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Scary Monsters: os alter egos de David Bowie


Cabelos vermelhos, lábios pintados, olhos invulgares e um aspecto andrógino. Do tímido e reservado David Robert Jones emerge a figura estelar de Ziggy Stardust, o alien quasi-messiânico, arauto do glam rock da década de 1970. Nos palcos, seus movimentos encantam a multidão de fãs que assiste arrebatada à completa metamorfose artística de um homem. Esse é um dos primeiros alter egos (e talvez o mais marcante) da prolífica carreira de David Bowie.

Nascido em Brixton, Londres, no ano de 1947, David Robert Jones apresentou uma paixão peculiar pela música desde a infância. Sua fascinação por Elvis Presley, Little Richard e Chuck Berry o levaram a desenvolver um apreço especial pela dança e pelo aprendizado de instrumentos. Em sua juventude, David Bowie dedicou-se ao estudo de artes, música e design, eventualmente descobrindo o jazz e o saxofone. Aos 15 anos, formou sua primeira banda - os Konrads - e mesmo diante de repetidas falhas em estourar no mundo musical, persistiu em suas tentativas de se tornar uma estrela.

Em seus primeiros anos de carreira, David Bowie foi altamente influenciado por seu meio-irmão, Terry Burns, que o introduziu ao jazz, ao budismo, ao oculto e à poesia da Geração Beat. Dez anos mais velho do que Bowie, Terry sofria de esquizofrenia e convulsões, tendo passado boa parte de sua vida em alas psiquiátricas. Na verdade, vários membros da família de Bowie possuíam transtornos ligados ao Espectro da Esquizofrenia. A presença desses distúrbios impactaria diretamente o trabalho de Bowie, especialmente no que dizia respeito à sua relação com a percepção do “eu”.

Ao contrário da noção que muitos tinham sobre sua personalidade, David Bowie não possuía a extroversão de seus alter egos mais famosos. Na verdade, suas contrapartes eram projeções internas, construídas sobre o desejo de não expor a parte mais sensível do David Robert Jones que habitava no interior do artista. Em múltiplas ocasiões, Bowie afirmou ser tímido e retraído desde a adolescência, tendo dificuldades de se posicionar no palco no início da carreira. Seus alter egos serviam, portanto, como uma espécie de disfarce para um ego reservado. Mas como se daria essa relação?

Famoso por desenvolver a teoria da psicanálise, Sigmund Freud articulou a existência de três componentes para a psiquê humana. O id resguarda os impulsos instintivos inatos, sendo inconsciente e atemporal. Trata-se da vontade pura e obstinada, sem lógica, moral ou inibições. No espectro oposto, o superego consiste na internalização dos valores morais e éticos da sociedade, servindo como um regulador ao comportamento do ego e um freio aos impulsos animalísticos do id.


Entre a incansável busca pelo prazer do id e a rigidez do superego, está o ego. O ego se constitui como o setor mais equilibrado da personalidade, sendo o mediador entre as pressões da sociedade e os desejos internos. É no ego que se realizam as interações, análises e reações ao mundo social, sendo a representação externa da personalidade de um indivíduo.

Nesse sentido, quando falamos de um alter ego, nos referimos a uma versão alternativa do “eu”. Não se trata de uma mera mudança de roupas, mas de uma personalidade completa e distinta. O alter ego se descola do ego, trazendo consigo alguns traços do indivíduo original, mas excluindo quaisquer impulsos ou restrições que não o sirvam. No caso de David Bowie, seus alter egos expressavam comportamentos e sentimentos que seu ego não podia expressar. Ziggy Stardust possuía uma personalidade desinibida e extrovertida, ao contrário do jovem Bowie em início de carreira. Já o Thin White Duke projetava uma imagem de controle e frieza, que contrastava com o estado mental caótico e descontrolado de Bowie à época.

No entanto, se os alter egos viabilizaram o sucesso artístico de David Bowie, suas constantes metamorfoses ultrapassaram o limite do artístico, afetando sua vida pessoal. Embora a fragmentação de sua personalidade fosse um processo intencional, a ocasional perda de identidade colocou sua vida e carreira em risco. Não obstante, diante da possibilidade concreta do suicídio, Bowie não viu outra escolha senão matar aquilo que o matava. Eis a razão pela qual cada um de seus alter egos eventualmente encontraram um fim, apesar do sucesso (ou da polêmica) que geraram.

