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Nursery Cryme: o início da era de ouro de Genesis e a abertura de sua caixa de Pandora


Rock progressivo é uma experiência histórica, mágica, fantástica. É tanto amado quanto odiado, e precursor e antítese da pressa e caos do também excelente e propício punk rock, justamente porque o que não há no progressivo é pressa ou caos - a menos que sejam pressa e caos dentro de um tempo e conceito próprios. É o meu gênero musical favorito de todos os tempos, aparecido também no meu período histórico favorito, tendo seu início nos anos 1960 e ápice até meados da década de 1970, o que significa que teve um papel importante no movimento de contracultura de jovens do mundo inteiro.

Algumas das primeiras bandas - e as mais conhecidas mundialmente - tiveram como berço a Grã-Bretanha (Pink Floyd, Genesis, Yes, Jethro Tull, King Crimson, Emerson Lake and Palmer são algumas delas), o que diz muito da herança cultural europeia e características regionais que inspiraram várias de suas composições experimentais: personagens históricos, contos medievais e cavalheirescos (Rei Arthur, Rei Henrique VIII, bardos, menestréis, o germânico Flautista de Hamelin), literatura (Tolkien, Orwell, Verne, Tolstói), mitologia greco-romana, compositores eruditos de todos os tempos, além dos mais recentes jazz e blues. Não à toa suas músicas eram tão (nem sempre) longas e elaboradas: transbordavam referências, muitos instrumentos padrão, clássicos e inovações eletrônicas como mellotron, teremim, piano elétrico, além de performances técnicas e teatrais nos concertos ao vivo. Era uma obra de arte (alguns discos eram, de fato, opera rock ou conceituais) que contava e cantava histórias de várias formas, com shows visuais, instrumentais, encenados e recitados, e às vezes se apresentava até como trilha sonora cinematográfica, caso de Goblin e Keith Emerson nos giallos de Dario Argento.

Muitos discos importantes do gênero completam cinquentenário este ano. Optei por começar pela gênese: a formação de ouro da banda Genesis a partir de uma caixinha de música vitoriana amaldiçoada - The Musical box.

Genesis, 1971 (Collins, Rutherford, Banks, Gabriel e Hackett)
Old King Cole was a merry old soul,
And a merry old soul was he;
He called for his pipe, and he called for his bowl,
And he called for his fiddlers three.
Every fiddler he had a fiddle,
And a very fine fiddle had he;
Oh there's none so rare, as can compare,
With King Cole and his fiddlers three.


O Velho Rei Cole era uma alma velha e alegre,
E uma alegre e velha alma ele era;
Ele clamou por seu cachimbo, e clamou por sua tigela,
E clamou por seus três rabequistas.
Cada rabequista possuía uma rabeca,
E uma rabeca muito boa possuía.
Oh, não há nada tão raro que se compare,
Com Rei Cole e seus três rabequistas.

— Versão moderna de Old King Cole, cantiga de roda britânica, com primeiro registro por William King em 1708
Nursery Cryme é o terceiro disco de estúdio da banda inglesa Genesis, e o primeiro com o pai da Lily, o Phil Collins, como membro, assim como o guitarrista Steve Hackett, substitutos de John Mayhew e Anthony Phillips, respectivamente; é o disco que abre também o período da formação “clássica” da banda, com:

Mike Rutherford: baixo, guitarra acústica de 12 cordas e voz;
Peter Gabriel: vocal principal, bumbo, flauta e pandeireta;
Phil Collins: bateria, percussão e voz;
Steve Hackett: guitarra elétrica e guitarra acústica de 12 cordas;
Tony Banks: instrumentos de teclas (órgão, mellotron, piano, piano eletrônico), guitarra acústica de 12 cordas e voz. 

Gravado em agosto e lançado em novembro de 1971, quando todos os membros tinham entre 20 e 21 anos, é um dos discos clássicos do rock cheio de referências e composto em parte numa residência do século XVI, a Luxford House, que pertencia a Tony Stratton-Smith - dono do famoso selo Charisma Records, que lançou álbuns da banda desde esse disco até Invisible Touch, quando a gravadora fechou as portas em 1986. Tony faleceu em 1987.

A capa do disco já dá pistas de seu conteúdo: foi feita pelo pintor Paul Whitehead, numa vibe vitoriana que o grupo trazia como proposta. Quando os membros da banda viram o trabalho final, não acharam “vitoriano o suficiente”, o que fez Paul decidir por envernizar a obra com mel, para dar uma cara envelhecida de objeto do século anterior. O encarte também possui pequenas ilustrações que lembram o século XIX e representam cada canção, sendo que no vinil imita um álbum de fotografias de época. 

