feminista, na qual a mulher é o centro da narrativa, colocando luz sobre sua falta de liberdade: física, financeira e emocional.


Há um contraste muito grande nesse conto para mostrar como duas mulheres tão diferentes ainda são infelizes, cada uma a seu modo. Os Ralstons eram uma família moderada, sensata e razoável nos negócios, que era muito conhecida em Nova York e formada por ingleses e holandeses (o conto representa os anos 1850, então a imigração holandesa já estava quase inteiramente incorporada). Uma das esposas era a sra. Jim Ralston, uma mulher "correta, sensata e razoável". Ao introduzir a personagem, já é explícito o quanto ela é encaixada nos moldes da sociedade na ideia de ser uma boa esposa, uma boa mãe e uma mulher "razoável". No entanto, nesse dia em particular, enquanto prepara algumas coisas para o casamento de sua prima, Charlotte Lovell (que também iria se casar com um Ralston), ela começa a refletir sobre sua vida e a futura vida de sua prima.

"Ela vivia sob o modo de vida da família de maneira tão impensada quanto alguém vive sob as leis de seu país. Contudo, aquele tremor das teclas mudas, aquele questionamento secreto que às vezes batia nela como asas, ocasionalmente a separava deles por um momento fugaz em que ela conseguia examiná-los [os Ralstons] em sua relação com outras coisas. O momento era sempre fugaz; ela voltava dele bem rápido, sem fôlego e um pouco pálida, para os filhos, os serviços domésticos, os vestidos novos e seu amável Jim."

Delia Ralston não tinha nada a se queixar. Seu marido era bom, ela não possuía dificuldades financeiras, sua família era respeitada. Superficialmente, sua vida era perfeita. Uma vida admirável e desejada por todas as mulheres. E, ainda assim, a insatisfação é onipresente pela falta de escolha por ser uma mulher presa a um destino que foi imposto como uma obrigação para ela. Ela relembra de uma paixão que teve antes de se casar com Jim Ralston, um homem pelo qual ela foi profundamente apaixonada, porém, ele não "servia" para ela, de acordo com as "regras".

Os bebês são mencionados excessivamente; Delia se apoia na existência deles para confirmar a si própria que o seu caminho está correto e que tudo serve para isso. Ela se apoia na alegria e no cuidado deles para compreender sua vida, como se eles fossem a resposta de tudo. Mesmo assim, Delia mantinha um relógio dado por sua paixão, Clem Spender, em seu quarto. Pensava com dó em sua prima, uma mulher que não viveria uma vida como a dela, e que gastava tempo demais ajudando bebês órfãos. Apesar de sofrer pela imposição da sociedade, também perpetuava esse sistema com pensamentos retrógrados sobre “a forma correta de viver a vida” e que, apesar de ajudar os pobres vez ou outra, dedicar-se a eles não era de “bom tom” e poderia prejudicar a reputação da família. Quando Charlotte diz que não vai se casar, Delia pensa o pior de sua prima, afinal, ela faz parte de um sistema que acredita ser isso o que deve ser vivido. Como alguém pode pensar diferente? Como alguém ousaria tomar escolhas diferentes das dela?

"‘Pobre garota’, Delia pensou. ‘Como ela está velha e feia! Mais do que nunca como uma solteirona; e ela não parece perceber, nem de longe, que nunca vai ter outra chance.'

"—As ideias dos Ralstons? Eu não achei que elas fossem…tão insuportavelmente desagradáveis de se conviver — Delia deu um sorriso um pouco azedo.

— Não. Mas foi diferente com você: não lhe pediram para que abrisse mão das suas coisas.”

Foi uma surpresa quando Charlotte pediu sua ajuda, pois estava grávida. O filho era de Clem Spender.

Naturalmente, isso despertou a inveja de Delia. Havia algo nela que se reconfortava ao pensar que Clem nunca havia superado ela, e agora cada parte de seu mundo desabava, pois tudo se mostrava uma mentira, uma conveniência.

