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Embranquecimento e yellow face no cinema clássico

A Europa enriqueceu suas nações através do processo violento de colonização de territórios da América e da exploração de recursos e mão-de-obra escravizadas vindas da África, além da escravização de indígenas. Essa exploração teve início no final do século XV. No século XIX, os imperialismos estadunidense e europeu passaram a explorar ainda mais a Ásia, forçando a abertura dos portos japoneses e promovendo a missão civilizatória, como resume o historiador Eric Hobsbawm em sua obra A era do capital: “Explorar significava não apenas conhecer mas desenvolver, trazer o desconhecido e, por definição, os bárbaros e atrasados para a luz da civilização e do progresso; vestir a imoralidade da nudez selvagem com camisas e calças”. Isso significa que a exploração também tinha a ver com coletar informações sobre os povos e distorcê-los com a autorização dos métodos “científicos”, produzindo uma imagem deles que tinha muito mais a ver com os interesses das metrópoles do que com a realidade.

O poder de representar um povo segundo seus próprios interesses é extremamente útil para duas coisas muito fundamentais: para construir sua própria identidade - diretamente contrária ao “Outro”; e para conservar esse “Outro” em um formato que seja confortável aos interesses da nação dominante. Desse modo, a Europa e os Estados Unidos tomaram para sua própria identidade palavras como “civilização”, “progresso” e “intelectualidade”. Para o “Outro” - no caso deste texto, os asiáticos -, sobrou a barbárie, paganismo e estranheza, para dizer algumas coisas (essas “características” vão variar de região para região). Esse processo de invenção de uma Ásia estereotipada que só existe no imaginário imperialista é o que o crítico literário Edward Said chama de orientalismo. De acordo com ele, o orientalismo “Atua em intercâmbios com os poderes: políticos (imperialista, colonialista); intelectuais (linguística, anatomia comparada ou outra ciência moderna); culturais (como as ortodoxias e os cânones de gosto, textos, valores); morais (como as ideias sobre o que ‘nós’ fazemos e ‘eles’ não podem fazer ou compreender como ‘nós’ fazemos e compreendemos’)”.

Mas é possível pensar que nos dias atuais não é assim, as nações conquistaram suas independências e não mais sofrem a violência colonial. Isso infelizmente não é verdade. O colonialismo segue forte, toma a forma que for preciso para legitimar o seu controle. Com a “nobre” missão de defender os direitos humanos, a democracia e a liberdade de expressão, os Estados Unidos não perdem a oportunidade de invadir e financiar conflitos em territórios onde têm uma boa quantidade de petróleo. Sob as desculpas listadas, é muito fácil definir uma nação “inimiga” como a vilã. Igualmente simples é definir a si como um herói e, portanto, superior.

Essas situações são alguns exemplos práticos de como o colonialismo e o imperialismo operam na atualidade. O que importa a esta análise é a noção de que, enquanto uma superpotência burguesa, os Estados Unidos continuam a produzir e reproduzir narrativas as quais todas as alteridades - os não-estadunidenses - consideradas inimigas da nação são bestializadas e/ou ridicularizadas. E qual seria, afinal, o meio audiovisual mais eficiente para espalhar a ideologia dominante senão o cinema?

Hollywood é o centro mundial da indústria cinematográfica. Lá, vimos nascer nomes que até hoje influenciam tudo o que sabemos sobre a sétima arte. Tudo o que nós - ocidentais - conhecemos como cinema vem, basicamente, de lá. Isso, aliado ao fato de que há um boicote intencional às produções “estrangeiras”, faz com que muito pouco do cinema asiático, africano e até mesmo latino chegue até nós. Constantemente somos alimentados por produtos vindos de uma única indústria, uma única ideologia, mesmo que disfarçada de progressista.

