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O Idiota, de Dostoiévski, e as relações violentas


Escrito entre os anos de 1867 e 1869, O Idiota foi publicado pela primeira vez em formato de folhetim na revista O Mensageiro Russo. O livro segue a história do Príncipe Liév Nikoláievitch Míchkin, um homem genuinamente bom e inocente, de 26 anos, que sofre de epilepsia e passou anos de sua vida na Suíça para se tratar. A trama começa a se desenvolver muito rapidamente quando, já nas primeiras páginas, o Príncipe Liév encontra outras personagens importantes para o livro, como Parfen Semeónitch Rogójin e Nastássia Filíppovna, e não tarda a aparecer no caminho do príncipe a bela Aglaia Epathchina. O protagonista de O Idiota se envolve nas mais caóticas conversas, testemunha tentativas de suicídio e assassinatos, fazendo a narrativa ser também um fascinante documento histórico da Rússia do século XIX.

É possível ter diversas interpretações a respeito de seu personagem central, inclusive que este provavelmente é um dos livros mais autobiográficos do próprio Fiódor Dostoiévski, pois ele mesmo também sofria de epilepsia. Porém esse texto — apesar das diversas violências citadas acima — vai focar nas violências silenciosas, aquelas que são ditas diariamente e que também estão presentes nas relações amorosas, muito visíveis no quarteto Liév Míchkin, Rogójin, Nastássia e Aglaia. Como foi falado por Martin Scorsese, sobre seu filme baseado no livro de Edith Wharton, A Época da Inocência, de 1993, ser sua obra mais violenta mesmo sem uma gota de sangue, o mesmo acontece com O Idiota, que apesar de conter cenas de violência física, encontra combustível para verdadeiramente enlouquecer a qualquer um nas falas das personagens e suas batalhas contra si mesmas. 
"Também será útil ao leitor ter em mente que a palavra 'idiota', que dá título ao romance, abrange, no russo, pelo menos três significados. O primeiro indica uma pessoa ignorante, tola, propensa a cometer enganos. O segundo designa uma pessoa que sofre uma doença mental (idiotia) que limita, forçosamente, sua capacidade cognitiva. Por último, partindo do seu significado original no grego antigo, a palavra se refere a uma pessoa que vive à parte da sociedade, sem comungar com as regras e costumes correntes e dominantes. Neste último sentido, o termo adquiriu um matiz religioso, na esfera do cristianismo ortodoxo russo. Assim, a palavra incorporou considerável teor místico, que a aproximou da noção de iuródivi (loucos santos ou videntes), mencionados, mais de uma vez, nas páginas deste romance."
Por mais que o Príncipe Míchkin consiga despertar o carinho de todos que cruzam seu caminho, muitas vezes o chamam, literalmente, de idiota. Tendo em mente os três significados da palavra no vocabulário russo, e que sua "misteriosa doença" e seu "idiotismo" é muitas vezes citado no livro, é de se pensar que o Príncipe Míchkin não sofria apenas de ataques da epilepsia, mas que também possivelmente se encontrasse no espectro autista. Não apenas pelo seu jeito único de enxergar o mundo e se relacionar consigo mesmo e com as pessoas ao redor, mas pela sociedade da época não saber lidar e até mesmo não ter conhecimento do espectro autista, encaixando tudo no que eles chamavam, como dito acima, "idiotismo". Mesmo com sua imensa simplicidade e visão única do mundo, na maioria das vezes, Míchkin parece de fato mais inteligente do que os que estão ao seu redor, e ainda assim, o tratam como uma espécie de criança que precisa de cuidados constantes, uma teoria refutada pelo próprio Míchkin:

"E o Schneider sempre conversava e discutia muito comigo a respeito do meu 'sistema' nocivo com as crianças. Mas qual era o meu sistema? No fim, Schneider me expôs uma ideia sua, muito estranha, isso aconteceu já pouco antes da minha partida, ele me disse que estava plenamente convencido de que eu mesmo sou uma verdadeira criança, ou seja, uma criança completa, que só no rosto e na estatura eu pareço um adulto, mas que no desenvolvimento, no espírito, na personalidade e, talvez, até na inteligência, eu não sou adulto, e assim vou permanecer, mesmo que viva até os sessenta anos. Eu ri muito: claro, ele está errado, pois que criança eu poderia ser? [...] Talvez eu me sinta aborrecido e incomodado na companhia das pessoas. No primeiro caso, resolvi ser franco e cortês com todo mundo; ninguém exigiria mais nada de mim. Talvez também aqui me considerem uma criança… pois que seja! Por alguma razão, todos também me tomavam por um idiota, e de fato, na ocasião, eu andava tão doente que parecia um idiota; mas o que tenho de idiota, agora, se eu mesmo compreendo que me tomam por um idiota? Entro num lugar e penso: 'Veja, eles me consideram um idiota, mas eu sou inteligente e eles não se dão conta…'. Muitas vezes me vem esse pensamento."
Fiódor Dostoiévski
Mas uma coisa é certa: sua visão única de mundo, sua bondade excessiva e sua compaixão incessante fazem com que o Príncipe Míchkin se deixe levar aos poucos pelo mundo "real". E é quando se apaixona por Nastássia Filíppovna que fica claro ao leitor que não é apenas o príncipe que sofre de doenças mentais, e que por muito tempo ele de fato se comportou como o mais são desse triângulo amoroso, que inclui o próprio príncipe, Nastássia e Rogójin, e em dado momento, até mesmo a jovem Aglaia. 

