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Orgulho e Preconceito: amor ideal ou relacionamento tóxico?


Quando falamos sobre histórias de amor é impossível não pensar em Jane Austen e na sua capacidade quase divina de escrever enredos que, séculos depois, ainda ditam os ideais de todo e qualquer leitor apaixonado por romances românticos. Publicado pela primeira vez em 1813, Orgulho e Preconceito, principal livro da autora, segue sendo uma referência no gênero, originando obras quase tão icônicas quanto o próprio. No entanto, e à medida que nossa sociedade se desconstrói, questões mais profundas passaram a ser discutidas a respeito da obra. Uma das principais delas é em relação à saúde emocional do relacionamento de sr. Darcy e Elizabeth Bennet: afinal, seria o casal mais famoso da literatura “tóxico”?

Assim como a maioria dos debates do mundo contemporâneo, esse começou nas redes sociais. Ainda que grande parte dos internautas vejam Fitzwilliam Darcy como o arquétipo do homem ideal, outra fração o enxerga como um homem abusivo. A argumentação é baseada no comportamento arrogante e ações impetuosas do personagem, apontados de forma explícita pela própria Austen ao longo da trama.

Primeiras impressões

O sr. Darcy é belo e rico; no entanto, essas qualidades não são capazes de torná-lo agradável. Diferentemente do melhor amigo, o encantador sr. Bingley, ele é tido como um inglês arrogante e esnobe. Podemos observar esse fato quando ele desperta a ira da segunda filha mais velha da família Bennet, Elizabeth, durante um baile na região de Meryton. Ao ser indagado por Bingley do porquê de não convidar a irmã de sua nova pretendente, a adorável Jane, para ser seu par em uma dança, ele descreve Lizzy como “tolerável, mas sem beleza suficiente para tentar-me”, e ainda se diz indisposto “a dar atenção a moças que são desprezadas por outros homens”. O comentário, ouvido sorrateiramente pela protagonista, faz com que ela passe a nutrir uma imensa repulsa pelo rapaz.

Portanto à primeira vista, o ódio de parte dos leitores por Darcy é justificável. Ao contrário da maioria dos mocinhos que conhecemos em filmes e livros, a primeira aparição do herói não nos faz torcer imediatamente por tal romance; muito pelo contrário: nos compadecemos por Elizabeth, sentindo o mesmo menosprezo que ela. Essa empatia imediata é, provavelmente, resultado do gatilho emocional provocado pela situação: quem de nós nunca ardeu com a ferida causada por uma rejeição? Como Lizzy desabafa posteriormente para a amiga, a srta. Lucas, “eu perdoaria facilmente o orgulho de sr. Darcy se ele não tivesse mortificado o meu”.

Orgulho e Preconceito (2005)
A partir de então, Jane Austen é encarregada de um trabalho extremamente desafiador: fazer com que nos afeiçoemos a Darcy. Ainda no começo da história, reconhecemos a transformação das primeiras impressões do personagem diante da protagonista. De repente, ele começa a se interessar pela moça, mas tal sentimento é subjugado por outro: a vergonha de estar atraído por alguém tão “inferior”.

O constrangimento é alimentado pelas pessoas em sua volta. Caroline Bingley, irmã vaidosa de sr. Bingley, ao notar o interesse de Darcy pela srta. Bennet, não hesita em ridicularizá-lo, afirmando ironicamente que ele “terá uma encantadora sogra e naturalmente ela há de estar sempre em Pemberley [propriedade de sr. Darcy] consigo”. De fato, a sra. Bennet, conhecida pelos seus “pobres nervos”, não é exatamente a representação de uma mulher elegante: afobada e imatura, ela assume o núcleo cômico da obra. Não só isso, mas todos os Bennets estavam fora dos padrões da época. As filhas mais novas frequentavam os mesmos eventos que as mais velhas e, ao contrário das famílias tidas como respeitosas, os pais nunca haviam assumido o papel de educadores. Em vez disso, nos deparamos com uma mãe espalhafatosa cujo único objetivo de vida é casar as filhas, e um pai indiferente que, apesar de amá-las, acredita que todas as mulheres em sua volta são ignorantes.