Paul Whitehead: Genesis Nursery Cryme, 1971. Frente e verso da capa.
O tema principal, o jogo de croquet que arranca cabeças é tratado na primeira e mais longa música do disco, a poderosa The Musical Box. No encarte há um pequeno e macabro conto vitoriano de Peter Gabriel que introduz a canção e explica o jogo de palavras da capa: Nursery Cryme se refere ao mesmo tempo à cantiga de ninar (nursery rhyme) e a um crime num quarto infantil, tendo uma dessas cantigas - Old King Cole - como personagem.
Enquanto o pequeno Henry Hamilton-Smythe jogava croquet com Cynthia Jane de Blaise-William, a doce e sorridente Cynthia levantou bem alto seu taco e, graciosamente, removeu a cabeça de Henry. Duas semanas depois, no quarto de Henry, ela descobriu sua estimada caixinha de música. Ela a abriu avidamente e, enquanto 'Old King Cole' começou a tocar, um pequeno espírito apareceu. Henry havia retornado - mas não por muito tempo, pois, enquanto permanecia no quarto, seu corpo começou a envelhecer rapidamente, deixando uma mente infantil em seu interior. Desejos de uma vida inteira surgiram através dele. Infelizmente, sua tentativa de persuadir Cynthia Jane a satisfazer seu desejo romântico levou sua babá ao quarto para investigar o ruído. Instintivamente, Nanny arremessou a caixinha de música na criança barbada, destruindo ambos.
Ainda com contribuição de membros anteriores, The Musical Box revela costumes tradicionais de uma elite no Reino Unido de outrora, como o ainda famoso croquet, sobrenomes pomposos, os quartos de criança e as babás, as caixinhas de música… Peter Gabriel se inspirou na propriedade do avô para ser cenário dessa trágica história, e o humor ácido, macabro, se voltava para a própria sociedade inglesa, nação imperialista impositora dos famosos “bons costumes” e um dos alvos dos jovens que se opunham a práticas conservadoras mundo afora.
Evocando a atmosfera de cantigas de ninar e de Alice no País das Maravilhas, a canção é quintessencialmente inglesa, se passa na Era Vitoriana e se compara a Edward Lear, apesar de o mundo de Gabriel ser muito mais bárbaro e perturbador. A frustração sexual de Henry tem claros paralelos com as percepções que Gabriel tinha da repressão difundida pela sociedade inglesa e a hipocrisia sexual que a acompanhava.

Genesis: a biography, p. 54
Essa união dos novos membros modificou bastante a banda. Hackett e Collins trouxeram grandes ideias, fazendo com que Banks investisse mais no mellotron, além de novas composições e técnicas - Hackett diz-se pioneiro do uso do tapping no rock progressivo, técnica presente em The Musical Box e The Return of the Giant Hogweed, e muito utilizada por Eddie Van Halen na década seguinte. Para Gabriel o rearranjo e as novas composições foram como dar um passo em direção a um lado mais sombrio da banda: “A step into the shade, if you like. There’s more sort of sun shining in Trespass, more sort of folky feels and outside stuff, and we’d [now] gone indoors on Nursery Cryme”.

Pela complexidade instrumental, ficou cada vez mais complicado fazer um show. Todos costumavam tocar sentados, já que envolvia muita concentração e troca de instrumentos por cada um dos artistas. Banks se dividia entre cordas e teclas, Rutherford tinha sua guitarra-baixo de dois braços, e Hackett ora estava na guitarra elétrica, ora na acústica. Gabriel, que era bastante tímido, passou a se maquiar e fantasiar durante as canções, representando como ator os personagens dos contos e, com suas introduções dignas de um menestrel, um flautista mágico, narrava suas fábulas ao público, que compreendia melhor o espetáculo. Foi assim, inclusive, que o conheci no Top Top MTV e me apaixonei à primeira vista: quando representou um jardineiro cortando grama em I Know what I like (in your wardrobe) no icônico e estonteante concerto de 1973. Em The Musical Box ele é Henry, e com uma máscara de ancião representa a maturidade precoce e bizarra do fantasma-menino.

Detalhe do encarte com a letra de The Musical Box

O disco ainda apresenta outras seis importantes canções:

For absent friends: “Looking back at days of four instead of two. Years seem so few”. Primeira contribuição escrita de Hackett e primeira canção cantada por Collins, atual vocalista da banda. Conta a história de duas viúvas indo à igreja rezar por seus pares; o que essa música tem de curta, tem de doce, amarga e marcante, como o luto e a vida: quando olhamos para trás, revisitamos a memória e sentimos saudade.

The Return of the Giant Hogweed: sabe os antigos exploradores botânicos? É deles que essa música fala. Mas de uma forma bem exagerada, voltando ao humor ácido que a banda ia adquirindo. Giant Hogweed é a planta tóxica Heracleum mantegazzianum, que causa queimaduras sérias na pele quando exposta ao sol, e às vezes demoram anos para sumirem as sequelas. A música fala de um desses viajantes vitorianos que trouxe o espécime da Rússia, mas a planta cresce como erva daninha por toda a Inglaterra, inclusive nos mais nobres e elegantes jardins, e é cantada não só como praga, mas como um monstro invencível imune a herbicidas.
Long ago in the Russian hills,
A Victorian explorer found the regal Hogweed by a marsh,
He captured it and brought it home.
Botanical creature stirs, seeking revenge.
Royal beast did not forget.
Seven stones: composta por Banks, tem um solo incrível e representa um velho sábio contando três parábolas distintas, mas que permeiam uma mesma moral, que versa sobre o acaso - “The old man’s guide is chance” -, que age em situações problemáticas de um funileiro, um capitão do mar e um fazendeiro.