"É como se eu tivesse visto os seus olhos em algum lugar… mas não é possível! Eu estou apenas… Eu nunca estive aqui antes. Talvez tenha sido num sonho…"

Desde a primeira vez que viu o retrato de Nastássia, o Príncipe Michkin ficou completamente fascinado e apaixonado por ela. Apenas ele era capaz de olhar verdadeiramente para aquela mulher estonteante e radiante e entender suas dores, tanto ao ponto de muitas vezes parecer ser possível que o Príncipe consiga absorver e sentir de fato o desespero que emana daquela mulher. Com o tempo, o sentimento do Príncipe Míchkin por Nastássia Filíppovna se transforma; de amor, ele passa a sentir pena da moça. Nisso, ele insiste, tentando a todo custo, quase a exaustão, fazê-la entender que não é a pior pessoa do mundo.

"A senhora é orgulhosa, Nastássia Filíppovna, mas talvez já seja infeliz a tal ponto que se considere, de fato, culpada. A senhora precisa de muitos cuidados, Nastássia Filíppovna. Eu vou cuidar da senhora. Mais cedo, eu vi o seu retrato e me pareceu reconhecer o seu rosto. Na hora, tive a impressão de que a senhora estava me chamando…Eu…eu vou respeitar a senhora a vida toda, Nastássia Filíppovna."

"Obrigado, Príncipe, até hoje, ninguém jamais me falou assim — disse Nastássia Filíppovna. — Sempre quiseram me comprar, mas nenhum homem decente jamais me pediu em casamento."

Nastássia é uma mulher culta, inteligente, independente e amorosa, mas que se considera impura, e vê em Aglaia tudo que poderia ter sido mas lhe foi roubado. Ao conhecer o Príncipe Míchkin, Nastássia pela primeira vez na vida se sente respeitada e adorada apenas pelo que é, e isso, de certa forma, faz com que ela entre em algum tipo de surto psicótico. Ela não se considera boa o suficiente para Míchkin e tem receio de manchar sua imagem e a dele também, pois o considera o homem mais gentil do mundo e vê a si mesma como a pior das mulheres:

"Pois, para mim, o príncipe foi o primeiro homem, em toda a minha vida, em quem eu acreditei, como uma pessoa sinceramente dedicada. Desde o primeiro olhar, ele acreditou em mim, e eu acredito nele."

Após isso, Nastássia entra em um relacionamento abusivo, física e mentalmente, com Rogójin, relação que não apenas a afeta profundamente para pior, como também a Rogójin e ao próprio Príncipe Míchkin. Pois por mais que não se considere boa o suficiente para o Príncipe, foram muitas as vezes em que a moça fugiu de Rogójin para ir de encontro ao príncipe — como se existisse uma necessidade implacável de ficar ao seu lado. E suas fugas não apenas a deixaram mais confusa, mas também fizeram com que o príncipe pouco a pouco passasse a sentir uma espécie de dor física ao pensar em Nastássia. Sua relação com ela se tornou pesada e seus esforços para fazer com que ela recuperasse a sanidade o esgotaram até quase a exaustão e fizeram com que seus ataques de epilepsia retornassem. Não apenas Nastássia e o príncipe sofriam nessa relação, mas também Rogójin, que ao ver sua noiva o humilhar de todas as formas possíveis e deixar claro que verdadeiramente desejava ficar com o príncipe, aos poucos se tornou deprimido, violento e insano. Aceitava Nastássia de volta todas as vezes, mas pouco a pouco parecia se tornar um vulcão próximo a entrar em erupção.

O idiota (1958)

"Você. Ela se apaixonou por você desde aquele dia do aniversário. Só que ela acha que é impossível casar com você, porque ela iria cobrir você de vergonha e destruir todo o seu destino. Ela diz: 'Todo mundo sabe que tipo de mulher eu sou'. Até hoje, é isso que ela afirma. Pois foi ela mesma que disse tudo isso bem na minha cara. Tem medo de cobrir você de vergonha e destruir o seu destino, mas comigo, tudo bem, ela pode casar, não tem importância…Está vendo como ela me tem em alta conta? Tome nota disso também!"