“— Ele sempre pensou que você o esperaria — ela soluçou —, e então, quando ele descobriu que você não o esperou…[…]

— Pare, pare — Delia gritou, levantando-se de um salto. Ela tinha provocado a confissão, e, agora que ela acontecera, Delia sentiu que ela havia sido jogada sobre si de forma gratuita e indecente. Era essa Nova York, sua Nova York, sua Nova York segura e hipócrita, era essa a casa de James Ralston, e essa era sua esposa ouvindo tais revelações de desonra?”

Não é por amor à Charlotte ou ao nome da família que Delia encontra uma solução, afinal, ela garante que Charlotte não se case. É em nome de Clem Spender que ela decide ficar com a bebê. É em nome do amor que ela não viveu e gostaria de ter vivido.

“Não importava o que tivesse acontecido, ela não podia deixar Charlotte Lovell se casar com Joe Ralston. Todas as tradições de honra e probidade nas quais ela tinha sido criada a proibiam de ser conivente com esse plano.”

Será que Delia realmente acreditava nas tradições, ou estava se apoiando nelas para impedir que Charlotte fosse feliz? Delia havia tomado pessoalmente o golpe de Clem Spender e Charlotte, e culpou a prima. E poderia ter se decidido. 

Dessa forma, por acreditar que ela está vivendo a vida que teria com Clem Spender, ela se apega à bebê Tina. E Charlotte se resigna a tornar-se a tia solteirona para não macular a chance da filha de viver uma vida plena e poder fazer um bom casamento. Há uma variação do “bebê de Salomão” nesse conto: a mãe de verdade aceita que o bebê seja dado a outra pessoa para que ele não seja dividido ao meio e sofra. O amor da mãe verdadeira é aquele despido de egoísmo, que sofre calado pelo bem do filho.

Apesar disso, o amor de Delia também é verdadeiro. Sim, ele nasceu do egoísmo, porém a sra. Ralston quer dar uma vida sem mácula ao bebê, não quer que ele sofra pelos erros da mãe. Ao mesmo tempo que é uma forma de retificar o abandono (justificável, na época) a Clem Spender, seu amor se desenvolve para o amor materno. Resta aqui o amor verdadeiro de duas mães. E mesmo assim, Delia e Charlotte são humanas, então a animosidade, a inveja, o ciúme e a disputa por Tina cresce quando as três moram juntas após a morte do marido da sra. Ralston.

“Sempre que Delia tentava explorar o segredo das ações da prima, ela voltava da aventura humilhada e envergonhada pelos motivos básicos que se percebia atribuindo a Charlotte. Como era que ela, Delia Ralston, cuja felicidade tinha sido aberta e confessada ao mundo, se encontrava assim tantas vezes invejando o segredo da maternidade precária da pobre Charlotte?”

Não só Delia invejava, como gostaria que Charlotte não tivesse a mínima felicidade. Ressentia-se da prima por ter consumado a paixão por Spender; culpava a prima por ter feito algo que Delia, em nome da sociedade, havia recusado (casar com Spender, pois ele não era um bom partido). Charlotte não passava de um reflexo das próprias insatisfações de Delia. Enquanto isso, Charlotte se preocupava não com seus infortúnios, mas com a vida de Tina, que estava se divertindo até demais e isso poderia impedir que ela se casasse. Afinal, há passos e regras a serem seguidos em 1850.

“— Vamos dizer então que ela deve pagar pelas minhas imperfeições. Tudo que eu quero é que ela não pague um preço alto demais.”

Enquanto Delia passa seu tempo a remoer e dissecar Charlotte, esta considera o momento com Clem Spender o que ele foi: um momento de solidão entre duas almas vulneráveis que se acalentaram uma vez. Apenas isso.

“A Velha Nova York sempre evitava pensar em qualquer coisa que interferisse com o decoro perfeito de seus arranjos."

De novo, a menção de que a sociedade é mantida em pé por um véu muito frágil de aparências. Na realidade, nunca houve honra ou princípios, só a impressão deles e a difícil tarefa de manter as aparências.

