As obras teatrais de William Shakespeare intrigam e encantam leitores e espectadores há muito tempo. Pelo menos desde o século XIX, foram diversos os intérpretes que observaram que o poeta era também um bom filósofo e que suas peças estavam permeadas por reflexões filosóficas. Seus personagens possuem uma alta capacidade analítica refletindo sobre sua realidade social e cultural.
Uma aproximação esquemática desses vínculos pode ser traçada aqui seguindo o estudo de Toddy Butler de que há três categorias de divisão da filosofia moderna que se veem refletidas na obra literária de Shakespeare. Em primeiro lugar, tem-se a filosofia moral que é representada pelo poeta por meio da presença do estoicismo, epicurismo e ceticismo. Em segundo lugar, a filosofia política, que aparece representada por uma inspiração maquiavélica. E, por fim, há ainda o que se chamaria de uma filosofia natural, que lida com questões do conhecimento e nossa capacidade de entender o mundo científico.
Poderíamos ver essa divisão tripartida em várias da peças do poeta, porém, aqui, por questões de praticidade optou-se por centrar em uma peça em específico, Hamlet, que foi por muitos de seus críticos considerada a sua peça mais filosófica.
Essa ideia é defendida, por exemplo, por Pedro Süssekind, que argumenta que não só a peça como um todo é reflexiva, mas que também seu personagem principal, Hamlet, é uma das criações mais complexas do poeta. Aliás, é justamente pela boca de Hamlet que o vocábulo “filosofia” aparece, quase sempre atrelado a um conhecimento incapaz de ser expresso. Na primeira vez em que surge o conceito, é na famosa citação: “há mais coisas no céu e na Terra, Horácio, do que as sonhadas por tua filosofia”. Já em conversa com colegas, no segundo ato da obra, Hamlet volta a empregar um tom irônico ao dizer que “alguma coisa de sobrenatural, que a filosofia não consegue explicar”.
Essas duas aparições do vocábulo já valeriam uma discussão por parte dos pensadores. Controversas, elas podem ser melhores compreendidas quando colocadas em contexto. Como explica Collin McGinn, o dramaturgo viveu no período final do século XVI e princípios do XVII, quando o método científico ainda lutava para se estabelecer. Isso significa que não havia sucedido ainda a revolução científica, nem surgido os grandes nomes que mudariam os rumos da astronomia, física, filosofia e biologia. É preciso dizer: Shakespeare é alguém que viveu “entre culturas”, em anos de transição entre tipos de poder e entre tipos de sociedade. Com isso em mente, seu tom irônico se torna mais compreensível quando se entende que ele viveu em uma época na qual a filosofia (e a razão) ainda não pareciam dar conta do mundo.
Apesar do tom descrente quanto aos poderes da reflexão sistemática, o dramaturgo inglês parece costurar sua obra com ideias filosóficas. Particularmente em Hamlet, sugere Pedro Süsseking, poder-se-ia ler as relações da seguinte forma: Horácio, amigo de Hamlet reflete o estoicismo do filósofo romano Sêneca; seu tio Cláudio é um exemplo do pensamento maquiavélico na política, enquanto o próprio Hamlet se aproximaria do ceticismo do filósofo francês Michel de Montaigne.
Como conta Toddy Butler, Shakespeare, assim como muitos de seus contemporâneos elizabetanos, estava familiarizado com as escolas antigas de pensamento. Para além de Platão e Aristóteles, era comum conhecer também os estoicos, sobretudo da escola romana, como Sêneca e Cícero, além do epicurismo inspirado na obra de Epicuro, e discussões a respeito de um helenismo mais tardio como em Plutarco e Diógenes Laercio.
Especificamente em Hamlet, a peça é construída assemelhando-se ao padrão clássico da tragédia de vingança de Sêneca, ao ponto que escreveu Robert Miola: “Shakespeare se esforça para transformar o vingador monomaníaco do drama senequiano num herói trágico que pode se desenvolver no curso da ação”. Assim, não só o amigo Horácio representa a vertente estóica, mas a própria criação do gênero teatral escolhido pelo poeta é um modo de assinalar a relação entre filosofia e dramaturgia.
O mesmo estudioso Miola ainda enfatiza que Hamlet, o personagem que dá nome à peça, representa uma herança estóica na medida em que ele “…oscila entre dois ideais senequianos e, assim, desafia a ambos. Ele aspira à apatheia das obras filosóficas e à ação apaixonada, o ideal das tragédias".
Aqui vale lembrar que em Sêneca a tal apatheia é uma ideia de ausência do páthos, isto é, da paixão, resultando em um estado de espírito em que a pessoa se encontra livre de perturbações emocionais. É a ela que o sábio aspira, pois a partir desse lugar o homem pode sofrer sem se deixar ser arrastado pelo sofrimento. Curiosamente, essa parece ser uma das descrições que Hamlet faz de seu amigo Horácio.
"Você é o homem mais equilibrado com quem já convivi em toda a minha vida. (...) Você sempre foi uno, / Sofrendo tudo e não sofrendo nada; / Um homem que agradece igual / Bofetadas e carícias da fortuna... Felizes esses / Nos quais paixão e razão vivem em tal harmonia, / Que não se transformam em flauta onde o dedo da sorte / Toca a nota que escolhe. / Me mostra o homem que não é escravo da paixão / E eu o conservarei no mais fundo do peito."
Michel de Montaigne |
Para alguns intérpretes da obra do dramaturgo como Elizabeth Robbins Hooker, o personagem Hamlet está mais próximo do ideal do cético de Montaigne. Muitos estudos apontam que é grande a probabilidade de que o poeta conhecesse o pensador, já que Montaigne era célebre no contexto da Inglaterra elisabetana, ao ponto de que a comentadora escreve: “mesmo que Shakespeare não fosse um observador muito curioso, ele deveria, meramente como um homem inteligente no mundo, estar familiarizado com um livro tão popular”.
