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Kafka: A Metamorfose e a agonia do ser


Durante toda a sua vida, Franz Kafka foi um estrangeiro. Como parte de uma família judia nos idos do Império Habsburgo, sua infância e juventude foram marcadas pelo antissemitismo que crescia na Europa do século XX. Naquela época, as tensões que conduziriam ao nazismo já borbulhavam no continente, tragando consigo famílias como a de Kafka, que não se encaixavam plenamente no ambiente cultural local.

Dentro de seu próprio lar, Franz Kafka também foi um estrangeiro. Em uma longa carta escrita ao seu pai, publicada postumamente como Carta ao pai, Kafka revelou detalhes de uma convivência familiar traumática, que muito impactou sua carreira e vida pessoal. Ao se referir ao pai, Kafka afirmou:

“Eu teria sido feliz por tê-lo como amigo, chefe, tio, avô, até mesmo (embora mais hesitante) como sogro. Mas justo como pai você era forte demais para mim, principalmente porque meus irmãos morreram pequenos, minhas irmãs só vieram muito depois e eu tive, portanto, de suportar inteiramente só o primeiro golpe, e para isso eu era fraco demais.”

Enquanto Kafka era um jovem introspectivo, com tendências à contemplação artística, seu pai era um homem de negócios, dotado de um temperamento dominante, grande força física e um espírito crítico inabalável. Sua incapacidade de entender as inclinações artísticas do filho frequentemente resultavam em brigas, muitas das quais contribuíram para abalar o relacionamento de Kafka com sua família. 

“Se eu queria fugir de você, tinha também de fugir da família, até de minha mãe. Na realidade sempre era possível encontrar nela proteção, mas só em relação a você. Ela o amava demais e lhe dedicava demasiada fidelidade para que, na luta do filho, pudesse ter por muito tempo um poder espiritual autônomo.”

Pressionado pelo pai, que não aprovava seus intentos artísticos, Franz Kafka seguiu o caminho do direito, eventualmente assumindo um cargo numa companhia de seguros. Para Kafka, o trabalho que exercia era um mal necessário, uma mera resposta à sociedade que lhe exigia um posicionamento perante as responsabilidades e as expectativas da família. Kafka aproveitava todo o seu tempo livre para desenvolver seus escritos e dedicar-se à leitura. Foi assim que ele desenvolveu algumas de suas maiores obras.


Em termos pessoais, Franz Kafka sofreu durante toda a vida com a baixa autoestima, especialmente em relação ao seu corpo. Segundo especialistas, Kafka apresentava sinais de anorexia nervosa e outros transtornos alimentares. Sua saúde era notavelmente frágil, especialmente no que dizia respeito ao seu diagnóstico de tuberculose, ainda na juventude. Como resultado, Kafka sentia-se constantemente envergonhado pelo seu aspecto magro e doente.

Todos esses fatores o levaram a desenvolver uma certa aversão pelo sexo. Kafka frequentemente associava o sexo à impureza, alternando entre sentimentos ambíguos de culpa e luxúria, medo e desejo. A relação complexa de Kafka com a própria sexualidade resultou numa vida sentimental desregrada e inconstante, marcada por grandes decepções e abandonos. Seus curtos relacionamentos envolveram desde noivados desfeitos a casos de bordel. Em seus quarenta anos de vida, ele nunca se casou.

Em certos termos, Kafka também era um estrangeiro em seu próprio corpo. A inadequação que sentia não se limitava somente à sua cultura ou seu estranhamento familiar, mas também ao seu próprio eu. Kafka não se identificava com o homem que via no espelho, e inspirado (ou atormentado) por essa disforia, ele concebeu algumas de suas maiores obras.

Os escritos de Kafka frequentemente apresentavam temas de isolamento, burocracia, surrealismo, culpa e alienação. Sua obra atendia majoritariamente aos sentidos, proporcionando um clima opressor capaz de tragar o leitor para o interior de seus universos sombrios. O estilo peculiar de seus livros chegou a inspirar o adjetivo “kafkiano”, relativo a tudo que possui uma atmosfera de pesadelo ou absurdo.

Dentre seus trabalhos mais famosos, A metamorfose destacou-se por apresentar o horror corporal de Gregor Samsa, o homem transformado em inseto. Por vezes grotesca, por vezes tocante, a narrativa de Kafka permite ao leitor encaixar-se nas circunstâncias absurdas da personagem, sentindo na pele a agonia e a solidão de Gregor. Trata-se de um texto pesado, reflexivo e melancólico, cujo conceito serviu de inspiração para muitas obras e teorias posteriores.

