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Os ecos de guerra em Jane Austen


Durante os tempos incertos e violentos da Segunda Guerra Mundial, Virginia Woolf declarou: “Jane Austen nunca ouviu o canhão rugir em Waterloo”. Ao tentar traçar um paralelo entre a sua realidade de guerra e a realidade das guerras napoleônicas do tempo de Austen ela estava certa, mas também equivocada, de certo modo. Comparado aos ataques diretos sofridos pela Inglaterra durante este período, o conflito além-mar contra Napoleão não chegou a exigir que o cidadão comum saísse de sua casa de madrugada, despido de esperança, enquanto bombas cruzavam o céu sobre sua cabeça de forma implacável. Mas mesmo que Jane Austen nunca tenha visto ou ouvido uma bala de canhão cair no quintal de casa, isso não significa que ela não tenha experienciado os conflitos de outras formas e sentido as mudanças históricas e sociais causadas por eles. E o mais importante: não ter escutado os rugidos dos canhões de Waterloo não impediu Austen de costurar, habilmente, os ecos de guerra em sua ficção. Como bem aponta Gillian Russel

“O zumbido do tempo de guerra, se não a explosão ou o grito de batalha, permeia sua ficção.”

Durante muito tempo os romances de Jane Austen foram lidos como indiferentes ao tema das rebeliões e guerras travadas ao final do século XVIII e início do XIX. Esta leitura isenta não se construiu despida de intenção. Ela fez parte de um projeto vitoriano articulado principalmente pelos parentes da autora, que trataram de gerir o legado dela e criar uma imagem doméstica e imaculada que seria palatável para o consumo da classe média vitoriana. Tal curadoria pós-morte foi administrada principalmente pelos membros masculinos da família. Seu irmão, Henry Austen, foi o responsável por escrever um primeiro relato biográfico de Austen e começou a estabelecer as bases de “uma vida sem eventos” da irmã. Tempos depois, o livro Memoir of Jane Austen (1870), de James Edward Austen-Leigh, e The letters of Jane Austen (1884), de Lord Brabourne (sobrinho-neto de Austen), ajudaram a cimentar a imagem doméstica da “tia Jane” dentro dos valores burgueses vitorianos. 

Carta de Jane Austen a sua irmã Cassandra, em 4 de fevereiro de 1813

Desta forma, tanto a família quanto a crítica literária estabeleceu, ainda no século XIX, a figura de uma Jane Austen apolítica e não-histórica, afastada de temas controversos ou estruturas narrativas vistas como indecorosas para as mulheres (como o gótico). Esta construção de uma reputação de matrona acompanhou também a criação de um projeto nacional que visava estabelecer um caráter nacional para o povo inglês. E Austen parecia reunir em seus romances os melhores exemplos de polidez, recato e bons modos considerados necessários para um bom cidadão, súdito de Vossa Majestade, se basear. 

Foi necessário avançar no tempo, mas finalmente o mito da Austen inconsciente começou a ser questionado e revisto. Como bem sublinha Russel, Jane escreveu e se constituiu como romancista ao longo de 22 anos quase ininterruptos de conflitos entre França e Reino Unido. Entre 1793-1815, as guerras revolucionárias e as guerras napoleônicas mobilizaram não só um contingente de homens que precisou se deslocar para proteger o território, mas também causaram mudanças significativas na estrutura social e econômica, que afetaram de alguma forma a maior parte da população. A própria Jane Austen testemunhou a guerra de forma direta dentro de casa: seus irmãos Frank Austen e Charles Austen estavam em serviço ativo enquanto ela elaborava histórias na sua mesa de escrever. 

Mesmo que as batalhas não tenham acontecido em solo britânico, a nação sentiu um impacto que reverberou por muito tempo. E a autora, como a boa observadora social que era, inseriu nas suas narrativas esses conflitos. Em alguns momentos de forma mais velada, em outros, mais direta. Em seu texto, "Jane Austen, a década de 1790 e a Revolução Francesa", Mary Spongberg comenta:

“A escassez de homens, o medo da rebelião, as crises causadas por mudanças no valor do capital, estão todos embutidos em seus romances.”

A experiência de guerra que Austen absorveu através dos irmãos e das mídias da época transparece, por exemplo, na gama de personagens pertencentes a algum nível do exército ou da marinha que permeiam as páginas de seus livros. O oficial da milícia, George Wickham, em Orgulho e Preconceito, o Coronel Brandon em Razão e Sensibilidade, Mr. Weston em Emma e o Capitão Frederick Tilney em A Abadia de Northanger são apenas alguns dos oficiais que possuem papel ativo nos romances da autora e que representam a mobilidade destes homens por diferentes círculos sociais durante os tempos de conflito e também suas influências na vida, cotidiana. Para uma escritora caracterizada como “alheia” ao contexto histórico, Jane documentou de forma minuciosa o comportamento militar e suas trocas com a sociedade britânica. 