Harold the barrel: aqui Gabriel e Collins em dueto cantam a história de Harold, um dono de restaurante que corta fora os pés, servindo-os com chá. Depois disso, sai correndo pela cidade e ameaça suicidar-se, criando caos e burburinhos: “He can’t go far”, “Hasn’t got a leg to stand on”. A música é contada pelo ponto de vista da opinião pública, bem fofoqueira e sensacionalista, e a história é tão absurda - baseada em In His Own Write, de John Lennon - que muitos fãs comparam com sketchs do seriado de humor Monty Python Flying Circus, que estava no ar na BBC na época - emissora citada na música pela mãe de Harold que, aflita, se preocupava não com a vida do filho, mas com a cena que estava fazendo, aparecendo todo sujo na televisão e desonrando o falecido pai. A música é um perfeito deboche dirigido à sociedade britânica e sua vida de aparências e cenas, humor ácido encorajado por Collins.

Harlequin: mais uma curta e delicada canção, dessa vez composta por Mike, ainda antes de Anthony Phillips sair da banda. Ele então compôs para ser tocada em dupla, mesmo tendo perdido seu parceiro de cordas. Parece que não participou da seleção do novo guitarrista (Steve), mas se deram bem depois. Harlequin chega a ser onírica; é linda, mas Rutherford é imensamente crítico das próprias composições. Novamente Gabriel e Collins cantam juntos:
All, always the same,
But there appears in the shades of dawning,
Though your eyes are dim,
All of the pieces in the sky.
The Fountain of Salmacis: a fonte de Salmacis é o mito grego de Hermafrodito, contado por Ovídio na obra Metamorfoses. O rapaz era filho de Hermes e Afrodite - os romanos Mercúrio e Vênus - e foi criado pelas ninfas do Monte Ida, em Creta. Muito bonito, aos quinze anos estava pelas redondezas de Halicarnasso (atual Bodrum, na Turquia). Lá, parou numa fonte, onde vivia a ninfa náiade Salmacis, que se apaixonou perdidamente por ele. Mas o amor não foi recíproco, então ela o abraçou enquanto ele se banhava na fonte e pediu aos deuses que os deixassem viver unidos para todo o sempre. Acatando o pedido literalmente, os deuses olimpianos uniram seus corpos em simbiose, transformando-os num só. Hermafrodito, a partir de então, tornou-se intersexo, e não era mais possível distingui-lo de Salmacis. Por vingança, determinou que quem se banhasse naquela fonte teria o mesmo destino.
Unearthly calm descended from the sky
And then their flesh and bones were strangely merged
Forever to be joined as one.
Essas histórias, à primeira vista, parecem e podem ser pintadas despretensiosamente, têm uma máscara alegre e divertida, uma maquiagem jovial que esconde caos e desespero. Da perspectiva sonora, é a mesma coisa: músicas longas ou curtas, que se você não ouve com atenção quase passa batido. Mas se você parar para sentir, assistir ao espetáculo, pode ver-se mergulhado em profundezas num clímax de deleite e agonia, como o Jardim das delícias terrenas de Hieronymus Bosch (por que não?). E é essa leveza das águas límpidas - que escondem a potência de um maremoto - que faz a Era de Ouro de Genesis ser gigante, ou titânica, já que falamos tanto de mitos.

Escolhi para vocês a versão ao vivo de 1973, que é o concerto mais bonito que já vi. Play me my song. Now, now, now, NOW!

Referências




Texto: Helen Araújo 
Helen Araújo
Filha de paraibanos nascida en São Paulo em 1992. Historiadora e artesã com espírito setentista, escreve sobre tudo, especialmente música, símbolos, mitos e migrações. Quando não escreve no Querido Clássico e Um Velho Mundo, fabrica onde escrever: cadernos no Estúdio São Jerônimo.

Comentários

  1. Nem precisa comentar, essa época foi grandiosa. Até hoje me emociono fortemente ao ouvir esse e os três discos seguintes. As nuances, as histórias, as surpresas surgem mesmo hoje, 50 anos depois.

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  2. Olá Helen, legal teres feito algo caprichado em meio a tanta mediocridade. Sou músico e tenho CD, pesquise. Dê uma olhada tambén no que Keith Emerson do ELP escreveu sobre este disco na época no "Melody Maker". Valeu.

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  3. olá Helen. Parabéns por fazer este trabalho refinado. Sou músico e tenho 15 músicas é só pesquisar. Dê uma olhada no que Keith Emerson do ELP escreveu sobre este disco no "Melody Maker" quando do seu lançamento. Melody Maker – Keith Emerson talks about Nursery Cryme. Valeu.

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  4. Olá Helen. Amei seu texto e pesquisa. Sou amante do rock progressivo desde os anos 1970, vidrado em Gênesis, Yes, Gentle Giant e por aí vai... Também sou historiador e professor de história, apaixonado por contações de história. Abraços fraternos.

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