Tina, apesar de tudo, é pedida em casamento. E quando deve receber os conselhos da mãe, a solteirona Charlotte quer sair de seu papel para falar com a filha. Mais uma vez, Delia quer impedir qualquer resquício de felicidade ou satisfação de sua prima, apesar de não reconhecer isso e insistir… nas aparências — de que é pelo bem de Tina, de que é o correto. A sociedade se esconde atrás de si mesma para conseguir o que quer. O egoísmo, o desejo e a inveja não são “aceitos”, já que são sentimentos “reprováveis”, e mesmo assim eles existem mais fortes do que nunca, disfarçados como zelo, preocupação etc. 

“ —Somente esta noite — Charlotte concluiu —, eu sou a mãe dela.

— Charlotte! Você não vai contar isso a ela… não agora?

[…]

— Se eu contasse, você odiaria tanto quanto todo o resto?

— Odiaria? Que palavra, entre nós duas!

— Entre nós duas? Mas é essa a palavra que está entre nós desde o começo, bem no começo! Desde o dia em que você descobriu que Clement Spender não tinha realmente ficado com o coração partido porque ele não era bom o suficiente para você; desde que você conseguiu se vingar e encontrou seu triunfo ao me manter à sua mercê e ao tomar a filha dele de mim!"

Esse diálogo é o mais importante e também o confronto final. Charlotte não se esconde atrás de falsas moralidades e princípios quebradiços; ela entende e compreende a animosidade entre as duas desde o começo, enquanto Delia está preocupada em usar a palavra “odiar”. E apesar disso, por Charlotte falar de forma tão desinibida sobre a realidade, Delia despe-se das convenções e consegue compreender e aceitar a realidade.

“Agora, pela primeira vez, sem vergonha, sem autocensura, sem angústia ou escrúpulos, Delia podia ceder àquela visão de amor correspondido da qual sua imaginação sempre se afastara. Ela tinha feito sua escolha na juventude e a aceitara na maturidade; e aqui nessa alegria nupcial, tão misteriosamente sua, estava a compensação por tudo o que ela tinha perdido e, ainda assim, ao qual nunca havia renunciado.

Delia entendia agora que Charlotte tinha adivinhado tudo, e que o conhecimento a abastecera de um ressentimento feroz. Charlotte dissera há muito tempo que Clement Spender nunca tinha realmente pertencido a ela; agora ela havia percebido que o mesmo se passava com a filha de Clement Spender. […] Delia interviera duas vezes na vida de Charlotte Lovell: era natural que Charlotte fosse sua inimiga."

O final é simbólico: Charlotte não consegue falar com Tina, e Delia vai falar com ela; como sinal de compaixão e compreensão, pede que Tina mande o último beijo na carruagem para a tia Charlotte. É simbólico porque representa não só o meio-termo no qual Delia se encontra, entre seus velhos ressentimentos e sua nova compreensão, mas também porque a sociedade sempre termina com a última palavra, a elite sempre consegue o que quer, mesmo quando sua falsidade e seu egoísmo são reconhecidos, quem não faz parte dela está fadado a ser um perdedor e ficar entre as sombras… 

A faísca 


A faísca (1860) é o conto mais diferente e enigmático desse conjunto. A trama gira em torno da forma a qual a sociedade entende os comportamentos atípicos de seus próprios membros; aqui, um protagonista misterioso tenta compreender os peculiares princípios de Haley Delane, um homem da sociedade casado com uma mulher que o trai e é filha de um pai vil.

Em dado momento, Haley menciona que um estranho homem o aconselhou durante a Guerra Civil, e esses conselhos permaneceram com ele, mas ele não lembra quem o homem é.

“‘É a crueldade, é a crueldade’, ele continuava a repetir, ‘eu odeio crueldade’.”

Ele se mantém fiel à esposa, e quando o pai dela fica doente, traz ele para ser cuidado em sua casa, mesmo com isso afastando a sua mulher. Haley não se importa com a opinião alheia, ele mesmo não compreende quando a sociedade olha para ele como se ele fosse um egoísta e a mulher estivesse correta. Leila, como a própria narrativa diz, é “afeiçoada à sociedade” e quer ter parte ativa nela. Claro que em uma situação dessas não se trata de estar correto ou não, mas como a sociedade categoriza seus membros e eles ficam presos nisso para sempre.


