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Antígona e Jocasta: as mulheres em Sófocles


A Grécia Antiga, conhecida como berço da civilização ocidental, é terra fértil para a literatura clássica e personagens que reverberam através da história. O caso de Édipo, protagonista de Édipo Rei (escrito por volta de 427 a.C.), de Sófocles, é um grande exemplo de eternização de personagens complexas. Usado como alegoria para explicações psicanalíticas de Sigmund Freud, a tragédia de Édipo foi replicada, analisada e, até mesmo, temida por diversas áreas, seja para estudos filosóficos sobre destino, seja pela trama trágica que serviu de base para outras ficções.

Édipo torna-se rei após vencer a esfinge - monstro alado com cabeça de mulher e corpo de leão -, que propunha um enigma. O herói grego adivinha a resposta, vence a esfinge e salva a cidade de Tebas; em troca, conquista o trono e a mão da rainha viúva, Jocasta. A peça teatral do rei desgraçado começa quando Édipo é avisado que a cidade de Tebas está sendo castigada pois o assassino de seu rei antecessor, Laio, permanece impune. Decidido a fazer justiça ao rei Laio, Édipo tenta descobrir quem é o assassino, convidando, assim, Tirésias, um adivinho cego, para ajudá-lo. Ouvindo a profecia de Tirésias, Édipo e Creonte (irmão de sua esposa e seu conselheiro) iniciam uma troca de acusações, sendo estas intermediadas por Jocasta, que para dissuadir Édipo das falas de Tirésias, conta acerca do filho que ela e o antigo rei, Laio, entregaram à morte porque foi augurado que a criança cresceria e mataria o próprio pai. 

“Vivia nosso filho seu terceiro dia / quando o rei Laio lhe amarrou os tornozelos / e o pôs em mãos de estranhos, que o lançaram / em precipícios da montanha inacessível.”

Jocasta afirma que apesar da profecia do oráculo, Laio foi morto em uma encruzilhada por um grupo de assaltantes de identidade desconhecida. Édipo escuta a respeito da morte de Laio e começa a desconfiar que pode ser ele próprio o assassino. Confidencia a Jocasta que quando jovem recebeu também uma mensagem do oráculo de Delfos: um dia mataria seu pai e se uniria a sua mãe. Para fugir de seu destino desgraçado, Édipo se exila de Corinto, se envolvendo em uma confusão na estrada que teve como consequência a morte de um homem maduro e seus guardas.

Enquanto mandam buscar a única testemunha do crime para comprovar como foi a morte do rei Laio, um mensageiro avisa que Pôlibo, pai de Édipo, morreu em Corinto. O jovem rei se acalma pensando ter se livrado da maldição, entretanto o mensageiro revela a Édipo que Pôlibo é seu pai adotivo, tendo sido ele próprio (o mensageiro) responsável por entregar o bebê ao rei. Conta que um pastor o encontrou pendurado pelos tornozelos e teve pena, salvando-o da morte. Jocasta se desespera ao ouvir a história de origem de Édipo e implora para que ele pare. O pastor é chamado ao palácio e conta que a criança foi entregue pela própria mãe, Jocasta, que temia o destino traçado para seu filho.
“Quando a infeliz transpôs a porta do seu quarto / lançou-se como louca ao leito nupcial; / com as duas mãos ela arrancava seus cabelos. / Depois fechou as portas violentamente, / chamando aos gritos Laio há tanto tempo morto, / gritando pelo filho que trouxera ao mundo / para matar o pai e que a destinaria a ser a mãe de filhos de seu próprio filho, / se merecessem esse nome.”
Busto de Sófocles

Jocasta suicida-se e Édipo arranca os seus próprios olhos, amaldiçoando-se por ter matado seu pai e se deitado com sua mãe. Creonte é chamado por Édipo para cuidar de suas filhas, ainda crianças, e decide por exilar-se de Tebas, abandonando o trono e vagando cego para longe do palácio.