Em certo sentido, a jornada de David Bowie como artista em muito se assemelha à narrativa desenvolvida por Robert Louis Stevenson em O médico e o monstro (The strange case of Dr. Jekyll and Mr. Hyde). O clássico gótico narra a perturbadora história de Dr. Jekyll, um médico cujo desejo de libertar-se das restrições da sociedade vitoriana resulta na formação de Mr. Hyde, um alter ego sem inibições, movido tão somente pelo prazer. Dadas as semelhanças, cabe questionarmos até que ponto as narrativas diferem entre si. Entre o artista e o monstro, quem foi David Bowie?

Quem tem medo do Mr. Hyde?


Em 1885, enquanto se recuperava de uma hemorragia, Robert Louis Stevenson teve seu primeiro vislumbre de O médico e o monstro. Doente e acamado, o autor escocês sonhou com “um homem engolindo uma droga e se transformando num outro ser”. Inspirado pelo sonho, Stevenson escreveu um rápido manuscrito, que foi posteriormente revisado e lançado em 1886.

O médico e o monstro narra a história de Dr. Henry Jekyll, um homem cuja boa reputação na sociedade é aos poucos fraturada diante de sua associação com o polêmico (e maldoso) Mr. Hyde. Ao longo da novela, acompanhamos as reviravoltas do enredo através dos olhos de Mr. Utterson, uma figura maçante, um tanto tediosa, mas genuína. Preocupado com a possibilidade de que Mr. Hyde esteja subornando o doutor, Mr. Utterson, que é advogado de Dr. Jekyll, se propõe a investigar o relacionamento entre os dois.

O médico e o monstro (1931) 

Ao final da novela, nos é revelado que Dr. Jekyll e Mr. Hyde são, de fato, a mesma pessoa. Em sua ânsia por libertar-se das restrições da sociedade, Dr. Jekyll descobriu uma forma de desassociar sua personalidade. Porém, incapaz de controlar seu alter ego, o doutor não vê outra opção senão dar um fim à sua própria vida. Antes de cometer suicídio, Dr. Jekyll deixa uma carta na qual explica sua jornada. Esse é o único momento em toda a narrativa em que temos acesso ao ponto de vista do próprio doutor, que até então nos era apresentado exclusivamente sob a visão de seus conterrâneos.

Concebido como o homem vitoriano ideal, Dr. Henry Jekyll possui uma reputação ilibada dentre a sociedade de sua época. Isso não significa, é claro, que seja um homem perfeito. Em seu ensaio sobre O médico e o monstro, Vladimir Nabokov afirma que Dr. Jekyll é um ser composto, uma mistura de bem e mal. No contexto de uma sociedade que reprime os impulsos primários através de rígidos códigos morais, Dr. Jekyll nada mais é do que um homem ordinário, dotado de todas as hipocrisias comuns à humanidade. Sua busca por liberdade e individualidade, por vezes hipócrita frente às expectativas do mundo vitoriano, o conduz à descoberta de uma droga capaz de libertar seu lado “selvagem”.

O que exatamente seria esse lado “selvagem”? Stevenson nunca entra em detalhes. No contexto da sociedade vitoriana, qualquer comportamento fora das normas morais e éticas da época seria considerado terminantemente imoral. Dessa forma, quando pensamos nos impulsos básicos reprimidos por Dr. Jekyll, podemos considerar desde aventuras sexuais ilícitas, até o uso de drogas e envolvimento em crimes. Uma vez que os detalhes mais sórdidos da narrativa são ocultados, fazendo jus ao próprio regime de silêncio da sociedade vitoriana, cabe ao leitor preencher as lacunas do texto. Afinal, o que Dr. Jekyll teria a esconder?


Eis Mr. Hyde, literalmente “Sr. Esconder”, a figura sombria derivada do âmago do generoso Dr. Jekyll. Um erro comum nas leituras modernas de O médico e o monstro é considerar a novela uma história de mistério, atribuindo ao papel de Mr. Hyde a figura de um monstro literal, numa dinâmica similar ao Dr. Bruce Banner e sua contraparte, o Hulk. Essa visão, no entanto, ignora o fato de que a própria existência de Mr. Hyde deriva dos elementos essenciais da personalidade de Dr. Jekyll. É a partir dos desejos contidos e dos impulsos primários do doutor que emerge sua versão mais animalística e, ainda assim, igualmente complexa. Nas palavras de Nabokov:

Jekyll não se transforma realmente em Hyde, mas projeta um concentrado de pura maldade que se torna Hyde. […] Hyde está mesclado a ele, dentro dele.