Leila acaba por deixar Haley, por não suportar uma vida que não seja baseada nos princípios ditados pela sociedade.

“Ela não acrescentaria mais nada, pois não queria refletir indelicadamente sobre o fato de que a própria família dele tinha concordado com ela ao considerar que aquele era um ato de generosidade desaconselhável."

A mudança mais perceptível sobre o avanço da década e como a sociedade foi influenciada por ela recai de novo sobre a mulher: ao invés de seguir à risca e tentar acreditar nas tradições como Delia ou achar brechas como Charlotte, Leila molda as próprias regras da sociedade para seu benefício próprio. As regras são as mesmas, mas, com a passagem do tempo, elas se tornam mais vulneráveis, sendo que Leila tem mais liberdade para ter amantes explícitos (contanto que nunca mencionados), e ir e voltar para o marido, desde que apresente “nobres intenções” para o exterior.

Apesar de tudo, Delane se manteve irredutível na escolha de ajudar o pai dela. “— Não vejo nenhuma solução para isso; nós dois temos direito à nossa própria opinião.”

E o pai de Leila, Bill Gracy, acabou sendo domado pelo espírito imbatível de Delane. Tornou-se manso, aprendeu a jogar paciência, caminhava com o genro; já estava no final de sua vida e foi tocado por uma generosidade sem precedentes.

“A sociedade se acostuma rápido com qualquer estado de coisas que são impostas a ela sem explicação. Eu tinha notado que Delane nunca explicava; sua principal qualidade estava nesse traço negativo.”

Então, quando Gracy morre, a sociedade já tinha se acostumado com a atitude de Haley. E, mesmo a sociedade tendo mudado de opinião e considerado que Leila deveria ter dividido o fardo com ele, o misterioso homem parece nem perceber que há opiniões a seu respeito. 

“E um dia ela voltou. A ausência a rejuvenescera, ela tinha algumas roupas novas deslumbrantes, conhecera um charmoso nobre italiano que estava vindo para Nova York no próximo navio a vapor…ela estava pronta para perdoar o marido, para ser tolerante, resignada e até mesmo afeiçoada. Delane, com sua simplicidade extraordinária, tomou tudo isso como garantia.”

Esse trecho também reafirma que um membro da sociedade pode ser egoísta que não será condenado por isso, contanto que não o seja “abertamente”. Parece confuso, mas, na prática, há uma linha bem visível: suas atitudes podem ser egoístas, porém, suas palavras devem ser disfarçadas por algum sentimento nobre.

E, tão rápido quanto a opinião sobre Haley mudou, a opinião desfavorável sobre Leila mudou na mesma velocidade.

“O funeral contou com a presença de toda a Nova York, e o véu de crepe de Leila era exatamente do comprimento correto, uma questão de grande importância naquela época.” De novo, a desnecessidade de ser uma pessoa de princípios, mas, sim, a necessidade de representar um princípio. A sociedade não é generosa, altruísta ou bondosa. É um sistema feito inteiramente de defeitos, no entanto, passa a imagem de ser feito apenas pelas qualidades mais sublimes do ser humano. Uma propaganda que perdurou através do tempo.

O final desse conto é o mais incrível de todos, e, ao mesmo tempo, explica por que Delane era daquele jeito. Por uma coincidência, ele descobre quem era o “sujeito misterioso” da Guerra Civil que o aconselhou ao encontrar seus versos em um livro: Walt Whitman, o lendário poeta e “pai” do verso livre. E, mantendo a coerência com sua personagem, Haley diz:

“Sim, é isso. O velho Walt… era assim que todos os caras o chamavam. Ele foi um grande sujeito: nunca me esquecerei dele. Eu preferia, no entanto — acrescentou, com um tom mais suave de censura —, que você não tivesse me contado que ele escreveu essa porcaria toda."