Detidamente no caso da peça Hamlet, como escreveu Pedro Süsseking, nos três primeros atos da dramaturgia “…os pensamentos do filósofo francês ecoam nas posições críticas de Hamlet, em sua pergunta sem resposta por um sentido nas prática decadentes e inúteis dos homens, em que seu olhar voltado para a experiência individual diante de um mundo que se revela problemático”. Um exemplo dessa proximidade teórica entre Montaigne e Shakespeare pode ser obtida pela comparação dos trechos abaixo, nos quais vemos uma mesma ideia em forma filosófica e depois em forma poética:
Consideremos, pois, um momento o homem isolado, abandonado a si próprio, armado unicamente de graça e conhecimento de Deus [...]. Que me explique pelo raciocínio em que consiste a grande superioridade que pretende ter sobre as demais criaturas. [...] Será possível imaginar algo mais ridículo do que essa miserável criatura, que nem sequer é dona de si mesma, que está exposta a todos os desastres e se proclama senhora do universo? Se não lhe pode conhecer ao menos uma pequena parcela, como há de dirigir o todo? Quem lhe outorgou o privilégio que se arroga de ser o único capaz, nesse vasto edifício, de lhe apreciar a beleza?(Montaigne, Livro II, cap. XIII)
Que obra-prima é o homem! Como é nobre em sua razão! Que capacidade infinita! Como é preciso e bem-feito em forma e movimento! Um anjo na ação! Um deus no entendimento, paradigma dos animais, maravilha no mundo. Contudo, para mim, é apenas a quintessência do pó.(Shakespeare)
Agora, rumando para a última das três grandes vertentes da filosofia presentes na peça, aborda-se os vínculos controversos com Nicolau Maquiavel. Escreveu a respeito Toddy Butler que: “…há pouca evidência direta de que Shakespeare tenha lido Maquiavel especificamente. Em vez disso, devemos confiar em paralelos sugestivos entre as peças de Shakespeare e os argumento de Maquiavel”, mas que é preciso admitir que talvez tais similitudes tenham “…nascido da ampla circulação do período e da reconsideração da obra do florentino”.
Para Pedro Süssekind, é preciso traçar uma distinção entre, de um lado, o que era a obra filosófica de Maquiavel, seus textos; e do outro lado; a concepção do senso comum que foi criada a partir de suas obras e que acabou por receber o título de “maquiavélico”. Em Shakespeare, o que existira é justamente esse segundo caso de concepção mais ampla que simplifica a filosofia do florentino.
Em Hamlet, estariam presentes duas ideias de inspiração maquiavélica. A primeira delas é que a verdade do sujeito está escondida, e as motivações verdadeiras são cobertas por uma máscara teatral que o sujeitos usam em sociedade. Na peça isso é evidente no personagem Claudio, que apresenta tal bidimensionalidade. Aliás, também é nesse personagem que se encontra a outra faceta maquiavélica, a do jogo político que requer a capacidade de dissimulação, em que os desvios são interpretados de modo positivo em nome da conquista e mantimento do poder.
Também ainda se poderia destacar, de acordo com Pedro Süssekind, a capacidade de certos indivíduos de perceber as situações geradas pela Fortuna e utilizá-las para seu melhor proveito. Essa é uma ideia que aparece em diferentes ensaios do pensador florentino, e que marca uma das características de um governante apto para sua função. Aqui, mais que Claudio talvez seja Hamlet quem encarna essa característica.
Uma citação da peça que nos indica a consciência que Hamlet parece ter do seu próprio maquiavelismo pode ser lida abaixo:
Eu também sou razoavelmente virtuoso. Ainda assim, posso acusar a mim mesmo de tais coisas que talvez fosse melhor minha mãe não me ter dado à luz. Sou arrogante, vingativo, ambicioso, com mais crimes na consciência do que pensamentos para concebê-los, imaginação para desenvolvê-los, tempo para executá-los. Que fazem indivíduos como eu rastejando entre o céu e a terra? Somos todos rematados canalhas, todos! Não acredite em nenhum de nós.
Embora longe de esgotar o tema, os exemplos citados são suficientes para embasar a tese de que existe em Shakespeare um diálogo profundo com a filosofia que circulava em seu contexto elisabetano. Sua dramaturgia é, nesse sentido, mais do que poesia, transformando-se em uma poética do pensar por meio de seus personagens. Assim, parece que, ao final, um título mais apropriado ao poeta seria o de dramaturgo-filósofo, que reúne duas atividades em uma só arte poética.
Referências
- The Cambridge Guide to the Worlds of Shakespeare (Toddy Butler)
- The Relation of Shakespeare to Montaigne (Elizabeth Robbins Hooker)
- Shakespeare’s Philosophy: discovering the meaning behind the plays (Collin McGinn)
- Shakespeare and Classical Tragedy. The Influence of Seneca (Robert Miola)
- Os ensaios (Michel de Montaigne)
- Hamlet (Shakespeare)
- Hamlet e a filosofia (Pedro Sussekind)
Leia mais:
- Hamlet e a loucura medieval (Mia Sodré)
- Poesia e imortalidade nos sonetos de William Shakespeare (Rebeca Pereira)
- Ricardo III: a propaganda Tudor de Shakespeare? (Mia Sodré)
- A Mandrágora, de Maquiavel, e o futuro da elite paulistana (Maria Clara Martho)
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Texto interessantíssimo,parabéns!!
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