No capítulo final de O médico e o monstro, Dr. Jekyll descreve sua primeira experiência como Mr. Hyde de forma quase sensual:

Em resultado, fui abalado por umas sacudidelas atrozes, por um ranger de ossos, um enjoo mortal e um horror de espírito que os momentos do nascimento e da morte não podem superar. Depois, essa agonia começou a desvanecer-se suavemente e voltei a mim como se estivesse a convalescer de uma terrível enfermidade. Havia algo de estranho nas minhas sensações, algo de indescritivelmente novo e, pela sua novidade, indescritivelmente agradável. Sentia-me mais jovem, mais leve, fisicamente mais feliz. Enquanto exteriormente experimentava uma poderosa fogosidade, pela minha imaginação cruzavam-se imagens sensuais e desordenadas que avançavam em louca correria; reparava como se dissolviam os vínculos que me atavam às minhas obrigações, como a minha alma se submergia numa liberdade desconhecida e inocente.

Essa transformação não traz apenas resultados psíquicos, como também resultados físicos. Enquanto Dr. Jekyll é um homem na casa dos cinquenta anos, largo e bem constituído, Mr. Hyde possui baixa estatura, aparência mais jovem e um aspecto desconcertante, demasiado vil. Sua aparência é dita repugnante e maldosa por inúmeros personagens que, embora se esforcem, não conseguem definir ao certo o que lhe confere o ar desfigurado. A diferença física entre Dr. Jekyll e Mr. Hyde se explica, entre outros fatores, pela prevalência do comportamento moderado do doutor ao longo da sua vida. Mr. Hyde é jovem, pois Dr. Jekyll raramente exercitava os impulsos que o compõe.

O lado perverso da minha natureza, a que agora havia concedido uma forma corporal, era menos forte e estava menos desenvolvido que o lado bom de que acabava de se separar. De certo modo, era lógico, pois no decorrer da minha vida que, afinal, havia sido na sua quase totalidade uma vida dedicada ao esforço, à virtude e à renúncia, havia-o exercitado e esgotado muito menos. Calculei que essa era a razão de Edward Hyde ser muito mais baixo, magro e jovem que Henry Jekyll. 

Ao se referir à dinâmica entre Dr. Jekyll e Mr. Hyde, Nabokov defende que nenhum dos dois é puramente bom ou mal. Pelo contrário, ambos são seres ambíguos. Essa é a realização a qual Dr. Jekyll, em seus momentos finais, chega: humanos são seres compostos, múltiplos, dos quais se depreendem diversas possibilidades de comportamento. E ao alcançar a compreensão de sua própria hipocrisia, Dr. Jekyll desespera-se diante da impossibilidade de compreender a si mesmo e conter seus impulsos. Mr. Hyde o domina, e esse domínio o satisfaz na mesma medida em que o aterroriza. A única maneira de pôr um fim ao seu dilema seria a morte:

Sentia que agora seria preciso escolher entre os dois. As minhas duas naturezas tinham em comum a memória, mas as outras faculdades estavam repartidas desigualmente entre ambas. Jekyll (que era um complexo) planeava e gozava os prazeres e as aventuras de Hyde, umas vezes com prudente apreensão, outras com inusitado desejo. Quanto a Hyde, olhava Jekyll com indiferença ou apenas o recordava como o bandido recorda o esconderijo em que se oculta da perseguição. Jekyll mostrava um interesse mais que paternal; Hyde manifestava uma indiferença maior que a de um filho sem amor. Unir-me definitivamente a Jekyll era o mesmo que deixar morrer aqueles apetites a que me havia entregue longa e secretamente e que por fim havia logrado saciar. Unir-me definitivamente a Hyde equivalia a deixar morrer para sempre os meus interesses e aspirações e converter-me de imediato e para sempre num ser desprezado e sem amigos.