O dia de Ano-Novo 


O último conto tem alguns temas semelhantes à A casa da alegria, como o desejo por afeição, a falta de compreensão da sociedade pela necessidade de empatia e a simpatia humana. A protagonista é incompreendida por suas ações, que são vistas apenas exteriormente, sem nenhuma análise ou discrição; juntamente com isso, esse é o único conto que fala mais assiduamente sobre a fofoca entre a sociedade. O dia de Ano-Novo representa os anos 1870.

“— Ela era má…sempre foi.”

O conto já se inicia com um grupo presenciando um incêndio em um hotel que costumava ser recheado pela alta sociedade, mas que havia se tornado obsoleto em 1870. Enquanto os membros do prédio da frente se deliciavam em ver algo tão inesperado, presenciam a sra. Hazeldean e Henry Priest saindo de um encontro no hotel. A fofoca já circulava, a sra. Hazeldean não era considerada membro nativo da sociedade, conseguiu fazer parte através de seu marido. Considerada um parasita, não seguia as regras da sociedade por não compreendê-las, e, juntando esses dois fatores, cada ação sua era escrutinada pela sociedade, que acompanhava de perto cada movimento seu, como se já esperasse um deslize.

“[…] mas o que me impressionou ainda mais profundamente foi que nenhum deles parecia surpreso. Mesmo para minha percepção de menino, ficou claro que o que eles tinham acabado de ver era apenas a confirmação de algo para o qual estavam preparados fazia bastante tempo.”

A traição, que acontecia com todos os casais escritos por Wharton, era algo especialmente cruel quando vista em um contexto mundano. Ninguém realmente se importava com traição, já que todos eram infelizes, mas o membros esperavam que pelo menos a traição fosse discreta o suficiente para ser ignorada. E claro, perdia a sua força total com membros mais proeminentes e famosos; eles passavam ilesos.

O que causou o desenvolvimento da trama foi a crueldade: não da traição, mas de a traição ter sido comprovada a céu aberto. Não havia chance de redenção para a sra. Hazeldean.

Já a sra. Hazeldean tentava acreditar que ninguém a teria visto, com tanta coisa acontecendo em meio ao incêndio. Um hotel em chamas descontroladas tinha que tirar a atenção do mundo de um ato ínfimo e efêmero entre duas pessoas. Mas não, a sociedade não se interessava pelo mundo nem olhava além de um palmo de seu nariz, todos os olhos desse ser abstrato e onipresente se voltavam aos atos aparentemente irrelevantes de seus membros. O próprio hotel em chamas representa a falta de atenção da sociedade às coisas “importantes”; não importa o que estiver acontecendo à sua volta, a sociedade só terá olhos para ela mesma.

Todos se compadecem do marido da sra. Halzeldean, acreditando que ela é um ser vil sem nenhuma consideração por ele. 

“‘No entanto, Deus é que sabe’, ela acrescentou com um arrepio, ‘como todos eles têm teorias sobre mim!’”

Logo após o incidente do hotel, a sra. Hazeldean vai para a festa de uma socialite muito conhecida, Sabina Wesson, que propositadamente a ignora na frente de todos. O golpe mais deliberado de todas as conveniências da sociedade.

“Pela primeira vez na vida, ela tinha sido deliberadamente ‘cortada’; e o corte foi um ferimento mortal na Velha Nova York. Para Sabina Wesson ter lançado mão disso de forma consciente, deliberada — pois não havia dúvidas de que ela tinha avançado propositalmente em direção à vítima —, ela deve tê-lo feito com a intenção de matar.”

O golpe é considerado mortal, pois todas as armas da sociedade são apresentadas na forma de sutilezas. Hoje, ainda há o diálogo um pouco mais aberto, mas, naquela época, ignorar de forma proposital era o mais óbvio e direto possível. Isso assusta a sociedade tradicional que se impressiona com tudo; para ter escolhido essa ação, seria por ter certeza absoluta de sua posição e da posição da outra pessoa.

Lizzie Hazeldean, sobrenome de solteira Winter, era filha de um bispo que se envolveu com problemas financeiros, e a jovem foi tomada como protegeé de uma solteirona, a tia de seu futuro marido. No entanto, Lizzie não mostrava ter apreço nem habilidades para se tornar uma moça de boa estirpe. A sra. Hazeldean conseguiu sair ilesa devido à sua juventude e a sua beleza. Para os que nunca aceitaram-na como igual, esse momento também era o de pagar por sua beleza.