Assim como boa parte das obras de Kafka, A metamorfose não possui uma única via interpretativa, permitindo ao leitor projetar sua visão pessoal no texto. Algumas leituras interpretam as circunstâncias de Gregor Samsa como uma crítica às estruturas hierárquicas da família e da sociedade. Outras veem o livro como uma metáfora para a própria vida de Kafka e sua relação complexa com o pai. Já algumas visões mais modernas enxergam uma possível associação entre a transformação física da personagem e as mudanças (e crises) relacionadas à sexualidade.

Há, porém, uma interpretação particular de A metamorfose que relaciona a saga de Gregor Samsa à agonia pessoal de Kafka e de muitas outras pessoas que, assim como ele, sentiam-se estrangeiras em si mesmas. A essa agonia particular, cujas transformações por vezes roubam a voz e a identidade de suas vítimas, chamamos depressão.

A agonia do ser


Definida como uma doença psiquiátrica crônica e recorrente, a depressão é caracterizada pela presença persistente de sentimentos de amargura ou desencanto. Embora a tristeza seja comum à experiência humana, o desânimo provocado pela depressão é profundo, prolongado e independente. Em geral, os sintomas podem vir acompanhados de distúrbios do sono, mudanças de apetite (ganho ou perda de peso), dificuldade de concentração, alteração da libido e fadiga.

Em termos gerais, a depressão é como uma lente pela qual o indivíduo enxerga a vida. Sua visão é obscurecida pela constante melancolia, normalmente associada à baixa autoestima e à ansiedade. Essa melancolia conduz ao esvaziamento progressivo das experiências e ao constante sentimento de solidão, que por sua vez afetam a relação do indivíduo com sua família, com seus amigos, com seu trabalho e até mesmo com o próprio corpo. Diante da depressão, mesmo os momentos mais felizes se tornam insignificantes, e as tarefas diárias, inúteis.

A depressão requer acompanhamento médico, muitas vezes associado ao uso de antidepressivos. Exercícios físicos, psicoterapia e o uso de medicamentos ansiolíticos também contribuem para a recuperação do paciente. O processo é longo, por vezes incerto, e nem sempre linear. Por isso, pessoas que enfrentam a depressão necessitam de uma rede de apoio, seja de amigos ou de familiares, que as ajudem a persistir no tratamento. A falta de apoio e cuidados pode contribuir para a piora dos sintomas ou até mesmo, em casos mais graves, ao suicídio.

Infelizmente, embora a depressão seja uma doença cada vez mais comum na sociedade, ainda persistem estigmas que prejudicam o processo de diagnóstico e tratamento. Pessoas com depressão frequentemente enfrentam dificuldades de comunicação e julgamentos quanto ao seu estado mental, especialmente no ambiente de trabalho. Muitas também são isoladas ou ignoradas por familiares que não compreendem suas necessidades emocionais.

Nesse sentido, a agonia do ser, do existir enquanto ser humano, se revela um processo de isolamento mental. A depressão não retira o indivíduo da sociedade, mas retira a sociedade de dentro do indivíduo, ao ponto de torná-lo solitário em meio às multidões. Inverter esse processo é trazer a pessoa para dentro da sociedade novamente. Mas o que ocorre quando o processo não se completa? O que ocorre quando a metamorfose torna-se irreversível?

A metamorfose

“Quando Gregor Samsa, certa manhã, despertou de sonhos intranquilos encontrou-se em sua cama metamorfoseado em um inseto monstruoso.”

No início de A metamorfose, Gregor Samsa, um caixeiro-viajante, descobre-se metamorfoseado num inseto. Sua primeira reação é a mais pura indiferença. A consciência de sua transformação apenas o incomoda na medida em que o impede de dormir virado para o lado direito, seu lado favorito.

De certa maneira, Gregor parece estar num estado de negação ou, ao menos, convencido de se tratar de um sonho. Conforme confronta seu novo corpo, ele apresenta uma estranha combinação de repulsa e indiferença, que em nada se assemelha à reação comum que se poderia esperar de alguém em sua situação. Não só isso, mas a primeira preocupação real de Gregor diante de sua transformação é o trabalho:

“O que aconteceria se ele alegasse que estava doente? Seria deveras embaraçoso e suspeito, pois Gregor nunca tinha estado doente durante seus cinco anos de serviço. Com certeza o chefe iria até lá com o médico do seguro-saúde, faria acusações aos pais por causa do filho indolente e contestaria todas as objeções aconselhado pelo próprio médico, para quem há apenas seres humanos totalmente saudáveis, mas avessos ao trabalho.”