 

O suicídio de Dr. Henry Jekyll sela para sempre o conflito de personalidades. Para matar Mr. Hyde e os impulsos proibidos dentro de si, o doutor sacrifica sua própria vida e leva consigo os pecados de seu alter ego. Assim se encerra a narrativa de O médico e o monstro, com um gosto amargo e um tom reflexivo. Dos muitos temas elaborados por Stevenson, talvez o mais impactante seja a questão do “eu”. Afinal, o que significa ser uma pessoa única? Quantas possibilidades residem na mente humana? E o mais importante, como lidar com as partes mais obscuras de seu ser?

O artista e o monstro


Em 11 de julho de 1969, cinco dias antes do lançamento da Apolo 11, David Bowie lançou Space Oddity (também chamado de David Bowie), seu segundo álbum. Influenciado pelas artes do teatro e pelo trabalho de Lindsay Kemp, Bowie articulou a criação de uma personagem artística, um primeiro vislumbre de um alter ego. Essa personagem ficaria conhecida como Major Tom.


Major Tom, o astronauta de mármore


Ao contrário de Ziggy Stardust, cuja presença se concretizava nos palcos e na vida cotidiana, Major Tom se apresentava somente no âmbito musical. David Bowie nunca chegou a encarná-lo propriamente como alter ego, embora o tivesse como protagonista de muitas de suas canções, incluindo Space Oddity, Ashes to Ashes e Hallo Spaceboy:

This is Major Tom to Ground Control
I'm stepping through the door
And I'm floating in a most peculiar way
And the stars look very different today
(Space Oddity, 1969)

Ashes to ashes, funk to funky
We know Major Tom's a junkie
Strung out in heaven's high
Hitting an all-time low
(Scary Monsters (and Super Creeps), 1980)

Spaceboy, you're sleepy now
Your silhouette is so stationary
You're released but your custody calls
And I want to be free, don't you want to be free?
(Outside, 1995)

Uma das hipóteses mais populares por trás do nome Major Tom remete à adolescência de Bowie. Aos 15 anos, o cantor teria tido contato com uma série de cartões colecionáveis sobre exploração espacial cujo personagem principal se chamava Capitão Tom. Fascinado pelo nome, David Bowie concebeu Major Tom, sua própria versão de um explorador espacial. Major Tom veio a servir como um espelho para o jovem Bowie, refletindo seus sentimentos de deslocamento, timidez e admiração pelo espaço desconhecido.


Embora não tenha alcançado a fama ou o impacto de alter egos como Ziggy Stardust, Major Tom teve um papel fundamental na carreira de David Bowie. Sua aparição em Space Oddity trouxe pela primeira vez o conceito de espaço, alteridade e isolamento na obra do cantor, conceitos que seriam explorados em profundidade ao longo de toda a sua discografia. Major Tom também se consagrou na cultura popular, inspirando canções como Major Tom (Coming Home), de Peter Schilling, e Terrence Loves You, de Lana Del Rey. O próprio David Bowie se referiria a Major Tom inúmeras vezes em suas obras posteriores, tendo-o como inspiração em diferentes fases da sua carreira.

Ziggy Stardust, o homem das estrelas


O início da década de 1970 foi marcado pelo surgimento de um novo movimento no cenário da música - o glam rock. Caracterizado pelo excesso de maquiagem, purpurina, roupas exuberantes, sexualidade exacerbada e visuais andróginos, o glam rock teve como pioneiro Marc Bolan, vocalista da banda T. Rex.

Marc Bolan

O glam rock veio como resposta aos conflitos geracionais da época. Em contraposição ao estilo mais comportado do rock dos anos 1960, o glam rock trouxe um som mais pesado, combinando a sexualidade ambígua e o hedonismo com performances exuberantes no palco. O movimento foi acompanhado por uma nova revolução sexual, que lançou as sementes para o surgimento de bandas como Queen e Kiss.

Em 1971, em meio ao nascimento do glam rock, David Bowie realizou sua primeira viagem aos Estados Unidos. Ainda desconhecido para boa parte do público estadunidense, Bowie aproveitou a viagem para expandir suas conexões no meio artístico. Como resultado, novas ideias surgiram em seu horizonte criativo. Foi durante uma viagem de São Francisco para Los Angeles, em fevereiro de 1971, que David Bowie concebeu seu famoso alter ego, Ziggy Stardust.

Inspirado por Vince Taylor, Iggy Pop e The Legendary Stardust Cowboy, Ziggy Stardust foi construído como uma verdadeira estrela do rock, uma figura quase divina, ambígua e extravagante. De acordo com o próprio David Bowie:

Ziggy, particularmente, foi criado a partir de uma certa arrogância. Mas, lembre-se, naquela época eu era jovem e cheio de vida, e isso parecia uma declaração artística muito positiva. Achei uma obra de arte muito bonita, achei mesmo.

