
Apesar de não ser um movimento artístico propriamente dito, os elementos fantásticos integram a história da arte de maneira longitudinal, derivando principalmente das artes mitológicas e religiosas. Ao longo dos séculos, por todos os lugares, histórias e figuras de seres fantásticos – que hoje chamamos de monstros, espíritos, dragões, anjos, fadas, demônios, heróis, entre muitos outros – foram sendo reproduzidas, reinventadas e ressignificadas. O fantástico também pode se apresentar de maneira quase etérea, remetendo mais às suas ambientações e ao realismo mágico; ou de modo muito sofisticado, por meio de um completo novo mundo, como é a Terra-Média de J. R. R. Tolkien.
É importante, desde já, diferenciar a fantasia, que é um gênero, do fantástico, que é seu conteúdo. Conforme W. R. Irwin, elementos fantásticos aparecem em quaisquer gêneros literários – e, vale adicionar, quaisquer formas de arte –, mas não os transformam em fantasia. Ou seja, a fantasia deve conter o fantástico, porém nem tudo o que contém o fantástico é fantasia.
De modo geral, o ponto comum entre a diversidade do fantástico espalhado pelo espaço-tempo é a adição da imaginação à observação direta da realidade. O que abre tanto o leque do fantástico é, como observou George Landow, sua subjetividade: as concepções do provável e do improvável variam conforme o tempo histórico e os pontos de vista de cada um, levando as possibilidades do imaginário fantástico ao infinito.
Por sua vez, Brian Attebury diz que o fantástico vem de qualquer estrutura que apresente alguma violação do que o autor acredita ser a lei natural das coisas. Essa definição é interessante, mas uma ressalva é necessária: a lei que rege o mundo nem sempre é natural. Com isso, não se pretende travar um embate entre jusnaturalismo e juspositivismo; apenas observa-se que os fenômenos disruptivos da fantasia podem romper não apenas com as rígidas leis da física ou com o estado da arte das ciências biológicas, mas também com normas sociais, impostas sistematicamente e sujeitas a mudanças pela própria transformação das sociedades.
A obra The Female Fantastic: Gendering the Supernatural in the 1890s and 1920s (sem tradução para o português, mas cujo título traduz-se livremente como O Feminino Fantástico: analisando o gênero no sobrenatural dos anos 1980 e 1920), editada por Lizzie Harris McCormick, Jennifer Mitchell e Rebecca Soares, é cheia de exemplos de literatura fantástica que desafiaram normas sociais – especialmente as de identidade e comportamento de gênero. Cada capítulo é voltado para obras de diversas autoras como Agatha Christie, Edith Nesbit, Margery Lawrence e Daphne Du Maurier, mostrando como o fantástico pode se apresentar em objetos, locais, pessoas e criaturas; e pode florescer em substratos variados: contos de fadas, histórias de mistério, romances imperiais e até narrativas eróticas.
Contudo um significado tão amplo assim pode levar ao efeito contrário, e acabar esvaziando o sentido de fantástico. Se ele pode estar em qualquer lugar e de qualquer forma, como defini-lo de verdade? Gerald Eager explica o grande impasse para uma caracterização definitiva ao comparar a conhecida alegoria da caverna de A República, de Platão, com o Tratado da Pintura (Trattato della Pittura, 1632), de Leonardo da Vinci. Na alegoria do filósofo grego, as sombras vistas na parede da caverna são a realidade para as pessoas aprisionadas, mas não passam de projeções dos objetos reais, que estão fora da caverna, iluminadas pelo Sol. Para Platão, aquelas imagens representam a mais crua ignorância humana. Da Vinci, por sua vez, em seu Tratado, fala sobre como consegue olhar para as figuras disformes das paredes manchadas, ou feitas com materiais e texturas diferentes, e enxergar paisagens, cenas de batalhas e tudo o que sua imaginação desejar. Para o italiano, as manchas, que em si nada são, tornam-se o ápice do exercício imaginativo humano, pois inspiram o espírito.