Logo nas primeiras páginas, vemos alguns detalhes da convivência familiar na casa dos Samsa. Há cinco anos, Gregor assumiu uma posição paterna dentro de casa, trabalhando para sustentar o pai, a mãe e Grete, sua irmã mais nova. Seu trabalho como caixeiro-viajante envolve viagens constantes que o privam de uma vida social, do convívio familiar e até mesmo do desenvolvimento de seus próprios hobbies. De certa forma, a indiferença de Gregor reside em seu completo descolamento da realidade.

O primeiro conflito do livro gira em torno da porta do quarto, um objeto que simboliza o isolamento de Gregor. Diante dos acontecimentos incomuns, Gregor não se levanta no horário usual, provocando suspeitas em sua família. Um a um, seu pai, sua mãe e sua irmã batem na porta na expectativa de que Gregor apareça:
“— Gregor, abra, eu imploro.

Contudo, Gregor nem sequer pensou em abrir, mas sim louvou o cuidado adquirido durante as viagens de também manter trancadas as portas de casa durante a noite.”

Como caixeiro viajante, constantemente em movimento, seu hábito de trancar as portas dos quartos de hotéis transferiu-se para dentro de casa. Ainda que inconscientemente, Gregor Samsa já se isolava de sua família antes da metamorfose. Ao trancar a porta do seu quarto, um ato prudente, ele estava demonstrando que mesmo estando em casa, um lugar onde ele deveria se sentir seguro, ele não tinha paz.

Diante da insistência para que deixe o quarto e vá trabalhar, Gregor parece condenar sua própria “preguiça”, forçando-se para fora da cama ao custo de alguns ferimentos em seu corpo. Embora esteja numa situação inóspita, Gregor continua a se sentir culpado por não poder exercer o papel que lhe foi imposto pela sociedade e pela família.


“— Não fique aí na cama sem fazer nada — disse Gregor a si mesmo.”

Quando seu gerente aparece, na mesma manhã, para questioná-lo pela ausência, vemos que seu estado é tratado como mera indisposição ou falta de ânimo. Curiosamente, o gerente aponta para a mudança de Gregor como algo repentino, sem precedentes: “Falo aqui em nome de seus pais e de seu chefe e peço ao senhor, com toda a seriedade, um esclarecimento imediato e direto. Estou estupefato, estupefato. Considerava o senhor uma pessoa calma, sensata, e agora de repente o senhor parece querer começar a exibir estranhas manias”.

O que as personagens parecem ignorar é que a raiz da depressão de Gregor reside no fato de que ele trabalha demais, vive com uma família que ele precisa sustentar sozinho, e ainda enfrenta uma dívida crescente por causa das ações do seu pai. Gregor carrega o fardo emocional e financeiro da família, não possui conexões emocionais significantes e não encontra em sua própria casa um local de segurança.

Sua transformação em inseto não é a causa, mas a consequência de um processo de isolamento que já há muito o consumia. Sua indiferença em relação à transformação revela a completa irrelevância de seu próprio corpo ou de seu próprio bem-estar. Gregor existe para o benefício dos pais e da sociedade, e não vê em si mesmo um valor intrínseco. Nisso reside a razão pela qual, diante de sua transformação, sua primeira preocupação é o trabalho e o possível transtorno que sua ausência poderia causar à empresa.

O descolamento de Gregor se aprofunda ainda mais quando, pressionado por sua família, ele tenta se comunicar. Inicialmente, sua voz é inteligível, ainda que ligeiramente alterada pelo novo corpo. Porém, eventualmente, a voz de Gregor perde sua característica humana, tornando-se nada mais do que um pio:


“— Os senhores entenderam uma única palavra? — perguntou o gerente aos pais. — Ele não está mesmo nos fazendo de bobos?

— Pelo amor de Deus — gritou a mãe às lágrimas —, talvez ele esteja gravemente doente, e nós o estamos atormentando. Grete! Grete! — berrou em seguida.

— Mãe? — chamou a irmã, do outro lado. Elas se comunicavam através do quarto de Gregor.

— Você precisa ir imediatamente ao médico. Gregor está doente. Busque rápido o médico. Você ouviu Gregor falando agora?

— Era uma voz de bicho — disse o gerente, com voz notavelmente baixa se comparada ao grito da mãe.”