Ao contrário de Major Tom, cuja existência estava limitada a aparições ocasionais nas letras de Bowie, Ziggy Stardust ganhou uma existência particular e corpórea. Ziggy possuía um guarda-roupa particular, desenhado pelo estilista Kansai Yamamoto, bem como um penteado especial, escolhido pelo próprio David Bowie. Mesmo sua personalidade foi cuidadosamente construída para diferir do aspecto tímido e reservado de Bowie. Através de Ziggy, ele não precisaria encarar o público diretamente.


David Bowie assumiu a personalidade de Ziggy Stardust pela primeira vez no seu aniversário, em 8 de janeiro de 1972. No mesmo ano, foi lançado seu quinto álbum de estúdio, The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars. Inspirado pela revolução do glam rock, bem como por obras como A Guerra dos Mundos, 2001: Uma Odisseia no Espaço, e poetas como William Blake e Roger McGough, o álbum consistia num disco conceitual e narrativo.

The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars gira em torno de Ziggy Stardust, um alienígena andrógino e estrela do rock que chega à Terra no momento em que a humanidade se aproxima do seu fim. Em meio ao caos do fim do mundo, Ziggy alcança uma fama imensurável, que eventualmente o consome. A narrativa é construída ao longo de onze canções que delineiam os excessos e as aventuras de Ziggy Stardust e sua banda.

Com seu quinto álbum, David Bowie alcançou um novo status como artista. A fama, no entanto, foi acompanhada por uma espiral de problemas relacionados ao declínio do seu estado mental. Cada vez mais celebrado como Ziggy Stardust, Bowie foi cedendo espaço ao seu alter ego. A divisão entre realidade e performance aos poucos se perdeu, ao ponto do próprio Bowie pedir para ser chamado de Ziggy durante entrevistas.

Não é difícil imaginar o dilema pelo qual passava David Bowie. Reservado durante boa parte da sua vida, o cantor finalmente alcançava não só a fama pela qual sempre buscou, como também um novo status social. Ziggy Stardust servia como um escudo, uma projeção do ego de Bowie, tal qual Mr. Hyde era para Dr. Jekyll. E assim como o doutor da obra de Stevenson, David Bowie não se sentia capaz de parar.

Os anos 1970 foram marcados pela proliferação de substâncias alucinógenas, como o LSD, e por drogas como a heroína e a cocaína. Muitos artistas à época recorriam ao uso de drogas como forma de rebelião, afirmação e aumento de criatividade. Para Bowie, que possuía um histórico familiar de suicídio e desvios de personalidade, o consumo de substâncias químicas foi um fator decisivo para sua crise de identidade:

Eu não estava me livrando dele [Ziggy] de todo - na verdade, eu estava unindo forças com ele. O doppelgänger e eu estávamos começando a nos tornar a mesma pessoa.

Por um lado, Ziggy Stardust havia dado a Bowie tudo o que ele sempre havia desejado - a fama, o reconhecimento, a riqueza artística e a inclusão num mundo que, desde sua infância, parecia extraterrestre. Porém, Ziggy também era seu espinho, a fonte de suas ansiedades. Bowie sentia que os dois já não poderiam coexistir ao mesmo tempo, pois seu alter ego eventualmente o dominaria. Como resultado de sua crise, Bowie passou a contemplar o suicídio. Alguém tinha de morrer - ou ele ou Ziggy.

Durante o último show de sua turnê, em 1973, David Bowie encenou a morte de Ziggy Stardust no palco, para a surpresa de milhares de fãs. O fim trágico do alter ego seguiu a mesma trajetória de sua contraparte em The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars. Assim como o protagonista do álbum, Ziggy se autodestruiu, tornando-se um verdadeiro “rock’n roll suicide”. Esse foi o fim definitivo de Ziggy Stardust. David Bowie jamais o encarnaria novamente, optando por se referir ao alter ego como uma lembrança do passado.

Aladdin Sane, o Ziggy Stardust estadunidense


Após a morte de Ziggy Stardust, David Bowie se viu diante do desafio de manter o sucesso de seu antigo alter ego. A resposta veio na forma de Aladdin Sane, uma versão estadunidense de Ziggy. Seu nome consistia numa brincadeira com a expressão “a lad insane”, que pode ser traduzida como “um rapaz insano”.

