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O duplo, o social e o fantástico nas mortes de Quincas Berro Dágua

“Nos bares, nos botequins, no balcão das vendas e armazéns, onde quer que se bebesse cachaça, imperou a tristeza e a consumação era por conta da perda irremediável.”

Para duas pessoas distintas, duas mortes caem bem. Joaquim Soares da Cunha teve sua morte comprovada por um médico, e seus familiares, apegados à imagem de bom e respeitoso homem que fora o senhor Cunha, realizam um simples velório. Já Quincas Berro Dágua se despede da vida ao lado de seus amigos após uma noite de farra, falecendo em um acidente no mar. No entanto, estas duas mortes acometeram a mesma pessoa.

Encomendada para que fosse publicada na primeira edição da revista literária Senhor, em 1959, A morte e a morte de Quincas Berro Dágua tornou-se a novela mais conhecida de Jorge Amado. Traduzida para mais de 20 idiomas e comercializada em diversos países, a obra do escritor baiano utiliza-se de elementos como o duplo, a crítica social e o realismo mágico para narrar as mortes do personagem conhecido como o “rei dos vagabundos da Bahia”.

É através do duplo, portanto, que A morte e a morte de Quincas Berro Dágua é construído. Joaquim Soares da Cunha é um homem que traduz os valores dos ideários sociais: funcionário da Mesa de Rendas Estadual, responsável, obedecia às normas que seu status social exigia, mantendo relações com pessoas de boas posições; esposo comprometido de Otacília, mulher rígida e coercitiva, e pai bondoso de Vanda, que seguia os passos da mãe. Todo esse respeito às convencionais construções sociais fez com que Joaquim vivesse sua vida reprimindo seus desejos e vontades. Assim, depois de aposentado, no dia do anúncio do noivado de sua filha, ele abandona casa, família e amigos e vai viver a vida que sempre quis pelas ruas da cidade de Salvador.

Essa é, desse modo, a marca da primeira morte apresentada na novela, a morte social, ou seja, o rompimento de Joaquim com os costumes, para então dar passagem ao nascimento de sua nova vida, seu novo “eu”: Quincas, o “cachaceiro-mor de Salvador”, o “filósofo esfarrapado da Rampa do Mercado”, o “senador das gafieiras”, o “vagabundo por excelência”. Em estado de liberdade, Quincas vive como bem entende, e recebe os olhares de julgamento e repreensão daqueles que não conseguem compreender como uma pessoa saudável e em boas posses pode abandonar sua vida para viver desabrigado nas ruas, em companhia de vagabundos, bêbados, moradores de rua e prostitutas.

“Era o cadáver de Quincas Berro Dágua, cachaceiro, debochado e jogador, sem família, sem lar, sem flores e sem rezas. Não era Joaquim Soares da Cunha, correto funcionário da mesa de rendas estadual, aposentado após vinte e cinco anos de bons e leais serviços, esposo modelar, a quem todos tiravam o chapéu e apertavam a mão.”

O batismo final de seu renascimento se dá quando, no boteco de Lopez, bebe um gole de água enganando-se por cachaça e grita “Ááááguuuuuuua!”, assustando a todos os presentes, que depois caem na gargalhada e passam a chamá-lo Quincas Berro Dágua. Ao longo do tempo, foi conquistando amizades e uma nova família em seu novo meio, para o desprezo de seus parentes. Seu novo grupo, formado por pessoas que não possuem condições econômicas ou sociais aceitáveis, cumpre mais uma vez o papel que Jorge Amado se dispõe a delatar em toda sua produção literária: o resgate dos marginalizados e excluídos da sociedade como agentes ativos e de consciência positiva da narrativa. Quincas carrega consigo a metáfora daqueles que, por escolha ou necessidade, deixam de lado as regras da sociedade e, ao misturar-se com a “escória” da camada popular, ao ser visto como um “vagabundo”, vive uma vida à mostra, ao contrário da hipocrisia que os “cidadãos de bem” fingem em seu cotidiano, sempre encoberto de escândalos velados. Carrega, portanto, o reflexo da vida de muitos baianos e brasileiros que vivem em estado de subvida: sem moradia adequada (ou alguma), sem trabalho, sem dinheiro, tornando-se alvo de estigmatizações sociais.