Essa é, portanto, uma das razões de Darcy lutar contra tal sentimento: como alguém de tal renome, dono de uma renda de 10.000 libras ao ano e sobrinho de Lady Catherine, uma das aristocratas mais importantes do país, seria capaz de acolher uma família como aquela? 

O primeiro pedido de casamento 

A atração que Darcy sente por Lizzy não deveria causar desconforto, mas é angustiante. E é justamente isso que torna o desenvolvimento do casal tão interessante. Austen deixa claro, de forma crítica, que a aflição sentida por ele também é uma consequência do preconceito e do contexto familiar em que ele sempre esteve inserido. 

Ao passo que nos aprofundamos na história, somos convidados a mergulhar na personalidade de Darcy, observando as dificuldades em deixar de lado seus privilégios e os julgamentos da família em prol do amor. Não é à toa que quando finalmente se declara, ele se expressa de uma forma intensa e, até mesmo, violenta. Elucidando que as razões do seu coração não condizem com as de sua mente, ele diz que:

“em vão tenho lutado comigo mesmo; nada consegui. Meus sentimentos não podem ser reprimidos e preciso que me permita dizer-lhe que eu a admiro e amo ardentemente.”

Austen ainda acrescenta: 

“ele não falava com mais eloquência da sua ternura do que do seu orgulho. O sentimento da inferioridade de Elizabeth, do rebaixamento que aquele amor constituía, os obstáculos de família que a razão sempre opusera à inclinação foram descritos com um ardor que parecia devido ao seu amor-próprio ferido, mas que recomendava muito pouco as suas pretensões.”

Aqui, o orgulho assume de novo um dos papéis mais importantes no romance. Até em seu momento mais vulnerável, Darcy ainda agia com imodéstia. Sem contar que suas emoções vieram à tona em uma ocasião nada propícia: poucos instantes antes da declaração, Lizzy descobre o plano dele em afastar Bingley de Jane. A má opinião da protagonista ainda é influenciada por uma história que ouviu do afilhado do pai de Darcy, o soldado George Wickham, em que ele acusa Darcy de conspirar contra ele, impedindo que ele recebesse sua parte da herança da família por mero ciúme.

Ofendida e consumida pela raiva de ver que o homem em sua frente era o motivo da infelicidade de sua irmã mais querida, ela o rejeita, concluindo que ele era o último homem no mundo com o qual ela se casaria.

Até então, é compreensível constatar que estamos caminhando em direção a um relacionamento conflituoso, movido por sentimentos intensos demais para serem expressos de forma racional. Entretanto, além de ser injusto julgar o casal somente com base na primeira parte do livro, é importante lembrar que essa é a intenção de Austen desde o princípio. A autora procura testar a capacidade de análise de seu leitor e fazê-lo refletir sobre seus próprios preconceitos. A essa altura da narração, você se pergunta quem em sã consciência gostaria de se casar com um homem tão arrogante e insensato como Darcy; mas ao passo que a história evolui, observamos outras características do nosso herói que nos fazem reavaliar esse pensamento. Essa reconsideração começa pela carta que ele envia a Lizzy, justificando suas ações (até então, julgadas como incoerentes). 

A primeira explicação oferecida por Darcy é a respeito do afastamento de Bingley e de Jane. Desde que os rumores do casamento entre eles havia começado, Darcy passou a observar com atenção Jane e suas intenções, chegando à seguinte conclusão:

"Fiquei convencido de que embora ela aceitasse as atenções de Bingley com prazer, não as provocava porque participasse do mesmo sentimento. Quanto a este ponto, se a senhora não se enganou, enganei-me eu. Como conhece melhor a sua irmã, a última hipótese parece ser mais provável."