Com um visual inspirado em elementos das artes japonesas do Kabuki e do Noh, Aladdin Sane trazia algumas modificações do visual icônico de Ziggy Stardust. A maior delas consistia na pintura de um raio atravessando seu rosto, cujo propósito era representar os sentimentos conflituosos de Bowie sobre sua própria personalidade.


Aladdin Sane foi introduzido pela primeira vez no álbum de mesmo nome, lançado em 1973. Boa parte de seu repertório foi composta durante as viagens de Bowie pelos Estados Unidos como Ziggy Stardust. O álbum alcançou grande sucesso comercial com singles como The Jean Genie e Drive-In Saturday, dando prosseguimento ao sucesso de The Rise and Fall of Ziggy Stardust and the Spiders from Mars.

De certa forma, Aladdin Sane foi um sucessor de Ziggy Stardust. Sua existência também servia de apoio a David Bowie, especialmente diante de um público que já havia se acostumado a esperar performances excêntricas e inesperadas do cantor. No entanto, a relação de Bowie com Aladdin Sane se findou em cerca de um ano, abrindo espaço para novas criações e ideias. Assim nasceu o quarto alter ego de David Bowie, Halloween Jack.

Halloween Jack, o rebelde sem causa


Com o fim da tragetória de Ziggy Stardust e Aladdin Sane, David Bowie teve a oportunidade de experimentar com suas criações. Seu quarto alter ego, denominado Halloween Jack, surgiu pela primeira vez no verão de 1974, durante a turnê do álbum Diamond Dog’s.

O objetivo inicial de Bowie para seu oitavo álbum de estúdio era adaptar o livro 1984, do escritor George Orwell. O cantor, porém, não recebeu os direitos de adaptação da obra. Como resultado, Bowie concebeu seu próprio universo pós-apocalíptico, com elementos do glam rock e influências indiretas de Orwell. Halloween Jack seria um habitante desse universo, e serviria como uma figura de introdução ao espectador.

Trazendo ainda algumas semelhanças aos antigos alter egos de David Bowie, Halloween Jack possuía cabelos loiros avermelhados, estilo James Dean, e utilizava um tapa-olho. Sua aparência mais icônica se encontra na capa de Diamond Dog’s, onde o corpo de Bowie é mesclado com o corpo de um cão. A ilustração causou grande polêmica à época, resultando na censura da capa.


A era de Halloween Jack eventualmente se encerrou quando Bowie se mudou para Los Angeles, em 1975, com a intenção de se tornar uma estrela do cinema. Naquele mesmo ano, se inciou uma das fases mais polêmicas da carreira de David Bowie.

Thin White Duke, o Übermensch


Ao criar Ziggy Stardust, David Bowie acidentalmente abriu uma rachadura em sua própria personalidade. Assim como o raio que atravessava o rosto de Aladdin Sane, o ego de Bowie estava dividido. Por um lado, o artista, o David Robert Jones cujos sonhos de se tornar um astro do rock finalmente haviam se tornado realidade. Por outro lado, o monstro, a confusão de ambições e desejos de glamour que ameaçavam roubar sua vida e sua carreira. A cristalização de todas as crises internas de David Bowie ocorreu no período entre 1975 e 1976, no qual o alter ego The Thin White Duke assumiu as rédeas de sua personalidade. Esse também foi o período no qual Bowie desenvolveu um vício em cocaína.

Após sua mudança para Los Angeles, em 1975, David Bowie passou a viver na casa de Glenn Hughes, o baixista da banda Deep Purple. Nessa época, ele raramente dormia, e se alimentava apenas de leite e pimentões vermelhos. Como resultado, Bowie perdeu peso e adquiriu uma aparência magra e pálida. Eventualmente, o consumo desenfreado de cocaína também levou Bowie a desenvolver diversas neuroses relacionadas à bruxaria. Influenciado por práticas ocultistas e pela cabala, ele passou a queimar velas negras em seu apartamento e a estudar a mitologia fascista.

Em 1976, David Bowie atuou no filme O homem que caiu na Terra (The Man Who Fell to Earth), como o extraterrestre Thomas Jerome Newton. Inspirado pelo estilo de Newton e pelo seu mergulho no ocultismo e na filosofia, Bowie concebeu seu novo alter ego, o infame Thin White Duke.