Rupert Graves como Mr. Weston em Emma. (2020)

Mas de todos os seus trabalhos, talvez nenhum explicite tanto esse intrincado conhecimento quanto Persuasão, publicado ao final de 1817, após a morte da autora. A figura central do romance é Anne Elliot, uma jovem pertencente à aristocracia estabelecida que se apaixona por um rapaz que, a princípio, é considerado indigno para ela. Anos depois do rompimento do noivado entre os dois, o interesse amoroso da protagonista, Frederick, retorna para o círculo social de Anne, agora como Capitão Wentworth, um homem rico que serviu ao seu país através da Marinha Real Britânica. 

Vale destacar aqui o quanto Jane Austen estava alinhada com a realidade das guerras napoleônicas, pois o romance em si é ambientado entre o verão de 1814 e a primavera de 1815, durante a falsa paz, momento em que Napoleão abdicou e se exilou na ilha de Elba. Entre o povo britânico se espalhou um sentimento de alívio e esperanças em um futuro de paz, em que planos poderiam ser feitos, casamentos arranjados e propriedades alugadas ou compradas. 

“A paz trará de volta todos os nossos ricos oficiais navais. Todos estarão à procura de uma casa. Não poderia haver época melhor, sir Walter, para ter uma ampla gama de inquilinos para escolher, todos muito responsáveis. Muitas nobres fortunas foram amealhadas durante a guerra.”

Além das ansiedades com o futuro da nação, a autora tratou habilmente no texto a mudança gradual no poder das velhas hierarquias de nascimento e herança que passaram a ter que dividir espaços sociais com novas estruturas, representadas por homens que haviam feito fortuna com o serviço militar. A partir do momento em que esses oficiais e suas famílias passaram a frequentar os espaços comuns, desencadearam atritos dentro dos sistemas arcaicos que vigoravam há séculos na Inglaterra. Em Persuasão, este conflito entre costumes é muito bem representado pelo pai de Anne, sir Walter, um baronete membro da antiga aristocracia que não aceita as mudanças dos novos tempos, causadas pelas guerras. As opiniões dele demostram não só seu preconceito social, mas também a futilidade de sua classe:

“Tenho duas fortes razões para me opor a essa profissão. Em primeiro, por ser um meio de dar uma indevida distinção a pessoas de origem obscura, e de elevar os homens a honrarias com que seus pais a vós jamais haviam tinha do; e, em segundo lugar, porque prejudica terrivelmente a juventude e o vigor dos homens; os marinheiros envelhecem mais cedo do que todos os outros homens.”

Outra pista consistente em Persuasão que depõe contra a noção de que Jane Austen era alheia aos esforços de guerra se evidencia quando Anne Elliot expressa seu conhecimento sobre a vida do Capitão Wentworth enquanto ele estava ativo na Marinha. Anne rastreia a fortuna do Capitão ao acompanhar periódicos e jornais. 

1ª edição de A abadia de Northanger e Persuasão

“Logo depois de romper o noivado obtivera um posto, e tudo o que dissera a ela que aconteceria, aconteceu. Ele se destacara e logo recebera uma promoção, e devia agora, com sucessivas capturas, ter juntado uma grande fortuna. Suas fontes eram apenas os registros da Marinha e os jornais, mas não tinha dúvidas de que ele devia estar rico; e, graças à constância dele, não tinha razões para acreditar que ele tivesse casado.”

Essa cena demonstra a dimensão das informações que estavam disponíveis para a população. Através da imprensa e das correspondências privadas, as notícias chegavam a todos os cantos e transformavam os conflitos em uma experiência nacional. As mulheres podiam, dessa forma, acompanhar a evolução das batalhas que envolviam muitos de seus familiares. Austen era uma delas. Além do contato direto com os irmãos e suas cartas cheias de detalhes, em 1814, o periódico Naval Chronical anunciou o nascimento da sobrinha da escritora, Cassandra Eliza, um exemplo claro da abrangência da família naval e a ligação direta que era estabelecida com as famílias dos marinheiros. 

É fato que os trabalhos de Jane Austen podem ser lidos de inúmeras formas e interpretados dentro de diferentes chaves de leitura. Formulações sobre a autora vêm sendo feitas desde o século XIX, e evidenciam a qualidade imortal de seu trabalho. Também demonstram suas habilidades em criar inúmeras camadas dentro de uma mesma história, capazes de alcançar diferentes leitores em diferentes épocas. 

Desta forma, não podemos esquecer e nem negar que, além de seus livros entregarem finais convencionais – ótimos – nos quais amor e casamento se constituem como status e objetivo, eles também articulam, às vezes de forma sutil, em outras de forma mais objetiva, críticas e experiências históricas importantes. Por trás de cada salão de baile, vestidos regenciais e cartas de amor, também se entrelaçam ironias ácidas e retratos perspicazes de realidade social. No fim das contas, mesmo que ela não tenha escutado os canhões de Waterloo, Jane Austen foi capaz de interpretar os ecos inconfundíveis que chegaram até ela. 

Referências 

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