A partir desse trecho, é possível compreender que Darcy não é a representação humana do orgulho, como Austen nos fez acreditar. Na realidade, ele não hesita em assumir a responsabilidade de seu erro, deixando claro que ele havia se enganado sobre as atitudes de Jane e que estava arrependido. Além disso, o herói revela outros motivos que o incitaram a influenciar Bingley a cortar laços com a srta. Bennet: o comportamento problemático das três irmãs mais novas de Lizzy, de sua mãe e de seu pai. 

“Acrescentarei apenas que os fatos que se passaram naquela noite confirmaram a minha opinião sobre todas as pessoas em questão e fortaleceram a minha resolução de proteger o meu amigo de uma aliança que eu considerava a mais desastrada.”

Talvez as ações de Darcy não tenham sido as mais amigáveis possíveis, mas partiram de uma prioridade nobre: preservar o bem-estar do melhor amigo. Seu julgamento foi errôneo, é claro, e acabou causando o sofrimento de mais de duas pessoas; ainda assim, Darcy não quis afastar o casal pela diferença entre suas classes sociais, como Lizzy presumia, e sim porque já havia visto Bingley de coração partido antes e faria de tudo para evitar que isso acontecesse novamente. Outra atitude nobre do rapaz é revelada logo em seguida, em sua explicação a respeito da acusação feita pelo sr. Wickham. Somos surpreendidos pela revelação de que o soldado é, na realidade, um aproveitador que, inclusive, havia abusado da ingenuidade da irmã de Darcy, a querida Georgiana.

“Pode bem imaginar como me senti e como agi. A fim de não prejudicar a reputação da minha irmã e não ofender os seus sentimentos, abstive-me de qualquer ato de represália em público; mas escrevi ao sr. Wickham, que partiu imediatamente.”

Isso nos apresenta ainda mais qualidades do personagem: além de um bom amigo, ele também é, afinal, um excelente irmão, que ama e acolhe Georgiana como uma filha, sem repreendê-la ou julgá-la por comportamentos considerados extremamente impróprios para a época. Assim, e tal como Elizabeth, nossa percepção sobre o herói já está completamente transformada ao finalizarmos a carta.

As virtudes de Darcy seguem sendo expostas, de forma gradual e empolgante, nas páginas seguintes. A cada capítulo, nosso coração bate mais forte à menção do personagem e, quando percebemos, é como se a arrogância de Darcy, e seu espírito esnobe, nunca tivessem existido. E, de fato, nunca existiram. 

O sr. Darcy não é a pessoa mais sociável do mundo, o que o impede de ser capaz de iniciar conversas tão cativantes e agradáveis como a maioria dos personagens da obra. Sendo assim, nossa primeira reação é vinculá-lo a uma pessoa rude e fria, sem que percebamos o quão comum é a sua introversão, mesmo em uma sociedade do século XIX. Então nos damos conta de que não só os moradores de Hertfordshire, mas nós, enquanto leitores, formamos um preconceito sobre o personagem. Esse aspecto é o que torna a história, e sua autora, tão genial.

De repente, nem mesmo a diferença entre as classes sociais entre Elizabeth e Darcy parecem aborrecê-lo. Observamos isso durante a crise familiar dos Bennets, quando Lydia foge para se casar com sr. Wickham. Sr. Darcy deixa sua boa reputação de lado e ajuda, às escondidas, a família de Lizzy, ainda que houvesse sido rejeitado por ela e, tecnicamente, não devesse nada aos Bennets, que tanto insistiam no quão desagradável ele era. Essa ação surpreende não só Elizabeth, que finalmente se dá conta do espírito imenso do personagem, como quem está lendo, já que ainda estamos no processo de desconstrução do caráter taciturno que havíamos concluído que ele possui. 

O homem ideal

Pouco tempo depois da descoberta do altruísmo de Darcy, ele convence Bingley de que estava errado quanto a sua opinião a respeito de Jane, oferecendo total apoio ao amigo que, sem hesitação, pede a jovem em casamento. Pouco a pouco, vemos o herói não se limitar a um mero pedido de desculpas, mas, de fato, consertar seus erros e adquirir a confiança de Elizabeth. Quando finalmente ele se vê apto a pedi-la em casamento de novo, Darcy não está mais munido de orgulho e vaidade, enquanto Elizabeth, por sua vez, está completamente livre de seus preconceitos. 