Jorge Amado
Uma vez nas ruas, Quincas percebe em seus novos conhecidos o sentimento de pertencimento, amizade e lealdade, jamais vistos em Otacília ou Vanda. E são justamente estes que mais lamentam sua morte, quando a notícia se espalha. Seus quatro amigos mais próximos, Negro Pastinha, Curió, Cabo Martim e Pé de Vento, vão até o local onde o corpo se encontra, para a repulsa de Vanda e seu marido. Na verdade, de tanto afeto pelo amigo (ou pelo efeito da cachaça), estes se recusam a crer que Quincas estivesse morto, e, em uma tentativa de trazer o estimado de volta, arrancam-lhe as roupas de valor que sua família o havia vestido para o enterro – também em uma tentativa de resgatar a imagem do velho Joaquim.

“A morte de Quincas aumentava, onde ia chegando, a consumação de cachaça.”

Desse modo, seu corpo é carregado pelo quarteto para um último passeio pelo Pelourinho, pela areia da praia, para os derradeiros goles de cachaça, e durante todo o percurso, Quincas nada proferia, apenas tinha um sorriso no rosto. Quitéria do Olho Arregalado, meretriz amante do falecido, se junta ao grupo, feliz em poder desmentir a falácia da morte de seu amado, agora que o vira farreando como sempre o fizera. É nesse clima de felicidade que todos resolvem ir ao mar, quando um temporal os surpreende, e, em meio à agitação, veem Quincas atirando-se nas águas: “No meio do ruído, do mar em fúria, do saveiro em perigo, à luz dos raios, viram Quincas atirar-se e ouviram sua frase derradeira. [...] ‘Me enterro como entender/ Na hora que resolver. / Podem guardar seu caixão/ Para melhor ocasião./ Não vou deixar me prender/ Em cova rasa no chão”

Com tal metáfora de libertação, o protagonista realiza aquilo que Jorge Amado descreve ao longo do texto que era de sua vontade: morrer no mar.

“Não proclamara, peremptório, e tantas vezes, Quincas Berro Dágua, com voz e jeito capazes de convencer ao mais descrente, que jamais morreria em terra, que só um túmulo era digno de sua picardia: o mar banhado de lua, as águas sem fim? [...] Então Quincas Berro Dágua fazia seu solene juramento: reservara ao mar a honra de sua hora derradeira, de seu momento final. Não haviam de prendê-lo em sete palmos de terra, ah! isso não! Exigiria, quando a hora chegasse, a liberdade do mar, as viagens que não fizera em vida, as travessias mais ousadas, os feitos sem exemplo.”

Outro elemento de destaque no desenvolvimento da obra é o realismo mágico, como já citado anteriormente. Mesmo quando morto, Quincas bebe e anda. Essas ações se enquadram dentro do fantástico, pois rompem com a ordem do sobrenatural. Na América Latina, o realismo mágico surge, principalmente, como forma de diferenciação estilística da literatura fantástica europeia e com a missão de transgredir. 

E é justamente através da ação do fantástico que paira a dúvida do leitor: teria Quincas realmente morrido, quando a família o julgou falecido, ou estaria apenas encenando uma despedida para seus entes, para depois, de fato, se lançar ao mar, da forma que gostaria? Ou será que já estava realmente morto, e sua derradeira aventura na cidade de Salvador não passou de uma simbologia de libertação final? Há quem prefira abraçar o “realismo” e encarar a cena apenas como um corpo que se perdeu no oceano. Outros, sob a perspectiva “mágica”, imaginam tudo enquanto zombaria final. Fato é que não podemos ter certeza, e Jorge Amado avisa de antemão: “até hoje permanece certa confusão em torno da morte de Quincas Berro Dágua”


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Ana Júlia Neves
Pernambucana nascida em 2003, amante dos clássicos da literatura, de todas as vertentes do rock e do cinema como um todo – pura cultura pop. Estudante de História pela Federal da Paraíba, vivendo sua fase "Rory Gilmore em Yale". Obcecada por um artista diferente a cada semana.

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