Assim como frequentemente ocorre com pessoas que sofrem de depressão, a capacidade de comunicação é aos poucos perdida. Para alguém que não se encontra nas mesmas circunstâncias, compreender os dilemas e as dores de uma pessoa deprimida é difícil, por vezes desafiador. Exige, acima de tudo, empatia e disposição, fatores que nem sempre estão presentes nas relações familiares ou de amizade.

Ao deixar o quarto, finalmente, Gregor Samsa espera encontrar a compreensão de sua família. Porém, sua aparência aterroriza a todos. Sua mãe, especialmente, entra em pânico. Seu desespero a impede de ouvir o pedido de ajuda de Gregor: “— Mãe, mãe — disse Gregor, em voz baixa, olhando para ela de baixo para cima”.

Gregor é violentamente espantado pelo pai, até voltar para o seu quarto, onde passa a residir permanentemente. A partir desse momento, sua existência dentro de casa se torna um tormento para a sua família. Seja pela sua natureza, seja pelos novos hábitos que o acompanham, Gregor é fonte de repulsa, de pena, de dor, de lágrimas e de gritos. Sem poder trabalhar, ele perde sua utilidade como o provedor da casa e, por consequência, perde o seu valor aos olhos dos pais. No momento em que mais precisa do apoio familiar, Gregor encontra o abandono: “Antes, quando as portas estavam trancadas, todos queriam entrar para ter com ele; agora que ele havia aberto uma porta, e as outras tinham sido obviamente abertas durante o dia, ninguém mais entrava, e as chaves também estavam do lado de fora”.

Esses fatores revelam as relações disfuncionais da família Samsa. Ao longo da narrativa, os membros da família ultrapassam constantemente as fronteiras entre pai-filho e mãe-irmã. É um ambiente de confusão, de desconfiança, de transitoriedade e interesse. Com o passar do tempo, Grete assume a posição de Gregor, tomando a frente como provedora da casa e exercendo um papel quase materno para o irmão. Assim como Gregor foi o “pai” da casa por um período de tempo (e foi bem tratado por isso), Grete se tornou a “mãe” da casa.

Ao se deparar com o desprezo de seus familiares e o desgaste de sua irmã mais nova, a quem ele era muito apegado, Gregor se vê dominado pela culpa e pela revolta. Por um lado, ele ressente a si mesmo pelo fato de que já não pode mais prover para a família. Por outro, ele amarga os relacionamentos rígidos e disfuncionais de sua família, que resultam em maus tratos, ignorância, agressões e ameaças.

A comida eventualmente se torna um meio de protesto para Gregor. Antes um homem de apetite largo, ele passa a recusar o pouco alimento que sua irmã lhe dá, ao ponto de perder o apetite completamente:

“Gregor já não comia quase mais nada. Somente quando por acaso passava pela refeição preparada, mordia um pouco por diversão, conservava-a ali na boca por horas e cuspia depois a maior parte.”

Da mesma maneira, Gregor deixa de dormir, flutuando num estado confuso de memórias e devaneios durante a maior parte do dia: “Gregor passava noites e dias quase completamente sem dormir. Às vezes pensava em assumir de novo, na próxima abertura da porta, os assuntos da família exatamente como antes […]. Então, perdia o ânimo de cuidar de sua família, simplesmente se enchia da raiva pelos maus-tratos e, apesar de não conseguir imaginar nada que lhe gerasse apetite, fazia planos sobre como poderia chegar à despensa para lá pegar o que lhe era devido, mesmo que não tivesse fome alguma”.

"The Unfortunate Mr. Samsa", de Rich Johnson

Sua abstinência de comida e sono não só refletem os dilemas enfrentados pela depressão, como também denunciam uma necessidade pungente de Gregor: o alimento emocional. Gregor sente uma fome específica que não pode ser saciada pela comida que sua irmã lhe dá ocasionalmente, mas pela atenção, pelo carinho e pelo calor humano que somente a presença da sua família pode lhe proporcionar. Ainda assim, sua necessidade não é atendida e sua voz, ignorada.

A narrativa de A metamorfose se encerra de forma trágica. Com a falta de recursos e o crescimento das dívidas, a família Samsa acolhe três inquilinos em sua casa. Durante um jantar, Grete toca o seu violino, algo que Gregor apreciava muito no passado. Movido pela música, Gregor ousa deixar o confinamento em seu quarto para apreciar o talento da irmã. Esse, sim, era o tipo de conexão que ele desejava: “Seria ele um animal, considerando que a música o emocionava tanto? Era como se o caminho até o alimento desejado e desconhecido se abrisse perante ele”.