Nesse sentido, há duas principais formas de pensar o fantástico: uma mais próxima de Platão, em que a irrealidade e a irracionalidade se destacam – e que parece acolher melhor a ideia do fantástico como escapismo; e uma mais próxima de da Vinci, que foca na inquietação expressionista. A propósito, há na literatura ao menos um bom exemplo de paredes que unem o irracional com o inquieto: o conto O Papel de Parede Amarelo (The Yellow Wallpaper), de Charlotte Perkins Gilman.
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O papel de parede amarelo |
Considerada um clássico feminista, a obra foi inspirada no primeiro casamento da autora e descreve os dias de uma mulher confinada na casa que o marido alugou para o verão, impossibilitada de ver seus amigos ou mesmo de sair para os jardins. Estando privada de sua autonomia devido à sua saúde frágil e à sua instabilidade emocional, graças ao alinhamento da ciência médica com o patriarcado do século XIX, a mulher se rende à loucura do enclausuramento ao ficar obcecada com o terrível papel de parede amarelo que envolve seu quarto.
"Eu queria melhorar depressa. Mas não devo pensar nisso. Este papel olha para mim como se soubesse a má influência que exerce! Há um ponto recorrente onde a estampa inclina-se como um pescoço quebrado, e dois olhos fixos e esbugalhados, de cabeça para baixo, encaram quem os contempla. [...] Há coisas neste papel que, além de mim, ninguém conhece nem vai conhecer. Por trás da estampa exterior as formas obscuras tornam-se mais claras a cada dia. É sempre a mesma forma, mas cada vez mais numerosa. E é como uma mulher se abaixando e se arrastando por trás da estampa. Não me agrada nem um pouco."
No conto de Charlotte, o fantástico não vem de elementos conhecidos, como feitiços e criaturas mágicas. Ele vem da forma como a protagonista dá vazão aos seus muitos sentimentos: incompreensão, resignação, rebeldia, tristeza, tédio, raiva, frustração... Trata-se de um fantástico que denuncia problemas do machismo e, ao mesmo tempo, brinca com a realidade ao mostrar, pela visão da protagonista narradora, um papel de parede senciente, ou que aprisiona seres sencientes. Mas, afinal, o fantástico está mais relacionado com a descrição da obsessão que a personagem tem pela parede ou com o estímulo imaginativo despertado no leitor pela obsessão descrita?
Talvez não seja necessário escolher uma das duas opções, e sim uni-las em um terceiro caminho. Para aprofundar essa reflexão, cabe observar O Jardim das Delícias Terrenas (The Garden of Earthly Delights), de Hieronymus Bosch. Pergunta-se, então: trata-se de uma pintura fantástica? Por quê?
Albert Barr, curador da exposição Arte fantástica, Dadaísmo, Surrealismo (Fantastic Art, Dada, Surrealism), que tomou o Museu de Arte Moderna de Nova York em 1937, enxerga o fantástico na pintura a partir dos seres híbridos ou inexistentes e das imagens duplas. Para Kenneth Clark, antigo diretor da Galeria Nacional (National Gallery) do Reino Unido, a obra é fantástica devido ao efeito emotivo provocado por suas formas, contrastes e luzes. O fantástico, para um, descreve aquilo que foi imaginado, comparando a representação com a realidade; para o outro, refere-se àquilo que instiga a imaginação, relacionando a representação com seus processos de interpretação. Para um, o artista é o criador; para o outro, artista e espectador são cocriadores.
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O Jardim das Delícias Terrenas, de Hieronymus Bosch (c. 1490-1500) |
De fato, a primeira concepção parece ser restrita demais, enquanto a outra é muito ampla. Eager nos ajuda a construir uma terceira ao observar que o fantástico não é um enigma que deve, necessariamente, ser desvendado – não é para entender, é para sentir! –, nem possui um único caminho de interpretação, seja pelo autor ou pelo espectador. Para ele, se a estrutura de uma obra é composta por elementos que podem possuir diversos sentidos, inclusive sentidos opostos entre si, ali está o fantástico.