A realidade do sr. e da sra. Hazeldean não era tão superficial; ela era imensamente agradecida por ele a ter tirado da vida que levava antes, e ele a amava, pois ela era uma boa esposa. Mas Charlie Hazeldean tinha problemas de saúde, o que o impedia de trabalhar com a mesma força de espírito, e isso o magoava demais, pois queria dar o que havia de melhor para sua esposa. E, com isso, as contas ficavam apertadas. Quando Charlie morreu, seu amante, Priest, pediu para casar com ela. Já fazia alguns meses que a sra. Hazeldean estava de luto, então, isso era conveniente para ela, pois acertaria as coisas e as fofocas não teriam outra escolha senão morrer.

Lizzie, muito semelhante à protagonista de A casa da alegria, gostaria sim de seu lugar à mesa da sociedade, e nenhuma das duas conseguiu se forçar a casar sem ser por amor: Lily, por inocência; Lizzie, por caráter, teimosia e determinação. A sra. Hazeldean era a única que sabia como era seu relacionamento, e também reconhecia o quanto a sociedade era patética.

Em um discurso impetuoso, ela recusa o pedido de casamento, diz que nunca amou Priest e que tudo que fez, foi por Charlie. Pois dos amantes ela recebia presentes e dinheiro em troca de sedução; em Charlie ela encontrava amor, carinho e ternura.

“É disso que os homens normalmente se esquecem. Você achou que eu era uma amante apaixonada; e eu era apenas uma prostituta cara.”

Suas palavras, tão nuas quanto sua alma dolorida, assustam o solteirão da sociedade. O palavreado desnudo de sutilezas o ofende; ele tenta consertar a situação, mas Lizzie já está muito presa à sua escolha para voltar atrás.

“Oh, você não sabe o que uma garota tem que aturar; uma garota sozinha no mundo, que para ter roupas, comida e um teto sobre a cabeça depende dos caprichos de uma velha excêntrica! Foi porque ele sabia, porque ele entendeu, que se casou comigo… ele me tirou da miséria para a alegria suprema. Ele me pôs acima de todos eles…me pôs a seu lado. Eu não me importava com nada a não ser isso; não me importava com dinheiro ou liberdade; eu só me importava com ele.”

Se Lizzie realmente foi honesta e quis dizer tudo isso, há espaço para a interpretação; porém, quando ela disse tais palavras, elas realmente significavam algo. Não só confessavam a verdadeira força de caráter de Lizzie, como também lançavam seu futuro à sorte: uma investida indiferente contra a sociedade que a recusava.

O fim de Lizzie é coerente com sua vida. E, no final, ainda há algumas epifanias sobre a sociedade e as mulheres.

“A pequena sociedade autossuficiente daquela Nova York desaparecida não dava grande importância à riqueza, mas achava a pobreza tão desagradável que simplesmente não a levava em consideração.”


As obras de Edith Wharton devem ser apreciadas em sua totalidade, pois, assim como a autora, sempre foram à frente de seu tempo. Desde a obra que lançou Wharton à fama, Ethan Frome, até as menos conhecidas, como A velha Nova York, possuem uma escrita magnânima e uma análise sobre a sociedade a que poucos escritores conseguiram chegar perto, além de personagens intrinsecamente intrigantes; denúncias de uma sociedade corrupta e hipócrita, a desigualdade de classes e o desespero pelo dinheiro, as relações sociais complexas e, muitas vezes, cruéis e opressivas. Tudo que se mantém atual até hoje, afinal, quantos de nós lemos Edith Wharton e não vemos uma semelhança massiva com a sociedade em que hoje vivemos?

Observação: “sociedade”, palavra exaustivamente usada por quem vos escreve, é utilizada nesse contexto para se referir às famílias que faziam parte de um nicho exclusivo, membros que eram considerados os mais refinados e dotados de bom-gosto, elegância e dinheiro da Era Dourada.


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