Em poucas páginas, o conto é narrado em forma de diário por uma mulher que está sofrendo de “histeria”. Sob recomendação do seu marido, que também é médico, a narradora encontra-se em repouso no quarto de uma casa de campo onde ela e o marido estão passando o verão. A partir de suas anotações, compreendemos que o marido passa os dias em seu consultório, a cunhada cuida dos afazeres domésticos e, em breve passagem, é sugerido que uma empregada cuida de uma criança – talvez seu filho. À narradora, resta apenas o descanso. Apesar de sua vontade de sair e andar pelo jardim, conversar com outras pessoas e escrever, sua prisão – disfarçada de “recomendação médica” – a condena a ficar no quarto sozinha e a escrever escondido.
Isolada e entediada, o que começa com apenas observações sobre o desenho e padrões do papel de parede do quarto se torna uma fixação obsessiva. Manchas, cheiros, e uma sombra que se movimenta parecem indicar que uma mulher encontra-se presa do outro lado do papel de parede. Determinada, a narradora passa a descascar compulsoriamente o papel de parede, a fim de libertar a mulher do outro lado que se arrasta pelo chão.
Charlotte Perkins Gilman |
Para além das qualidades literárias do conto de Gilman, O papel de parede amarelo é também um manifesto feminista com elementos autobiográficos. Antes que o feminismo se tornasse um movimento tal qual o conhecemos hoje, Gilman encontrou na literatura um meio legítimo e potente de expressar como as mulheres vinham sendo silenciadas e subjugadas por uma sociedade médica machista e misógina.
A autora
Gilman havia se formado em Design em Rhode Island School of Design e, ao falar da estampa, cores e o padrão do papel de parede, ela escolheu um assunto que dominava. Além disso, tirou de sua própria experiência como mulher, esposa e mãe as referências para sua narradora. Nascida em 1860, no estado de Connecticut, casou-se aos 24 anos com o artista Charles Walter Stetson, com quem logo teve uma filha, em 1885. Numa época em que as mulheres eram diagnosticadas como “histéricas”, Gilman sofreu de depressão pós-parto e foi submetida a um “tratamento” que a isolava de contato social, a impelia a um descanso forçado e a impedia de trabalhar, escrever, ler ou ter qualquer estímulo intelectual. Esse “tratamento”, ela reconheceu, piorava seu estado de saúde; a autora só veio a melhorar quando decidiu viajar para outro estado, se afastar de seu marido e, contrariando a sociedade da época, pedir o divórcio.
O conto de Gilman denuncia uma violência física e mental que a mulher do século XIX sofria nas mãos de homens que, munidos do discurso médico-científico, diziam que o sofrimento psíquico sofrido pelas mulheres era “histeria” e, portanto, a recomendação era isolamento e silenciamento afins de descanso e recuperação. Sob o diagnóstico de “histeria”, a vontade, opinião e expressão da mulher era sufocada, quando não ignorada. O que Gilman aponta em seu conto é que é justamente esse é o tipo de conduta que agrava – ou é até mesmo a causa – das condições mentais e psíquicas dessas mulheres.
Gilman, eventualmente, separou-se de seu primeiro marido, viajou para outro estado, casou-se novamente e se curou da depressão pós-parto, mas sua militância pela dignidade das mulheres não parou em O papel de parede amarelo. Apesar de ter sido seu trabalho literário mais notável e conhecido, Gilman também escreveu e publicou o romance Terra das mulheres, que fala sobre uma sociedade formada unicamente por mulheres.
Feminismo e eugenia
Fora da ficção, Gilman publicou vários ensaios, livros e artigos em jornais e revistas sobre o feminismo, discursando acerca do papel da mulher na sociedade e defendendo a independência financeira das mulheres em relação aos seus maridos e famílias.
Artigo de Charlotte Perkins Gilman |
É importante registrar, no entanto, que apesar do seu ativismo feminista, Gilman advocava pelos direitos das mulheres brancas e se autodominava como nativista, ou seja, defensora dos direitos dos povos brancos estabelecidos da Nova Inglaterra em detrimento de imigrantes e negros. Gilman, portanto, foi uma branca nacionalista eugenista. No seu livro, A Suggestion on the Negro Problem (algo como Uma sugestão para o problema negro), publicado em 1908, Gilman defende a criação de campos de trabalho forçado para a população negra estadunidense a fim de resguardar a pureza racial. Seu pensamento eugenista encontra-se, inclusive, no romance Terra das mulheres, no qual aqueles “geneticamente inferiores” são condenados à esterilização e pena de morte.
Em 1935, aos 75 anos, Gilman foi acometida por câncer de mama, um diagnóstico que, na época, era considerado atestado de morte. Gilman suicidou-se, tomando uma overdose de clorofórmio.
Que mulher nunca foi acusada de “louca”? Que mulher nunca foi diminuída, descreditada ou desautorizada por outro homem que a acusou de transtornada, psicótica ou histérica? Em uma primeira leitura, O papel de parede amarelo parece ser sobre uma mulher que possui uma sensibilidade sobrenatural, cuja situação de saúde a faz ficar de repouso num quarto estranho e mal-assombrado. No entanto, mesmo escrito há mais de 100 anos, o conto ainda é um potente instrumento para denunciar a misoginia e o machismo da sociedade ocidental atual. Infelizmente, para as mulheres leitoras, o conto de terror pode causar profunda identificação.
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Que texto ótimo, Giovana! Eu tenho esse conto, mas ainda não li. Vai ser bom fazer isso agora com essas informações. Gostei de como você apontou a contradição biográfica da vida da autora. Gosto muito de entender como os indivíduos são frutos de seus contextos.
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