Na história do cinema hollywoodiano, o que não faltou foi a construção e reprodução de estereótipos racistas. O blackface, por exemplo, consistia em usar atores brancos pintados com tinta preta para representar pessoas negras de maneira extremamente ofensiva e ridicularizada. Essa era uma prática muito comum nos anos 1920, aqueles mesmos conhecidos como os “anos loucos” pelo rápido desenvolvimento tecnológico e clima de otimismo que atingiam os estadunidenses e vendiam o “american way of life” (estilo de vida americano). Como se pode ver, nem todos os americanos cabiam nessa doce fantasia. 

Os asiáticos não escaparam de serem alvos dessas mesmas problemáticas. O yellow face é uma prática semelhante ao blackface: atores brancos estadunidenses com maquiagem pesada para imitar os olhos e traços dos japoneses e chineses. Junto a isso, os atores costumam atuar de maneira afetada e caricaturizada para serem o alívio cômico de um roteiro - isso quando não são os vilões sádicos e animalescos. Outro costume comum e igualmente nocivo é o de “embranquecimento” das personagens (tradução direta do inglês “whitewashing”) que consiste em usar atores brancos para interpretar personagens asiáticos. Outros povos não-ocidentais, como os árabes e os indianos, também são alvos constantes de xenofobia e orientalismo, mas esse é um caso que merece um texto separado. Hoje, nos concentraremos nas representações de apenas alguns povos asiáticos em quatro filmes clássicos.

Bonequinha de luxo (1961)

Quando se fala em Bonequinha de luxo, todos lembramos da atuação excelente de Audrey Hepburn, atriz belga que se tornou a queridinha dos EUA através de seus trabalhos, sendo este o seu filme mais famoso. A pergunta é: quem se lembra da personagem Sr. Yunioshi, vivida pelo ator Mickey Rooney

O Sr. Yunioshi é um dos vizinhos da personagem principal, Holly Golightly. A participação dele no filme - que é uma comédia romântica - é ser um alívio cômico, protagonizando momentos que servem para arrancar risadas do público e que não necessariamente influenciam o arco principal. Isso não seria nenhum problema se a personagem não fosse uma caricatura muito ofensiva de um japonês interpretado por um estadunidense. 

Quando se fala de yellow face, é muito difícil não lembrar desse caso, já que ele talvez seja o exemplo mais emblemático. Mickey Rooney está praticamente irreconhecível debaixo de tanta maquiagem e maneirismos: olhos puxados por fitas adesivas, dentes proeminentes e um sotaque muito acentuado. Essa última característica tem o nome de “yellow voice”, que consiste exatamente em debochar do modo de falar de alguém asiático, principalmente dos imigrantes que moram em países ocidentais. Nicholas D. Hartlep escreveu um artigo no qual lista os elementos mais comuns dessa prática: substituir L por R, omitir artigos e adicionar ou alongar o som de “ii” no final das palavras. Na língua portuguesa, normalmente o R é trocado por L, e temos o adicional de trocas na flexão de gênero das palavras.

Indiana Jones e os caçadores da arca perdida (1981)

A franquia de Indiana Jones provoca um misto de sentimentos. Por um lado, trata-se de uma série nostálgica de filmes de aventuras com uma trilha sonora cativante. Por outro, há muitas problemáticas orientalistas que são bastante desconfortáveis. 

O aventureiro Indiana Jones é o próprio retrato do homem branco explorador que viaja aos lugares mais exóticos para viver as mais incríveis aventuras na "Disneylândia" chamada Ásia. E é assim que o continente é descrito nos relatos dos viajantes dos séculos XVIII e XIX, um lugar tão diferente da “normalidade” que só pode ser uma fonte de entretenimento feita especialmente para os espectadores europeus. Qualquer semelhança com os filmes estadunidenses de ação e aventura não é mera coincidência.

No primeiro filme da franquia, o enredo gira em torno da corrida do protagonista para encontrar um artefato místico chamado Arca da Aliança que daria poderes a quem o possuísse. A pressa é porque tal objeto também é cobiçado pelos nazistas, que certamente seriam invencíveis caso chegassem à Arca antes. Um roteiro eletrizante, mas no meio dos conflitos, temos uma personagem asiática genérica e, claro, interpretada por um estadunidense muito maquiado.

