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Entre Gatsby e Heathcliff: a classe que não chegou


O Morro dos Ventos Uivantes, único romance de Emily Brontë, foi publicado em 1847 e conta a sombria história entre Heathcliff e Catherine Earnshaw, que iniciam uma jornada repleta de amarguras, vinganças e obsessões marcadas por diferenças étnicas e de classe social. 

O grande Gatsby é publicado menos de cem anos depois do original de Brontë. Escrito por F. Scott Fitzgerald, a história vai se desenvolver a partir do ponto de vista de Nick Carraway, um jovem comerciante que se torna vizinho e amigo de Jay Gatsby, um milionário de passado misterioso conhecido por organizar grandes festas e por ostentar uma vida luxuosa. Considerado um self-made man - termo utilizado no contexto de crescimento econômico dos Estados Unidos nas primeiras décadas do século XX, em que homens saíam da pobreza e alcançavam a riqueza através de mérito próprio -, Gatsby era acusado por muitos de enriquecimento ilícito. Com o tempo, Nick descobre a paixão de Gatsby por Daisy, uma mulher com quem Jay havia se relacionado no passado. Determinado a impressionar a amada em sua nova fase através de sua fortuna e prestígio, O grande Gatsby é uma crítica ao "sonho americano" e ao materialismo exacerbado no início do século XX.

O Heathcliff do século XVIII, inglês e rural, encontra o Gatsby estadunidense em meados dos anos 1920, pós-Primeira Guerra Mundial, em um ponto comum às duas narrativas: no classismo patriarcal. Ambos se cruzam no momento em que percebem que a conquista de fortunas e propriedades não equivale à vitória. Catherine e Daisy são forjadas no patriarcado classista e também funcionam segundo suas demandas. Assim, não ficam à espera de serem compradas pelas riquezas conquistadas dos homens; ambas tendem a uma supervalorização da tradição que se expressa através de famílias abastadas e nomes reconhecidos socialmente.

Devoção à aristocracia 


O principal ponto de ambas as narrativas é o enriquecimento das personagens masculinas e a transformação da riqueza em um instrumento de conquista e controle das mulheres que desejam. Gatsby e Heathcliff adquirem fortunas quando nomes e tradição estabelecem famílias privilegiadas nas classes abastadas da sociedade.

Fitzgerald

A forma como o dinheiro chega até um indivíduo o define nessas sociedades divididas por classes. Aqui, há um moralismo patriarcal: as riquezas conquistadas pelos métodos duvidosos de Gatsby e Heathcliff são chocantes e colocam em dúvida suas morais e futuro; entretanto, a riqueza da aristocracia, baseada na desigualdade social e seus instrumentos, é fixada como o ideal. Nessa linha, Catherine e Daisy buscam sua segurança nos representantes desse sistema, onde estar com Heathcliff e Gatsby, respectivamente, significaria em algum momento a morte social.

Heathcliff e Gatsby ainda são marcados pelo espectro racial. Ser não-branco na Inglaterra do século XVIII é um dos aspectos de potência em O Morro dos Ventos Uivantes. E estar com ele, junto do racismo e da classe social não reconhecida, tiraria o prestígio social dado à família de Catherine. Já Gatsby é lembrado principalmente por Tom Buchanan, o marido de Daisy, que não pertence à linhagem aristocrática branca e europeia:

"- Autocontrole! repetiu Tom incrédulo. – Imagino que a última moda seja se sentar e deixar o senhor Ninguém, vindo de Lugar Algum, namorar sua mulher. Bom, se a ideia é essa, você não precisa contar comigo... Hoje em dia as pessoas começam torcendo o nariz para a vida familiar e para as instituições familiares, e depois mandam tudo para os ares, e os brancos se casam com o negros."

(O grande Gatsby, pág. 171, tradução: Cristina Cupertino)

A partir do momento em que ambas as personagens se negam a renunciar a aristocracia e a seus privilégios, essa atitude vira uma chave de obsessão por essas mulheres e, mais profundamente, por essa organização que elas representam. Conquistá-las seria conquistar um lugar nessa classe que os rejeitou; deixa de ser uma história de amor impossível e passa a ser sobre querer pertencer. A frustração de terem se dedicado a construir uma vida e personalidade em prol de conquistar as personagens femininas é o sentimento que permeia os romances de Brontë e Fitzgerald. Conseguir um lugar ao lado dessas mulheres seria superar um sistema bem estruturado e que não se prende às narrativas românticas e idealizadas: não conseguindo essa mobilidade, terminam com a sensação de não-pertencimento.

Emily Brontë

As expressões de divisões sociais e suas desigualdades na literatura são essenciais para compreendermos as sociedades e seus sistemas político-econômicos, bem como as possibilidades de reivindicação, destruição e reestruturação. Muito mais do que uma representação da realidade, essas obras são exemplos do pensar a função do texto literário e suas interações com o público, transformando ou provocando através de símbolos e reflexões sobre a realidade. Ultrapassando as questões psicológicas dos seres humanos, Emily Brontë e F. Scott Fitzgerald construíram obras dedicadas às relações humanas e aos sistemas que as construíram. 

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