Quando procurei saber melhor quem foi Edith Wharton (1862-1937), antes de começar a ler A Época da Inocência, fui imediatamente lembrada de que “antigamente” as coisas eram muito diferentes. Ao contrário do que pensei, ela não havia nascido no seio da família de industriais americanos do século XIX. Edith Newbold Jones entrou para a poderosa família Wharton aos 23 anos de idade, em 1885, quando casou-se com Edward Robbins Wharton. Em 1913, eles se divorciaram, mas seus romances e contos continuaram a ser publicados com o seu nome de casada.
Todos estes temas são encontrados em A Época da Inocência: família, casamento, reputação, status social, dinheiro, divórcio e tradição. Tudo isso em torno de uma premissa até bastante simples: na segunda metade do século XIX, na cidade de Nova York, o jovem advogado Newland Archer é noivo de May Welland. Uma futura esposa perfeita, oriunda de uma família ainda mais perfeita para o círculo social da cidade, e ele não poderia estar mais feliz. Tudo muda quando a prima de May, Madame Ellen Olenska, volta da Europa para o seio da sua família nova-iorquina procurando abrigo e apoio para divorciar-se de seu marido, Olenski, um conde polonês.
Logo na introdução do cenário e personagens, Edith Wharton já nos esclarece: na alta sociedade da “Velha Nova York”, tudo é dito sem palavras. São as convenções sociais, os mínimos gestos e olhares que dizem tudo sem dizer nada. Nas conversas, nada é dito diretamente e qualquer informação ou opinião é sugerida, nunca verbalizada. Por isso, Madame Olenska incomoda tanto esse círculo ao qual quer pertencer: ela compartilha a mesma língua e nascimento, mas seus códigos sociais são outros.
Essa forma de comunicação vai permear todo o livro e, muitas vezes, Wharton apenas nos dá pistas do que está acontecendo e do que as personagens estão dizendo. Em alguns trechos são necessárias releituras, pois um gesto ou uma fala podem trazer muitos outros significados para além do que a autora deixou explícito. Como por exemplo, a tensão sexual entre Ellen e Newland que, apesar do texto demonstrar controle e até certa indiferença, transparece nas entrelinhas.
Depois de ter vivido tantos anos na Europa, o retorno de Ellen Olenska à velha Nova York não se dá com tranquilidade. Suas características excêntricas causam curiosidade e, ao mesmo tempo, repulsa pelas alas mais tradicionais da sociedade. Suas roupas, a localização que escolheu para morar, a decoração da sua sala de estar, a ousadia de sair da porta de casa sem toda a parafernália que uma dama de respeito nova-iorquina deve usar, as pessoas com quem se relaciona e, é claro, o atrevimento de querer divorciar-se. Seu espírito é livre. Ela é independente e isso incomoda.
“- Receio que as ideias de Ellen não sejam como as nossas. Ela mal completara dezoito anos quando Medora Manson a levou novamente para a Europa... você se lembra do alvoroço, quando ela apareceu de vestido preto no baile de sua apresentação à sociedade? Mais uma das esquisitices de Medora... dessa vez foi quase profética! Isso deve fazer pelo menos doze anos; e depois Ellen nunca mais veio para cá. Não admira que esteja completamente europeizada."
A sociedade aristocrática nova-iorquina retratada por Edith Wharton vê seu fim e decadência justamente nesse período que hoje os historiadores chamam de “Gilded Age”. Os anos finais do século XIX são marcados pelo fim da Guerra Civil e transformações significativas nos Estados Unidos. Rápido crescimento econômico, transformações radicais na infraestrutura do país, surgimento de grandes “tycoons” das indústrias, chegada massiva de imigrantes, transformações tecnológicas e, por outro lado, uma crescente pobreza entre as classes mais baixas e corrupção. São anos de transição e, como toda transitoriedade, é cheia de contradições.
Estas mudanças vieram acompanhadas pelo surgimento de uma nova classe dominante. Industriais e especuladores de Wall Street viram nas transformações políticas e de infraestrutura uma oportunidade de enriquecimento. Como consequência, as classes mais ricas de outrora, formadas por colonos europeus que fizeram sua riqueza com o comércio internacional, viram seu poder cultural e político ameaçados. Agarrar-se às tradições aparece como uma forma de resistência às mudanças que vinham chegando com o fim do século.
A época da inocência, dir. Martin Scorsese (1993) |
May Welland e Ellen Olenska representam essa dualidade. May é a forma perfeita da tradição nova-iorquina pré-Guerra Civil, cuja riqueza da família veio dos descendentes dos primeiros colonos; enquanto Ellen representa a chegada da Modernidade e o fim da aristocracia. Madame Olenska é a personalização da transição do século XIX para o XX. Ela representa a mudança e, por mais resistência que tenha enfrentado do julgamento de sua família e amigos, o divórcio ainda lhe era uma possibilidade. Algo impensável e inadmissível para aquela sociedade da Velha Nova York. Anterior ao problema do divórcio em si, o divórcio como alternativa já é revolucionário. Por isso, depois de conhecer Ellen, Archer passa a lamentar as amarras que aprisionam May Welland, que não percebe o quanto não é livre.
“Archer retomara todas as suas velhas ideias prontas a respeito do casamento. Era mais fácil ater-se à tradição e tratar May como todos os seus amigos tratavam as esposas que tentar por em prática as teorias que acalentara quando solteiro. Era inútil tentar emancipar uma esposa que não tinha a mais remota ideia de que não era livre; como ele descobrira muito tempo atrás, o único uso que May faria da liberdade que julgava ter seria depositá-la no altar de sua adoração conjugal.”
Para fechar esse triângulo amoroso, enquanto May e Ellen são dois opostos, o jovem advogado Newland Archer é a representação daquele Estados Unidos da América dividido entre a tradição e a modernidade. É o país formando sua identidade nacional, analisando seu passado e perguntando-se para onde quer seguir adiante.
O título original em inglês de A Época da Inocência traz uma ambiguidade melancólica. “The Age of Innocence” pode ser tanto aquela época da história dos Estados Unidos que ficou conhecida como “Gilded Age”, cuja aristocracia acreditava que a realidade poderia ser bela e perfeita como os grandes jantares e bailes da alta sociedade, quanto a idade das personagens desse triângulo amoroso. Newland Archer, Ellen Olenska e May Welland são jovens, numa época de transição, e precisam lidar com suas aspirações e, ao mesmo tempo, o momento histórico em que vivem.
Por esse romance, publicado em 1921, Edith Wharton foi a primeira mulher a receber o prêmio Pulitzer de literatura. Ela mesma nasceu e cresceu no seio de uma dessas famílias ricas da aristocracia nova-iorquina, viveu muitos anos na Europa, sofreu resistência de sua mãe para ler e escrever romances, divorciou-se, viu e viveu todas as mudança sobre as quais ela escreve no livro. É um romance belíssimo, que vale a pena ser lido e explorado em suas várias camadas e possibilidades de leitura. Também é de uma autora um pouco ignorada pelas casas editorais brasileiras, cuja obra merece ser lembrada para novas edições e traduções.
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Arte em destaque: Mia Sodré
Pronto. Mais um pra minha lista de leitura. Texto maravilhoso!!!
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