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Flush, de Virginia Woolf, e os cães do século XX

 

“Não há igualdade entre cães: alguns são refinados, outros são vulgares.”

Em meados de 1932, em seu período de descanso após As Ondas (The Waves), Virginia Woolf escreveu: “Os cães de Londres estão estritamente divididos em classes distintas”. O contexto eram as primeiras impressões de Flush, protagonista cocker spaniel dourado, no seu primeiro passeio na alta sociedade londrina.

A história de Flush


Virginia Woolf teve a ideia de Flush após entrar em contato com as cartas trocadas entre os poetas Elizabeth Barrett e Robert Browning. Flush, o cocker spaniel presente nas correspondências do casal, atiçou a mente imaginativa de Woolf com a sua personalidade excêntrica. “Eu estava tão cansada após As Ondas que deitei no jardim e li as cartas de amor dos Brownings, e a imagem do cachorro deles me fez rir tanto que não pude deixar de dar-lhe vida”, confessou a escritora, em carta, a sua amiga Ottoline Morrell.

Devido ao seu estilo bem-humorado, a obra foi um sucesso tanto na Inglaterra quanto nos Estados Unidos. Virginia Woolf, no entanto, não deixando para trás suas raízes críticas, aproveitou-se do feitio espirituoso do livro para tecer comentários ácidos sobre a sociedade inglesa e vitoriana da época, juntamente de seus valores e, claro, da hierarquia canina do século XX.

Não há igualdade entre cães


No primeiro capítulo, Three Mile Cross, Virginia já nos conta sobre o Cocker Spaniel Club, clube fundado em 1902 que “determina, de maneira bem clara, quais são os defeitos e as virtudes de um spaniel. Olhos claros, por exemplo, não são desejáveis; orelhas curvadas são ainda piores; nascer com o focinho claro ou com um topete é pior do que a morte”

Virginia Woolf
Desta forma, clubes como o Cocker Spaniel Club determinavam a posição social dos cães de Londres. Contudo os spaniels não eram os únicos a serem julgados pelos formatos das orelhas e as cores dos focinhos. Na primeira visita de Flush a um parque da alta sociedade de Londres, por exemplo, o próprio cocker spaniel se deu conta das distinções nos cachorros lá presentes. 

“Os cães, portanto, Flush começou a suspeitar, são diferentes.”

As suspeitas do mascote dos Brownings foram, então, confirmadas graças a uma conversa ouvida por ele em tal parque. 

“Viu só aquele terrier? Não passa de um vira-lata!... Em nome de Deus, aquele ali é um lindo spaniel. De uma das melhores linhagens da Grã-Bretanha!... Pena que suas orelhas não sejam um tantinho mais cacheadas... Ali está um topetudo para você!”

Virginia Woolf, narrando da posição de Flush, no mesmo capítulo, pintou as distinções dos cães londrinos. Coleiras, potes vermelhos e passeios em carruagens foram um divisor de águas, na percepção de Flush, para pré-definir os cães.

A utilização do cão como status social


A partir do século XVII, os cães domésticos se popularizam como medidas da posição social, intensificando, assim, o processo de “cruzamento seletivo” para criar cães que tivessem certas características. No século XIX, a posse de cães criados seletivamente se tornou comum entre a alta classe europeia.


Na Era Vitoriana, em meados de 1891, se inicia no Reino Unido as competições de cães. O primeiro Crufts Dog Show, inclusive, teve a participação da Rainha Vitória, que competiu com seis lulus-da-pomerânia. Foi neste período, também, que ocorreu a fundação da organização The Kennel Club, que é mencionado em Flush.

O The Kennel Club era responsável por manter os padrões das raças, registrar os pedigrees e emitir as regras para exposições dos cães. Eles serviam como registros de listas de cães adultos de raça pura e listas de ninhadas de filhotes nascidos de pais de raça pura. Os clubes não incluíam, no entanto, cães híbridos e mestiços. Tais clubes foram concebidos por conta da necessidade de trazer “ordem” ao esporte de exibições públicas de cães nas competições.

“Agora já fazia muitos anos que Flush havia sido ensinado a considerar-se como um aristocrata. A lei do pote vermelho e da coleira estavam impregnados profundamente em sua alma.”

Desse modo, os cães foram utilizados, durante muito tempo, como artefatos que definiam a posição social de muitas famílias. Apesar de tal situação ter sido revertida com a chegada do século XXI – um exemplo é o fato de os clubes The Cocker Spaniel Club e The Kennel Club terem mudado as suas propostas e objetivos em seus sites oficiais – tal panorama ainda tem certa influência na sociedade atual, uma vez que cães de raça ainda são vistos como prestigiosos, enquanto os vira-latas pertencem, em sua maioria, às ruas. 

Referências 

Ana Clara de Menezes
Estudante de Jornalismo na Universidade Federal de Santa Catarina, é apaixonada pela temática da literatura clássica, assim como ama escrever sobre ela. Se considerando uma discípula de Jane Austen, é fã de comparações do atual e do antigo, que vão de Clarice Lispector a Elena Ferrante e Crepúsculo a Orgulho e Preconceito.

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