Com cabelos curtos e loiros, camisa branca, calça preta e colete, o Thin White Duke não trazia nenhum dos fatores extravagantes das antigas personas de Bowie. Pelo contrário, seu comportamento era marcado pelo tratamento frio, por vezes bizarro e cruel, que em muito refletia o estado de espírito conturbado do próprio Bowie. Ele mesmo o descreveria como:

[..] muito ariano, tipo fascista; um pretenso romântico sem absolutamente nenhuma emoção […]

O Thin White Duke foi oficialmente introduzido com o álbum Station to Station, lançado em 1976. Com um grade uso de sintetizadores, as canções faziam referência aos trabalhos do ocultista Aleister Crowley e aos trabalhos do filósofo Friedrich Nietzsche. Representando um período transicional para a música de Bowie, Station to Station também possuía uma das faixas mais longas da carreira do cantor, contando um total de dez minutos. Tratava-se de um álbum altamente influenciado por temas religiosos.

Nesse período, sob a influência de seu novo alter ego, David Bowie realizou diversas afirmações polêmicas. Numa declaração, o cantor comparou Adolf Hittler a um astro do rock. Em outra ocasião, naquele que ficaria conhecido como o “incidente da Victoria Station”, Bowie, que estava num conversível, acenou para o público num gesto que lembrava uma saudação nazista. O momento foi capturado por um fotógrafo e a foto foi posteriormente publicada nos jornais.

Em muitos aspectos, o comportamento errático de Bowie resultou numa recepção negativa de seu novo alter ego. Ao contrário de Ziggy Stardust, que instigava o público com sua excentricidade, o Thin White Duke gerava desprezo e aversão. Assim como Dr. Jekyll cujas conexões foram aos poucos prejudicadas pelas atitudes descontroladas de Mr. Hyde, David Bowie teve sua vida pessoal e carreira afetadas pelas instabilidades de seu alter ego. Mais uma vez em sua carreira, ele se viu diante da morte.

Em 1976, o Thin White Duke desapareceu. David Bowie não o matou, como Ziggy Stardust, nem o aposentou, como Aladdin Sane ou Halloween Jack. Pelo contrário, o alter ego se desfez conforme o próprio Bowie batalhava para recuperar sua saúde mental e física. Após deixar os Estados Unidos, Bowie se estabeleceu na Europa, onde eventualmente se recuperou do vício em cocaína. Com a recuperação, o cantor também realizou um pedido de desculpas por suas afirmações polêmicas.

Para muitos, o Thin White Duke foi o último alter ego de David Bowie. Ao menos, o último alter ego a tomá-lo por completo, ao ponto de quase destruí-lo. Livre do vício em drogas, Bowie seguiu para produzir a famosa Trilogia de Berlim, e continuou sua carreira prolífica ao longo dos anos. Embora tenha continuado a criar suas personagens, articulando conceitos de alteridade e identidade, David Bowie não voltou a mergulhar inteiramente em nenhum alter ego. Isso mudou, no entanto, em seu último álbum, Blackstar.

Look up here, I'm in heaven


No ano de 2014, aos 67 anos de idade, David Bowie foi diagnosticado com câncer de fígado. A notícia não chegou a ser oficialmente divulgada por sua família, que optou por manter sigilo sobre as condições de saúde do cantor. Apesar de seu diagnóstico, Bowie deu continuidade aos seus trabalhos, compondo canções para seu musical, denominado Lazarus. O musical foi inspirado no livro O homem que caiu na Terra, trazendo novamente aos holofotes a figura de Thomas Jerome Newton, personagem interpretada por Bowie no filme homônimo de 1976. Na mesma época, Bowie dedicou-se à produção daquele que seria seu último álbum de estúdio, Blackstar.

