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Escritos da casa morta: o trabalho forçado pelo olhar de Dostoiévski


As obras de Fiódor Dostoiévski são conhecidas por mostrar a humanidade de forma brutal. Os arquétipos dostoievskianos presentes em seus livros são famosos, pois extrapolam as personagens e alcançam o status de análise da psique humana. Peculiar e certeiro ao mostrar a dualidade da alma, o desespero, a dor e a tragédia, o autor russo foi único e não só por seu conhecimento sobre a essência do indivíduo - também possuía uma visão perspicaz e crítica sobre o contexto político de seu país.

Crime e castigo, Os demônios e os Irmãos Karamazóv ganharam notoriedade porque Fiódor escreveu tais livros como histórias dramáticas e ao mesmo tempo tão críticas à sociedade. O escritor transitava com naturalidade entre a ficção e a não-ficção. Escritos da casa morta é uma de suas obras mais emblemáticas, embora muitas vezes passe despercebida. Ela não só mantém os traços característicos da narrativa e de análise do autor, como também quase se transforma em um diário dos quatro anos de trabalho forçado que Dostoiévski cumpriu.

Em Escritos da casa morta, o leitor vê um retrato fiel da vida dos que cumpriam suas penas, além dos medos, desejos e esperanças dos presos que, dia após dia, sobreviviam em Omsk, na Sibéria. Se ao chegar na prisão, Dostoiévski sentiu nojo e medo, sua convivência fez com que esses sentimentos logo se transformassem em empatia e fraternidade; ele viu o que havia por baixo do véu sujo da penitência. Viu a humanidade nos olhos dos presos, e a prisão constituiu motivo de reflexão sobre a liberdade e a injustiça do sistema judiciário. O livro tem ares de uma crônica realista, apesar de o autor ter evitado ao máximo qualquer menção que o denunciasse como protagonista de sua própria história.

"Pensando bem, gente é gente em qualquer lugar. Entre os bandidos galés, acabei diferenciando as pessoas nesses quatro anos. Acredita: há caracteres profundos, fortes, belos, e que alegria descobrir ouro por baixo de uma crosta grossa. (...) Eu me familiarizei com eles e por isso acho que os conheço bem. Quantas histórias de vagabundos, de bandidos, de toda a plebe em geral, de toda a vida dos desgraçados! Daria para tomos inteiros. Que gente admirável! Em linhas gerais, não perdi meu tempo."

Condenado à pena de morte por fuzilamento em 1849 devido ao seu envolvimento com o Círculo de Pietrachévski, sua pena foi comutada instantes antes da morte. Assim, Dostoiévski já estava na frente do pelotão de fuzilamento quando o tsar Nicolau I substituiu a pena de morte pela pena de trabalhos forçados. 

Dostoiévski (à esquerda) na prisão de Omsk, 1858
Cumprir uma pena tão desumana é um fardo terrível para qualquer um. Com o escritor não foi exceção, já que tinha saúde frágil. Além do desconforto dos grilhões e da vida miserável e frugal que levava, Fiódor não tinha nenhum ofício especial que fosse útil na prisão, portanto, seu trabalho era majoritariamente braçal e pesado. Enquanto realizava uma das tarefas, quase perdeu o pé por ter ficado com a perna mergulhada em um lago congelante. Com a junção desses fatores, as internações do autor no hospital militar eram recorrentes. O médico-chefe responsável permitia que Dostoiévski fizesse anotações e lesse livros; as anotações eram compostas por anedotas e histórias contadas por presos, suas gírias e expressões, a rotina na vida em Omsk e, claro, suas observações sobre um sistema de justiça precário, vulgar e pífio. Dessas anotações surgiu o caderno siberiano, usado como base para Escritos da casa morta, que tomou corpo enquanto Dostoiévski cumpria a pena de degredo em Semipalátinsk.

Dessa forma, o livro apresenta com uma fidelidade incomparável as personalidades únicas que estiveram na prisão junto com o autor, despidas de qualquer romantização. A escrita de Dostoiévski nos mostra a humanidade dos encarcerados, o preço da ilusão de liberdade quando se está preso e a corrupção e falência do sistema carcerário. Fiódor disseca a psicologia humana, e o produto do contexto criado por um sistema opressivo se traduz de forma genial nas páginas de seu livro. O resultado é uma obra-prima permeada de compaixão e humanidade. Como o próprio autor escreveu ao irmão:

"A vida é vida em toda parte, a vida está em nós, e não no que nos rodeia. Perto de mim haverá gente, e ser uma pessoa em meio às gentes e assim permanecer, sempre, em todo tipo de adversidade, sem desalento, sem me entregar - eis no que consiste a vida, eis a tarefa de viver."



Arte em destaque: Mia Sodré 

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