O caminho de Eager, em um primeiro momento, parece ser ainda mais amplo do que o anterior – afinal, não há expressão artística que possua um único sentido. O linguista búlgaro Tzvetan Todorov, em Introdução à Literatura Fantástica, nos ajuda a entender a peculiaridade dessa diversidade de sentidos própria do fantástico. Para ele, os sentidos opostos são verdadeiros caminhos de interpretação, e se apresentam dessa forma: ou aquele elemento fantástico é uma ilusão, fruto da imaginação; ou é um acontecimento real, mas regido por normas que não se conhece. Disso, surge o que o autor chama de hesitação.
Doutora em Estudos Literários, Marisa Gama-Khalil explica as condições da hesitação conforme Todorov: primeiro, é preciso que a narrativa faça com que o leitor veja o cenário fictício como se fosse seu mundo real, hesitando entre a explicação natural e a sobrenatural. Uma personagem da obra pode viver essa mesma hesitação, espelhando aquilo que o leitor deve vivenciar – essa condição, porém, não é obrigatória. Por fim, Todorov anuncia que o leitor deve tomar alguma atitude, descartando as interpretações alegóricas e poéticas daquele elemento fantástico. Marisa discorda da última condição, pois entende que os campos alegórico e poético são essenciais para a compreensão da literatura. De fato, para uma interpretação expansiva, nada pode ser descartado aprioristicamente.
O fato é que a hesitação caracteriza o elemento fantástico. Aquele breve momento em que pairamos entre o maravilhoso e o estranho, reajustando nossas balizas de interpretação do mundo: isso é a hesitação, e isso é o fantástico. E esse processo pode se arrastar pelo tempo. Mesmo depois de vivenciar a experiência e de terminar o contato com determinada obra, a reflexão sobre realidade e imaginação pode seguir por horas, dias, meses – quem sabe até uma vida inteira. O longo eco da provocação não causa alienação: as sombras na parede, nesses casos, não são uma forma de fugir da realidade, mas sim uma outra maneira de entrar em contato com ela. Como observa Tolkien em Sobre Histórias de Fadas (On Fairy-Stories), o escape certamente é mais agradável do que a observação direta, mas não deixa de ser um modo de se aproximar do mundo real.
“É curiosa a ideia de que automóveis são mais 'vivos' do que, digamos, centauros ou dragões. Quão real, quão chocantemente viva é uma chaminé de fábrica comparada a um pé de olmo: pobre coisa obsoleta, sonho insubstancial de um escapista! De minha parte, não consigo me convencer de que o telhado da estação de Bletchley é mais ‘real’ do que as nuvens. E como artefato acho-o menos inspirador do que a lendária abóbada celeste. [...] Não posso excluir da in-cultura de meu coração o questionamento de que, se os engenheiros ferroviários tivessem sido criados com mais fantasia, não poderiam ter feito coisa melhor do que fazem normalmente, com todos os seus abundantes meios.”
Uma obra instigante para observar a tensão entre discrepância e verossimilhança que marca a fronteira do real e do fantástico é o Codex Seraphinianus. Publicado em 1981 por Luigi Serafini, o Codex é basicamente uma enciclopédia de um mundo diferente do nosso, descrito pelos leitores como imaginário ou alienígena. Contudo, a presença de elementos do mundo real – ou terráqueo – em sua composição é inegável.
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Cabiria (1914) |
Suas páginas ostentam letras e algarismos inventados por Serafini, dispostos de maneira familiar à escrita humana. O autor afirma ter se inspirado em escritas árabes, cuneiformes, e em algumas línguas mortas. Em um primeiro momento, o texto lembra até a escrita cursiva do alfabeto latino, mas, ao mesmo tempo, é radicalmente distinto – de fato, indecifrável. Muitas pessoas se dedicaram a estudar o texto e traduzi-lo para línguas conhecidas, e conseguiram algum sucesso ao identificar padrões, inclusive utilizando inteligência artificial nessa tarefa. Serafini diz que não há significado algum, e que foi tudo inventado por ele na intenção de emular a sensação que crianças sentem ao folhear livros que ainda não conseguem ler, sabendo que aquilo, de alguma forma, faz sentido para os adultos ao seu redor.