A análise da obra costuma focar na tragédia de Édipo, um homem desgraçado que não conseguiu fugir de seu destino trágico, traçado antes mesmo de seu nascimento. Entretanto é interessante pensar no sofrimento a que Jocasta é submetida nessa peça: atormentada durante a gravidez por uma profecia, abandona seu primeiro filho à morte, enviúva-se ainda jovem e se casa novamente, tendo enfim a chance de reconstruir sua vida. Após anos de casamento e quatro filhos, Jocasta descobre que seu maior medo se concretizou: casou-se com o assassino de seu marido que também é seu próprio filho. A situação incestuosa causa tamanha repulsa em Jocasta que ela enlouquece e suicida-se. Seu destino trágico a persegue tanto quanto o de Édipo, sendo ela a mulher que tentou de tudo para fugir da maldição de sua família. Gera os filhos de seu próprio filho, torna-se esposa do filho de seu esposo. A culpa pelo abandono da criança recém-nascida não é em nenhum momento aplacada, a dor apenas multiplica-se ao descobrir que tudo foi em vão.

Além de toda a tragédia que ronda Jocasta, os costumes da Grécia Antiga também a empurraram a esse destino: na Grécia Clássica as mulheres eram eternas tuteladas. Jocasta sai da tutela de seu pai ou irmão (a obra não chega a se aprofundar na vida de Jocasta anterior ao casamento), casa-se e torna-se legalmente responsabilidade de seu marido; ao enviuvar, tornou a ser tutelada pelo irmão e teve sua mão entregue como prêmio a um estrangeiro. Jocasta, como uma mulher pertencente às classes mais altas, tinha somente a opção de casar-se e submeter-se ao marido; ou tornar-se uma hetaira - segundo teóricos hetairas eram prostitutas caras, que vivam livremente por estarem à margem da sociedade; outros, assinalam que eram mulheres inteligentes, cultas, que conversavam com os homens de igual para igual, podendo viver como quisessem, oferecendo companhia para os homens em troca de dinheiro, cosméticos e vinho, nem sempre sendo pagas para fazer sexo.

As mulheres na Grécia Antiga não podiam herdar bens nem ter nenhum tipo de propriedade em seus nomes. Mulheres das classes mais altas - como era o caso de Jocasta - eram educadas e preparadas para o casamento, estudando apenas para se tornarem boas companhias aos seus maridos; após o casamento só saíam de casa acompanhadas. A despeito da democracia desenvolvida da pólis grega, as mulheres não eram consideradas cidadãs e não tinham voz ativa nem representantes políticas.

A castidade era obrigatória para as mulheres, que deveriam se manter monogâmicas e fiéis aos seus maridos; por outro lado, a prostituição era legal e até mesmo aconselhada aos homens casados. Diziam que a honra do homem ateniense dependia da honra de sua mulher, por isso eles mantinham suas esposas confinadas nos gineceus e impediam que elas mantivessem contato com homens que não fossem da família.

As mulheres mais pobres tinham maior liberdade de circular na sociedade porque seus pais e maridos não podiam se dar ao luxo de impedir que elas trabalhassem, por isso elas exerciam atividades como tecelagem, lavagem de roupas e trabalho nos campos. Apesar disso, elas só podiam fazer pequenas trocas de mercadorias com outras mulheres, nunca realizando transações comerciais com homens.

Édipo e Antígona, por Charles François Jalabert

Jocasta e Édipo deixam quatro filhos: Eteócles, Polinices, Ismênia e Antígona. E o livro Antígona (publicado por volta de 442 a.C. - também escrito por Sófocles) se desenvolve justamente na relação de vida, morte e justiça entre esses irmãos.

Creonte torna-se rei de Tebas e encabeça uma guerra contra Argos. Cada um dos irmãos de Antígona escolhe um lado, mas morrem na mesma ocasião: Eteócles morre defendendo Creonte, e Polinices, defendendo Argos. Ao saber que somente um dos irmãos seria sepultado como herói e que o outro seria deixado de corpo exposto sem direito aos ritos gregos pós-morte, Antígona se revolta. Enfrenta o rei e enterra seu irmão; argumenta com Creonte que o direito dos deuses (o direito natural) deve estar sempre acima da decisão dos homens, por isso não podia deixar o corpo de seu irmão sem um sepultamento. Creonte condena Antígona a ser enterrada viva em uma gruta de pedra em terra deserta, para que converse apenas com seus “queridos mortos”, recebendo apenas vinho e trigo - alimento dos ritos fúnebres. Seu filho, Hémon, que também era noivo de Antígona, tenta dissuadir o pai da condenação, mas Creonte permanece em seu veredito. Diz: “Uma mulher assim só encontrará companheiro ideal nas profundezas da terra”. O mensageiro Tirésias tenta aconselhá-lo, mas o rei se mantém irredutível. Indo para seu exílio, Antígona diz que será “aquela que morreu pouco antes de Tebas”, augurando o destino da cidade que cairá em breve.