Sangue de bárbaros (1956)

Várias polêmicas envolvem a produção e recepção de Sangue de bárbaros. Primeiramente, o filme foi vendido como um épico de mega produção e com um elenco de peso, produzido pela dupla Dick Powell e Howard Hughes, mas acabou sendo um fracasso de bilheteria e de crítica. Algumas páginas da internet chegam a descrevê-lo como um dos piores longas dos anos cinquenta. Como se não bastasse, parte dos envolvidos no filme acabaram desenvolvendo câncer em razão das filmagens terem acontecido em Utah, onde pouco tempo antes haviam sido feitos testes nucleares pelo governo. 

Para além das polêmicas, o filme conta a história de um conflito entre mongóis e tártaros após o líder mongol Temujin sequestrar a princesa do outro povo. Naturalmente, a relação entre o sequestrador e a sequestrada se torna uma história de amor em meio à guerra, um roteiro que parece ser um dos favoritos de Hollywood. Aliás, nem mesmo essa história açucarada, romantizada e americanizada impede que tais povos sejam chamados de “bárbaros” pelo título em português brasileiro.

A propósito, todo o elenco principal é composto por pessoas brancas, sendo que o protagonista é interpretado por um John Wayne fantasiado do que se imagina ser um mongol. Susan Hayward, atriz que completa o par romântico, cumpre o papel de embranquecer os povos tártaros com um penteado à la diva de capa de revista. 

Madame Butterfly (1915)

Se estava achando essa lista muito “contemporânea”, aqui vai um clássico de mais de cem anos de idade. Madame Butterfly é um filme mudo estadunidense inspirado em um livro e ópera homônimos. A história se passa no Japão do início do século XX, e tem um enredo trágico: um tenente da marinha dos EUA, Lieutenant Pinkerton, casa-se com uma gueixa de 15 anos, Cho-Cho-San e a abandona com um filho pouco depois, retornando ao seu país sob a promessa de voltar, coisa que nunca aconteceu. Cho-Cho-San entra em um agonizante sofrimento pela esperança da volta de seu marido.

O filme tem apenas uma hora de duração. No elenco, não há um japonês sequer, nem mesmo Cho-Cho-San, que é interpretada por Mary Pickford, uma atriz dona de icônicos cachos loiros e que tinha o apelido de “America’s sweetheart” (queridinha da América). 

Do cem anos atrás ao presente: o que mudou?

A lista de filmes, novelas e outras obras audiovisuais clássicas de cunho xenofóbico, racista e orientalista poderia continuar indefinidamente. Por mais terrível que sejam todas essas situações pontuadas, é ainda pior observar que - mesmo com acesso à informação e com todo o discurso de diversidade tão repetido em mídias ocidentais - as práticas dos estereótipos e embranquecimento continuam a acontecer no cinema e nas séries que consumimos.

Exemplos contemporâneos não faltam. A vigilante do amanhã: Ghost in the shell (2017) e o desastroso Death Note (2017) já causaram polêmicas por serem, além de versões americanizadas de obras japonesas, péssimos filmes. A grande muralha (2017) confundiu o público ao vender uma história que se passa na China do século XV, mas tem como herói um britânico vivido por Matt Damon. No primeiro filme de Doutor Estranho (2016), a Marvel achou de bom tom escalar Tilda Swinton para viver uma anciã feiticeira do Nepal. Príncipe da Pérsia: as areias do tempo (2010) nos proporcionou a visão de Jake Gyllenhall vivendo um personagem persa. 

Ainda hoje, árabes, japoneses, indianos, indígenas, africanos, latinos, chineses e muitos outros povos são representados de maneira escandalosamente caricata e embranquecida. Ao apreender o Outro em um estereótipo, o colonialismo e o imperialismo ganham força, pois esse recurso garante que padrões se repitam, uma vez que a esse Outro não é dada a oportunidade de uma manutenção de suas próprias formas de ser. Esse Outro jamais vai poder falar enquanto continuar a ter sua voz interpelada por quem se julga mais capaz de defini-lo. 

Referências




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