Não apenas o texto do livro é fascinante, suas ilustrações são pitorescas e deslumbrantes, dispostas junto à escrita da mesma forma como enciclopédias conhecidas e livros didáticos fazem. As imagens possuem cores vivas e apresentam seres e objetos que conjugam características reais com imaginadas. O arco-íris, por exemplo, é um dos fenômenos ópticos mais queridos da nossa realidade, e, no Codex, é representado não como um acontecimento natural, mas sim como algo produzido por uma máquina. Desafiando também todas as leis da física que regem a luz – provavelmente porque, naquele cenário, ele seja feito de algum material misterioso –, são retratados outros formatos possíveis para o arco-íris, como espirais e laços. Trata-se de um elemento do mundo natural representado de maneira incongruente, provocando hesitação e gerando o fantástico.
O pesquisador de literatura comparada Sami Sjöberg diz que o Codex, em sua linguagem, utiliza uma estratégia chamada “natura denaturans”, que significa que a natureza torna-se contrária a si mesma. Assim, os objetos familiares são modificados de maneira que não se tornam apenas desconhecidos, mas sim antinaturais. Observa-se, assim, que o fantástico surge não apenas a partir do teor emotivo ou da incorporação do mágico e inexistente ao real, mas vem também da própria subversão da natureza.
Tomar o natural e transformá-lo em antinatural, como faz Serafini ao apresentar cadeiras de madeira que crescem como árvores no solo e figuras que mesclam características de seres orgânicos e inorgânicos conhecidos por nós, é uma maneira poderosa de fazer o leitor (ou espectador, a depender de como cada um aborda o Codex) refletir sobre a ontologia de seu próprio mundo. Isto é, passada a hesitação que ocorre naquele breve momento em que procuramos uma explicação para o inexplicável, a partir de representações daquilo que não existe (ou não é), começamos a pensar naquilo que existe (ou que é) sob uma nova perspectiva, ou com novas nuances.
O fantástico não é uma fuga da realidade. Pelo contrário, é uma forma de entrar em contato com o próprio mundo intensamente, pois interpretar o fantástico implica refletir sobre seres, objetos, existências, relações, tempo, espaço, e tudo o que é ou não é ao nosso redor. É uma forma de colocar em xeque normas sociais que nunca havíamos pensado em confrontar antes, abrindo portas para o enfrentamento de desigualdades e violências. Por fim, é uma forma de olhar para si, revisitando memórias, desvelando sentimentos, encontrando limitações e conhecendo, pouco a pouco, as fronteiras da própria identidade.
Referências
- A História da Arte (E. H. Gombrich)
- A Literatura Fantástica: Gênero ou Modo? (Marisa Martins Gama-Khalil)
- And the World Became Strange: Realms of Literary Fantasy (George Landow)
- Codex Seraphinianus (Luigi Serafini)
- Fantastic art, dada, surrealism (Albert Barr)
- Introdução à Literatura Fantástica (Tzvetan Todorov)
- Landscape into Art (Kenneth Clark)
- Look inside the extremely rare Codex Seraphinianus, the weirdest encyclopedia ever (Andrea Girolami)
- Natura denaturans: Asemicism and Surreal Interconnectedness in the Codex Seraphinianus (Sami Sjöberg)
- O Papel de Parede Amarelo (Charlotte Perkins Gilman), em Contos Clássicos de Fantasma
- Sobre Histórias de Fadas (J. R. R. Tolkien)
- The Fantastic in Art (Gerald Eager)
- The Fantasy Tradition in American Literature from Irving to Le Guin (Brian Attebury)
- The Female Fantastic: Gendering the Supernatural in the 1890s and 1920s (Lizzie Harris McCormick, Jennifer Mitchell, Rebecca Soares)
- The game of the impossible: A rhetoric of fantasy (W. R. Irwin)
- To read images, not words: Computer aided analysis of the handwriting in the Codex Seraphinianus (Jeffrey Christopher Stanley)
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