Hémon entrega seu manto, abandonando o exército de seu pai. Creonte nomeia Megareu, seu filho mais velho, para ocupar o lugar de Hémon. A cidade se descontenta com a punição à Antígona, preocupando o rei. Além disso, Megareu é assassinado e Creonte sai em busca de Hémon, pois Argos invade Tebas. O rei encontra Hémon com Antígona, que se suicidou dentro da caverna na qual foi enclausurada, enforcada pelo seu véu. Hémon chora pela noiva e tenta assassinar seu pai, desistindo no último momento e matando a si mesmo com sua espada. Sem ninguém para defendê-la, Tebas cai pelo inimigo.

No começo da peça, Antígona diz sobre sua situação: “primeiro, que nascemos mulheres, não podemos competir com os homens; segundo, que somos todos dominados pelos que detêm a força e temos que obedecer a eles”. Diante disso, é interessante notar como uma personagem tão forte foi forjada em um período social tão repressor para as mulheres. Antígona é uma mulher jovem, filha de um rei desgraçado, que enfrenta o rei Creonte, argumentando contra ele em favor da lei dos deuses. A posição de enfrentamento adotada por Antígona se assemelha à espartana Gorgo: a garota que aconselhou o pai, rei Cleomenes, e veio a se casar com Leônidas (ambos representados no filme 300 - de 2006, Zack Snyder; Noam Murro). Há uma anedota que Plutarco conta, em que Gorgo é perguntada por uma mulher ateniense o porquê de as espartanas poderem liderar os homens, ao que ela respondeu: “Porque somos as únicas a gerar homens”.

A disparidade entre a representação de Antígona e a situação das mulheres gregas é tamanha que não há consenso nem se as mulheres podiam assistir às peças encenadas publicamente. Filósofos como Aristóteles achavam que as mulheres eram incompletas, sendo homens malsucedidos, e por isso, restava a elas apenas se submeter aos seus maridos. Simone de Beauvoir diz que “os antigos gregos eram extremamente misóginos em sua maioria”. O único privilégio dessas mulheres era poder gerar filhos cidadãos atenienses - uma vez que os filhos das prostitutas não eram cidadãos.

Antigona, por Frederic Leighton

Dessa forma, apenas as espartanas chegavam próximo à igualdade de gênero. As gregas das demais cidades, principalmente da cidade de Atenas - que tem maior quantidade de bibliografia disponível - viviam tuteladas pelos homens, recolhidas às suas casas.

Os mitos gregos contribuíram para o fortalecimento da imagem feminina como incapaz. O mito de Pandora é um excelente exemplo disso: por ser curiosa e fraca, Pandora abre a caixa e liberta todas as maldições do mundo, pondo fim à Idade de Ouro - conhecida por ser uma época sem sofrimentos e doenças, longe do trabalho árduo e em eterna juventude. Sociedades patriarcais baseiam-se em mitos de desobediência e fraqueza feminina para consolidar o imaginário social. Na cultura romana-cristã, Pandora equivale à Eva. Ironicamente, a cultura grega é conhecida por cultuar deusas fortes e sábias, com falhas, mas em pé de igualdade aos deuses homens.

Sófocles escreve Antígona como uma mulher imaginária; apesar da mensagem de força e resistência, Antígona acaba morta. Morre por suas crenças e por sua família. Diferentemente de sua mãe, Jocasta, Antígona consegue deixar um legado de que é possível desafiar os homens e suas leis. Afinal, compartilhando do mesmo fim das heroínas trágicas, Antígona morre por um ideal, morre como os heróis de guerra da mitologia grega.

Referências



Arte em destaque: Mia Sodré

Comentários

  1. Amo quando vocês trazem novos olhares sobre personagens clássicas! Parabéns!

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