"Mas, então, como foi que ela fugiu de você para mim e, depois, fugiu de mim…"

"Fugiu de você para mim! Quanta coisa passa pela cabeça dela, de uma hora para outra! Agora mesmo, ela parece que vive febril o tempo todo. E grita para mim: 'Vou casar com você como se fosse me afogar. Ande logo com esse casamento!'. Ela mesma apressa a data, marca o casamento, mas, quando o dia começa a se aproximar, ela se assusta, ou então lhe vêm outras ideias, Deus sabe o que acontece, pois, afinal, você mesmo viu: ela chora, ri, se debate toda, febrilmente. E o que há de extraordinário no fato de ela fugir de você? Naquela hora, ela fugiu de você, porque ela mesma se deu conta de que ama você demais. Estava acima das suas forças ficar com você."

Em certa cena do livro, Rogójin diz ao príncipe que adora observar um de seus muitos quadros espalhados pela casa deste. A cena do quadro retrata a crucificação de Cristo de maneira brutal, e o Príncipe, ao observar o olhar perdido de Rogójin olhando aquela pintura, chega à conclusão de que o amigo não gosta de olhar para o quadro, mas sente uma necessidade quase de autoflagelo de olhar para ele, assim como seu relacionamento com Nastássia.

"[...] e não tivesse acontecido essa calamidade com você, se não tivesse ocorrido esse amor [...]porque em tudo você põe paixão, você conduz tudo até a paixão [...] Aquele homem devia estar sofrendo muito. Ele disse que 'adora olhar para aquele quadro'; não adora, mas aquilo queria dizer que ele sentia a necessidade."

Se Rogójin deseja se flagelar observando a pintura brutal e sempre aceitando a volta de Nastássia, o príncipe parece sentir a mesma necessidade para com a dama, mas, em seu caso, ele tem o desejo, quase o imperativo de curá-la de seus males, fazendo com que os três entrem em um ciclo vicioso de agonia e desespero.

"Não, aquilo era mais profundo do que a mera paixão. E por acaso o rosto dela inspirava apenas a mera paixão? E será mesmo que , agora, aquele rosto inspirava paixão ? Inspirava sofrimento, apoderava-se da alma inteira, aquele rosto… e uma recordação pungente, torturante, acudiu, de repente, ao coração do príncipe. Sim, torturante. Lembrou que, não fazia muito tempo, ele se atormentara ao notar em si mesmo, pela primeira vez, sinais de loucura."

No meio disso tudo, o Príncipe Míchkin se apaixona verdadeiramente por Aglaia, uma menina inteligente e também mimada, que mesmo também tendo sentimentos por ele, encontra sempre uma maneira de humilhá-lo, muito provavelmente por não saber como agir a respeito de sentimentos tão fortes por alguém que ela própria considera um "idiota". Em dado momento, Nastássia começa a enviar cartas à sua rival, confessando o amor do príncipe pela mocinha, pois desejava que Míchkin fosse feliz com a moça pura que ela sempre desejou ser. Porém em dado momento, decide que não quer perdê-lo, e mais uma vez o Príncipe Míchkin, com sua bondade excessiva, desiste de sua própria felicidade.

A história não termina bem; de fato, um assassinato faz com que a vida das personagens, principalmente a do Príncipe, seja mudada para sempre. Todo seu desenvolvimento nos últimos anos em sua doença cai por terra, e o príncipe é enviado novamente para um sanatório na Suíça. Lá, ele retorna à fase inicial de seu tratamento após ser levado verdadeiramente à insanidade pela sociedade e pelas violências silenciosas do dia a dia.

“Chega de tantas paixões, é hora servir à razão. E tudo isso, toda essa sua terra estrangeira, toda essa sua Europa, tudo isso não passa de fantasia, e todos nós, no exterior, somos só uma fantasia…Guarde as minhas palavras, o senhor mesmo vai ver!”


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Referências

Babi Moerbeck
Carioca nascida no outono de 1996, com a personalidade baseada no clipe de Wuthering Heights, da Kate Bush. Historiadora, escritora e pesquisadora com ênfase no período do Renascimento, caça às bruxas e iconografia do terror. Integrande perdida do grupo dos Românticos do século XIX e defensora de Percy Shelley. Louca dos gatos, rainha de maio e Barbie Mermaidia.

Comentários

  1. Não sabia que o enredo do livro era tão instigante. Não li ainda, mas foi bom saber mais sobre ele!

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