No entanto, sua aparição causa a dispersão dos inquilinos e uma confusão sem precedentes. Diante da possibilidade de perder os meios de sustentar a família, e exausta dos cuidados de seu irmão, Grete se prontifica a tomar a decisão que nenhum de seus pais ousou tomar:

“Não quero dizer o nome do meu irmão na frente desse monstro e, por isso, eu digo: precisamos dar um jeito de nos livrarmos dele. Tentamos o que é humanamente possível para cuidar dele e aguentá-lo; acredito que ninguém poderá levantar contra nós nem mesmo uma ínfima acusação. […] Quando se precisa trabalhar tão duro quanto nós todos, não é possível ainda aguentar em casa esse tormento eterno. Eu não suporto mais.”

Para Grete, Gregor não é mais o seu irmão. É interessante apontar sua escolha de linguagem: “não quero dizer o nome do meu irmão na frente desse monstro”. Para aliviar a culpa sobre seus ombros, Grete desumaniza Gregor: “Mas como isso pode ser Gregor? Se fosse Gregor, já teria entendido há muito que a convivência de pessoas com um animal desses não é possível e teria partido por vontade própria”.

Gregor ouve as palavras de sua irmã. Mais do que isso, ele as absorve e as aceita como a verdade inexorável de sua alma. A metamorfose não era um fardo apenas para a sua família, mas para a sua própria existência. Era uma agonia constante do despertar num corpo estranho, do desejar o afeto negado, do ansiar por algo sem nome, ainda sem forma em sua mente. Por isso, quando confrontado, Gregor, cujo corpo já definhava pela fome, aceita sua morte: “O corpo inteiro lhe doía, mas para ele era como se as dores fossem ficar aos poucos mais e mais fracas, até por fim desaparecerem por completo. […] Recordava-se da família com afeição e amor. A sua opinião de que precisava desaparecer talvez fosse ainda mais decisiva do que a da irmã. […] Então, sua cabeça se afundou sem que fosse de sua vontade, e das ventas correu seu último e fraco suspiro”.

A morte de Gregor parece tirar um grande fardo de cima de sua família. Após seu falecimento, um forte alívio invade sua irmã, seu pai e sua mãe. Os que antes discutiam, sofriam e choravam, parecem cheios de ânimo novamente. De certa forma, todos ansiavam por aquele momento, embora não ousassem desejá-lo em voz alta.

Além da dor


Franz Kafka não era afeito aos finais felizes. Pelo contrário, seus livros raramente traziam uma narrativa tradicional. Por isso, não é de se estranhar que A metamorfose tenha uma conclusão tão melancólica. Não há arrependimento, aprendizado ou mensagem de esperança. Grete, a irmã de Gregor, transforma-se numa mulher forte e independente, apenas para assumir o papel que um dia foi de seu irmão. Ela será a provedora da casa, como o irmão um dia foi.

Porém, se é possível enxergar A metamorfose pelo viés da depressão, e retirar de sua narrativa exemplos metafóricos da agonia do ser, também é possível falar de uma vida além da dor. Como mencionado anteriormente, a depressão não consiste necessariamente no processo de isolamento físico, mas sim no processo de isolamento mental e emocional do indivíduo. Quando a sociedade deixa de figurar na mente de uma pessoa, quando sua percepção de si é perdida num mar de devaneios, a existência se torna dolorosa e sem sentido. Tal como Gregor Samsa, elas se tornam famintas de calor humano, atenção e propósito.

Sendo assim, para viver além da dor e inverter o processo de isolamento, é necessário proporcionar o alimento que falta aos que agonizam a existência: o amor. Não se trata apenas de trazer a pessoa para dentro da sociedade, mas de fazê-la se sentir amada, fazê-la se sentir parte de uma família, de um grupo, de uma estrutura maior. Fazê-la, acima de tudo, ver a beleza daquilo que se perdeu nos dias e meses de isolamento físico ou emocional, rompendo com as barreiras de comunicação que são levantadas pela depressão.

A metamorfose é reversível. Basta apenas que se abra a porta.
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Referências

  • A metamorfose (Franz Kafka)
  • Carta ao pai (Franz Kafka)
  • Structural elements in Franz Kafka’s The Metamorphosis (Scott Johnson)
  • Metamorphosis by Franz Kafka (Allan Beveridge)
  • Franz Kafka's "The Metamorphosis": Gregor's Mental Illness and the Impact of His Depression (Pam Mcelpran)
  • Depressão (Drauzio Varella)

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