Diante da realidade iminente da morte, David Bowie arquitetou Blackstar como um presente de despedida para seus fãs. O álbum trazia um tom mais sombrio, refletindo em suas canções o processo de aceitação de Bowie diante do fim de sua vida:

Something happened on the day he died
Spirit rose a metre and stepped aside
Somebody else took his place, and bravely cried
(I'm a blackstar, I'm a blackstar)

Em sua última jornada no mundo musical, sentindo a proximidade de sua morte, David Bowie concebeu um novo alter ego, o Profeta Cego, também chamado de Button Eyes. Com um aspecto introvertido e ansioso, o Profeta Cego trajava roupas escuras e trazia uma venda em seus olhos, representando o costume histórico de cobrir os olhos de pessoas condenadas à execução. No vídeo de Blackstar, também surgiram outras personagens de Bowie, como o Trapaceiro Extravagante (The Flamboyant Trickster) e o Homem Sacerdote (The Priest Guy), que contribuem para estabelecer os diferentes estágios de sua relação com a morte. Referências a Major Tom e aos temas do álbum Station to Station também estão presentes em todo o conceito de Blackstar.


Talvez a canção mais marcante do álbum, Lazarus, retoma os conceitos de Blackstar, trazendo o Profeta Cego em seu leito de morte. Dialogando com a história bíblica de Lázaro, David Bowie enfrenta a realidade do câncer que o corrói por dentro. Suas palavras trazem uma reflexão sobre sua carreira e a inevitabilidade da morte, ponderando sobre a possibilidade de se ver livre do sofrimento:

Look up here, I'm in heaven
I've got scars that can't be seen
I've got drama, can't be stolen
Everybody knows me now

De certa forma, o Profeta Cego representa a maturidade de David Bowie. Já não mais o jovem artista consumido por seu alter ego, mas a projeção de um homem cuja morte eminente o faz reexaminar suas escolhas de vida. O Profeta Cego não domina Bowie, muito menos serve como uma válvula para seus desejos mais escusos. Pelo contrário, ele reflete o medo, a ansiedade e a perturbação de Bowie, representando sua parte mais frágil, mais humana e ainda assim, performática. Após anos utilizando alter egos para lidar com sua própria timidez, David Bowie escolheu abraçar uma última personagem para enfrentar a morte. O Profeta Cego foi sua companhia diante do inevitável.

Se na obra de Stevenson, Dr. Jekyll se viu consumido por seus próprios desejos, ao ponto de ver na morte a única saída possível, David Bowie aprendeu a lidar com seus alter egos, aceitando a multiplicidade de sua personalidade. Talvez o que muitos ignorem em O médico e o monstro seja o fato de que a existência de Mr. Hyde não foi necessariamente causada pelos experimentos de Dr. Jekyll. Na verdade, Mr. Hyde sempre esteve lá, escondido e suprimido por um Dr. Jekyll cujos impulsos eram guiados pela sociedade. Nunca houve um médico e um monstro, apenas um homem cuja personalidade fraturada ganhou materialidade e forma. Da mesma forma, nunca houve um artista e seus monstros, apenas um homem inseguro e suas múltiplas formas de expressão.

David Bowie veio a falecer no dia 10 de janeiro de 2016, dois dias após seu aniversário e o lançamento de Blackstar. Somente então o público foi informado de seu diagnóstico, que permanecia em segredo desde 2014. Sua morte provocou uma comoção internacional, especialmente diante do tom de despedida de seu último álbum. Como consequência, uma nova geração teve seu primeiro contato com as obras do cantor. Em seus 69 anos de vida, Bowie foi muitas coisas - um astronauta, um astro do rock, um guia pós-apocalíptico, um neorromântico, um rei dos goblins e um profeta cego. Mas no fim das contas, ele foi sempre David Bowie, um homem complexo, humanamente fraturado, artisticamente celebrado e musicalmente visionário.

Referências

  • O médico e o monstro (Robert Louis Stevenson)
  • O Eu e o Outro: Dr. Jekyll vs Mr. Hyde, David Bowie vs Ziggy Stardust (Isabel Patrícia da Silva Fidalgo Batista Ramos)
  • Major Tom, Ziggy and the Thin White Duke: An Analysis of personas, fictional characters and their worlds in selected lyrics by David Bowie (Bettina Tropper)
  • Lições de Literatura (Vladmir Nabokov)

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Comentários

  1. adorei o texto!!! Bowie sempre o MAIOR! <3

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  2. Estou encantada com esse texto, Giovanna! Uma viagem. Nunca superei a morte do Bowie e sempre me conectei muito com D. Jekyll and Mr. Hyde (que estou lendo, finalmente). Além do meu profundo interesse por Aleister Crowley e O Livro da Lei. Esse texto veio em boa hora e foi muito, muito bem escrito.

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  3. Texto perfeito sobre um artista perfeito. Amei!

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