Temos um clarão da evolução da comunicação entre o casal quando ele a questiona em relação à carta em que se defendeu, pedindo desculpas, pessoalmente, pela forma como havia se expressado. A resposta da protagonista nos confirma que o casal se encontra em uma nova fase – menos intensa e mais racional, mas rica em afeto:

“Não pense mais na carta. Os sentimentos da pessoa que a recebeu e da pessoa que a escreveu são agora tão diferentes do que eram, que todas as circunstâncias dolorosas relativas a ela devem ser esquecidas. E é preciso que aprenda um pouco da minha filosofia. Lembre-se apenas daquilo que lhe causa prazer.“

Quando Elizabeth, por fim, indaga por que ele havia apresentado uma atitude tão distante e fria com ela em seus primeiros contatos em vez de, simplesmente, ter conversado sobre suas intenções, a resposta de Darcy é simples, mas esclarecedora: “um homem menos apaixonado o teria feito”, confirmando que, assim como Lizzy, havíamos confundido a timidez do herói com aspereza. 

Com toda certeza, esse é o diálogo mais importante do livro e que refuta a pergunta apresentada no começo deste texto: afinal, seria o casal mais famoso da literatura “tóxico”? Caso a história houvesse encerrado em qualquer momento antes desse desfecho, seria possível responder que sim. Contudo o casal apresentado no começo do livro é completamente diferente do casal que o encerra.

A opinião um do outro é construída de forma lenta e, muitas vezes, dolorosa: eles erram infinitas vezes, tal como em um relacionamento qualquer. O Fitzwilliam Darcy das primeiras páginas é um homem impermeável e distante, com uma reputação a zelar e nada mais; enquanto Elizabeth Bennet é uma jovem desvanecida, capaz de jurar ódio eterno por uma pessoa que nunca conversou apenas por causa de um comentário que ouviu em uma festa. São pessoas imaturas e, ironicamente, tão parecidas que tornam uma comunicação impossível de ser estabelecida. 

Em um cenário situado nos anos 1790, quase 300 anos antes do surgimento das redes sociais, não há como julgar a mudança de pensamentos de um e do outro como tóxica. Nesse contexto, as pessoas baseavam suas opiniões somente nos breves encontros que tinham umas com as outras. Lizzy não possuía o acesso a um perfil expondo os gostos e as ideologias de Darcy: ela sabia sobre eles pelo pouco que observava em sua frente, por meio de conversas com vizinhos e por diálogos curtos. Sendo assim, foi necessário tempo e paciência para que ele a conquistasse. 

Outro ponto que é interessante nos atentarmos é a reação de Darcy ao ser rejeitado. Diferentemente do que as mulheres em pleno século XXI estão acostumadas ao dizer um "não", ele se desculpou e se afastou, enviando apenas uma carta para se explicar. Não houve insistência, nem agressividade. Ele compreendeu que Lizzy necessitava de seu próprio espaço e tempo para absorver as novas informações ao seu respeito; tanto que, quando se viram novamente, o contato foi estimulado por ela, não por ele. E o quão irônico é saber que algumas das razões que, anteriormente, julgávamos como seus maiores defeitos (a forma que ele observa mais do que fala; que se afasta quando se sente intimidado; que prefere resolver as coisas silenciosamente em vez de se vangloriar por elas) é o que o torna o "homem perfeito" aos olhos de tantos leitores? 

Apesar de muitos acreditarem que ela é mais uma idealização do amor, a história de Orgulho e Preconceito retrata o nascimento de tal sentimento de uma forma real e única. Não há amor sem altos e baixos; falhas e acertos; problemas e soluções. Nenhum relacionamento é perfeito, mas basta duas pessoas reconhecerem seus defeitos e qualidades e, apesar deles, se respeitarem para fazê-lo dar certo.




Arte em destaque: Caroline Cecin 

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