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Poesia e imortalidade nos sonetos de William Shakespeare

O Tempo não espera por ninguém. Nesta terra, tudo o que nasce passa pelas ações de suas mãos. Nascemos, alcançamos a glória, e então caímos, como faz o sol todos os dias. Ovídio, no discurso de Pitágoras, presente no Livro XV das Metamorfoses, descreveu bem esta realidade:

Também os nossos corpos mudam sempre e sem descanso. O que fomos ou o que somos, não o seremos amanhã. [...] Ó tempo insaciável, e tu, invejosa velhice, tudo destruís, e tudo o que foi afetado pelo passar dos anos, consumis, pouco a pouco, pela morte.

Também o eu-lírico presente nos sonetos shakesperianos compartilhava dessa visão. Na realidade, William Shakespeare foi muito influenciado por Ovídio, como bem aponta David Kaula em seu artigo “‘In War With Time’: Temporal Perspectives in Shakespeare's Sonnets”. Em muitos de seus sonetos, Shakespeare apresentará ao leitor imagens que demonstram a lenta corrosão do Tempo e o invariável fato de que, dia após dia, ele assedia toda vida presente na Terra. Em alguns sonetos, o Tempo é até mesmo retratado como um inimigo de dimensões míticas, e não como um mero processo natural. Como bem aponta Kaula, ele é uma espécie de poder cósmico que atinge todos os níveis da criação e os mantém aprisionados em seu constante fluxo, onde lentamente os destrói. 

Todas essas características do Tempo mostram aos leitores sua cruel implacabilidade, praticamente o tornando em um inimigo inabalável. Por causa disso, bem poderíamos pressupor que a postura do poeta frente ao Tempo seria negativa, melancólica. Contudo não é isso o que vemos.

Na realidade, a visão que sucede nos versos seguintes é sempre desafiadora. O final do Soneto 19, por exemplo, é um explícito desafio: “Ou antes, velho Tempo, sê perverso: / Pois jovem sempre há-de o manter o meu verso”. Quanto mais forte é seu inimigo, mais decidido o poeta está em combatê-lo. Entretanto como isso poderia ser feito? Como nós, tão limitados que somos, conseguiríamos combater este destino, invariável e compressor, do universo? 

Nos sonetos shakespearianos, vemos duas formas diferentes. A primeira seria através de uma descendência: pedindo a quem se ama para ter filhos, a curva do Tempo (nascimento-ápice-queda) é transformada em um ciclo. A segunda maneira seria romper a curva e formar uma linha reta e contínua até a eternidade — e isso seria feito salvaguardando a memória viva de quem se ama no verso imortal da Poesia.

Portanto, a segunda estratégia para lutar contra o Tempo seria mais eficiente que a primeira, pois não dependeria da ação de quem se ama para ser concretizada, mas da própria pena do poeta. Desta forma, para Shakespeare, a Poesia possui a função não somente de louvar o amigo, ou de apresentar as experiências da vida, mas também de ser um recanto onde a memória de quem se ama pode ser perpetuada — seja porque será lida pelas gerações futuras, seja pela própria imortalidade intrínseca aos versos. 

William Shakespeare

Alcançando a perpetuidade através da leitura

A perpetuidade é vista ao longo da literatura como uma saída ao inevitável destino de todo o ser humano, que é a morte. Junto a ela, o esquecimento também é uma terrível fatalidade: o que se tornarão nossos nomes depois que formos embora? Como seremos lembrados? E é então que entra o papel fundamental da literatura, em especial da Poesia. Quando bem feito, um poema tem a capacidade de transpor o tempo e prolongar a memória de algo ou alguém, que se propôs a louvar, por séculos a fio. O “como” ganha nova dimensão, e é estendido a outras vidas. As palavras, neste sentido, possuiriam a importante missão de carregar esta memória, e a leitura, a de renová-la. A perpetuidade estaria, então, diretamente ligada à interação leitor-poema, trazendo vida ao que já se foi, aproximando laços, encurtando distâncias. 

Foi esta a ideia trazida por Shakespeare em muitos de seus sonetos. Por exemplo, no Soneto 18, o poeta descreve a perpetuidade da sua poesia em comparação com a efemeridade do tempo. Logo no começo lemos que não há como comparar a pessoa amada a um dia de verão, pois o dia passa, as circunstâncias da vida nos assaltam e tão logo mudam nossa sorte:

Devo igualar-te a um dia de verão?
Mais afável e belo é o teu semblante:
O vento esfolha Maio inda botão,
Dura o termo estival um breve instante.

Um dia de verão é passageiro, apesar de belo. Mas não é isso que o poeta quer dizer sobre quem ama. 

Muitas vezes a luz do céu calcina,
Mas o áureo tom também perde a clareza:
De seu belo a beleza enfim declina,
Ao léu ou pelas leis da Natureza.
Só teu verão eterno não se acaba
Nem a posse de tua formosura;

“E por quê?”, pensamos. Como alguém pode trazer consigo uma beleza permanente, se no mundo onde ela vive todas as coisas começam e terminam? Então chegamos ao ponto culminante do soneto:

Só teu verão eterno não se acaba
Nem a posse de tua formosura;
De impor-te a sombra a Morte não se gaba
Pois que esta estrofe eterna ao Tempo dura.
   Enquanto houver viventes nesta lida,
   Há-de viver o meu verso e te dar vida.

Os sonetos de Shakespeare, portanto, buscam se prolongar no tempo através de uma interação entre o leitor e o poema. Isso faz com que haja uma perpetuidade da pessoa que se busca preservar — um prolongamento de suas qualidades louvadas, logo, de sua memória. Interessante notar que esta preservação é, em certo sentido, abstrata: pois quem seria o “Tu” ao qual este e tantos outros sonetos se referem? Segundo James Calderwood, a pessoa preservada pela pena do poeta não é feita de modo biográfico, mas poético. Sua personalidade desvanece no pronome “Tu”. E nada mais sabemos dela senão seus atributos descritos pelo poeta (e que bem poderiam ser aplicados a qualquer pessoa). 

Sendo assim, o “Tu” presente nos versos shakespearianos se transformou em uma cesta ou um molde, em que qualquer pessoa estimada o suficiente poderia caber. E essa inevitável identificação tornou esses sonetos longevos, alcançando exatamente seu objetivo. 

A imortalidade e a Poesia

Se, por um lado, para existir a perpetuidade se faz necessário uma interação entre o leitor e o poema, por outro, Shakespeare parece apontar para a imortalidade como característica da Poesia, e não uma consequência de outro fator externo (por exemplo, a leitura ao longo dos séculos). No Soneto 65, é possível perceber esta afirmação. Neste poema, Shakespeare aponta para o fato de que se nem mesmo as coisas maiores e grandiosas que estão na natureza podem ir contra a ação do Tempo, como pode lhe enfrentar a beleza de uma flor? A resposta vem logo nos versos seguintes:

Atroz meditação! Como esconder
Da arca do Tempo a joia preferida?
Que mão lhe pode os pés ágeis deter?
Quem não lhe sofre o espólio desta vida?
   Nada! a não ser que a graça se consinta
   De que viva este amor na negra tinta.

Ou seja: se por graça ou milagre o amor louvado viver dentro da Poesia, então a memória da pessoa amada se estenderia para sempre. A “negra tinta”, portanto, passaria a possuir em si mesma a imortalidade, independentemente de haver leitores para ela ou não. Semelhantemente, no Soneto 60, lemos que a esperança do poeta está ancorada na imortalidade da Poesia. Enquanto ela viver, também viveria a memória de quem se ama. A Poesia, então, não seria apenas uma forma literária, mas também um local onde são guardados tudo o que nos é estimado:

Mas meus versos esperam no papel,
Louvando-te, vencer a mão cruel [do Tempo].

No Soneto 55, Shakespeare contrapõe diretamente os bens materiais deste mundo com seus versos. Ele é enfático em dizer que os grandes monumentos de reis, tão opulentos e áureos, não durarão mais do que suas rimas. Isso nos leva a crer que versos seriam feitos de uma matéria diferente, uma matéria eterna, que não sofreria alterações com o passar dos anos:

Nem mármore, nem áureos monumentos
De reis hão de durar mais que esta rima,
E sempre hás de brilhar nestes acentos
Do que na pedra, pois o tempo a lima.

Portanto, a eternidade não seria apenas consequência de leituras consecutivas, mas também um atributo da própria Poesia (conseguido, talvez, pela graça mencionada no Soneto 65). Jorge Luis Borges disse em uma entrevista a Osvaldo Ferrari que é uma ambição do homem a ideia de viver fora do tempo. Por extensão, acredito que esse também é um desejo que sentimos por outras pessoas que amamos. Para Shakespeare, como bem vimos, o anseio viria do fato inelutável de que a vida é passageira e o tempo a tudo leva. Por esse motivo, procurou na Poesia uma forma de resolver isso de um modo definitivo e completo. Encontrou nela uma resposta suficiente — e por que não, bela? — para uma angústia que era e ainda é compartilhada por muitas pessoas. 

Os sonetos shakespearianos parecem buscar mais que a vida terrena para a outra pessoa; parecem buscar um lugar eterno onde ela possa ser genuína e eternamente feliz, em um verão sem fim. J. R. R. Tolkien diz que a Fantasia trabalha com os desejos presentes no coração do homem. Talvez Shakespeare tenha feito exatamente isso: revelado que, no coração de cada ser humano, foi plantado um inevitável desejo pela eternidade. 

Referências


Rebeca Pereira
É estudante de Letras e apaixonada por literatura fantástica e maravilhosa, fantasia, contos de fadas, folclore e mitologia.

Comentários

  1. Que texto bonito! Fiquei aqui pensando bem isso, que a boa literatura é imortal por si só e se torna ainda mais longeva quando a consumimos.

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