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Rashômon: dentro do bosque com Ryûnosuke Akutagawa e Akira Kurosawa

O agora é passado.

Visões diferentes, conflitantes, porém críveis, de um mesmo evento, dificultam o conhecimento da verdade real dos fatos. O pesquisador estadunidense Karl G. Heider cunhou o termo efeito rashômon para se referir à subjetividade da percepção e da memória nos casos em que observadores narram um acontecimento de maneiras substancialmente distintas. Importante nos ramos do direito, da antropologia e da psicologia, a expressão faz alusão ao filme Rashômon, clássico de 1950 dirigido pelo mestre Akira Kurosawa.

Vamos ao nosso primeiro flashback.

Rashômon - o filme 

Vencedor do Leão de Ouro de Veneza em 1951 e do Oscar Honorário de Filme Estrangeiro em 1952, Rashômon é um marco na história do cinema, especialmente pela inventividade e pela originalidade de sua narrativa, revolucionária para a época. Ambientado no Período Heian (794 d.C – 1185 d.C.), considerada a última era da história clássica japonesa, o longa se utiliza do encadeamento de flashbacks para criar um mosaico de pontos de vista e convidar o espectador a acompanhar de perto a apuração de um crime.

Um sacerdote (Minoru Chiaki), um lenhador (Takashi Shimura) e um camponês (Kishijirô Ueda) se abrigam da tempestade sob as ruínas do portal de entrada da cidade de Heian, o Rashômon. Horrorizados, os dois primeiros relatam ao terceiro um acontecimento trágico e estranho que teria havido recentemente, sobre o qual ambos tiveram de prestar depoimento perante a autoridade local. Um samurai (Masayuki Mori) havia sido assassinado, e sua esposa (Machiko Kyô), estuprada, aparentemente por um famoso ladrão da região (Toshirô Mifune).

O lenhador inicia a sua narrativa, recordando que esteve no jardim do palácio da justiça para contar o que viu no dia do crime. Nesse instante, insere-se o primeiro flashback da obra, transportando o público ao momento do julgamento, e concedendo a quem assiste a posição de juiz. O depoente surge sentado de frente para uma câmera subjetiva e, olhando nos olhos da tela, discorre acerca da sua versão dos fatos. A partir daí, Kurosawa apresenta um novo flashback, dentro do flashback, para mostrar a dinâmica exposta pela testemunha. Importante salientar que o que vemos em cena não necessariamente ocorreu daquela forma, é apenas a versão da personagem.

Ato contínuo, o sacerdote também comenta o que disse no tribunal, e mais uma vez há a transição constante entre os três tempos da trama, no portal, no tribunal e na floresta. A mesma dinâmica ocorre com os demais depoimentos do julgamento: um policial (Daisuke Katô), o bandido, a viúva do samurai, e o próprio falecido, através de um médium (Noriko Honma).

Diante de versões tão dissonantes, os homens exprimem as suas opiniões sobre as informações e passam a avaliar quem estaria dizendo a verdade e quem estaria mentindo. Percebe-se que cada indivíduo utiliza de suas convicções, suas vivências, seus preconceitos e suas crenças no momento de formar o seu convencimento. O camponês, por exemplo, questiona a veracidade do discurso da viúva, com o argumento de que mulheres costumam se utilizar de lágrimas para enganar. O sacerdote, por sua vez, crê na história contada pelo samurai assassinado, alegando que os mortos não mentem. Ao fim da película, não temos uma verdade real definida, apenas uma melancólica sensação de que é impossível ter certeza de algo baseado apenas na palavra de alguém. 

A obra de Akira Kurosawa coloca em pauta temas relevantes que até hoje ressoam na sociedade e se ampliam cada vez mais através do desenvolvimento de estudos e teses. Atualmente, muito se fala na proliferação da pós-verdade, um movimento que manipula a opinião pública com a valorização dos sentimentos e das convicções pessoais em detrimento dos fatos. Basicamente, o que você quer que seja verdade vale mais do que a própria verdade. Além da influência direta nas últimas eleições pelo mundo, é inegável que a pós-verdade matou milhares de pessoas durante a pandemia da COVID-19, especialmente no Brasil.

Outros pontos interessantes a serem debatidos sobre o tema são a subjetividade perceptiva, a influência da sugestão e a falsa memória. Segundo a professora Elizabeth F. Loftus, em seu artigo “Criando memórias falsas”: 

“As pesquisas estão começando a nos dar uma compreensão de como falsas recordações de experiências emocionalmente envolventes e completas são criadas em adultos. Primeiro, há uma exigência social para que os indivíduos se lembrem; por exemplo, num estudo para trazer à tona as recordações, os pesquisadores costumam exercer um pouco de pressão nos participantes. Segundo, a construção de memórias pelo processo de imaginar os eventos pode ser explicitamente encorajada quando as pessoas estão tendo dificuldades em se lembrar. E, finalmente, os indivíduos podem ser encorajados a não pensar se as suas construções são reais ou não. A elaboração de falsas recordações é mais provável de acontecer quando estes fatores externos estão presentes, seja num ambiente experimental, terapêutico, ou durante as atividades cotidianas. Falsas recordações são construídas combinando -se recordações verdadeiras com o conteúdo das sugestões recebidas de outros. Durante o processo, os indivíduos podem esquecer a fonte da informação. Este é um exemplo clássico de confusão sobre a origem da informação na qual o conteúdo e a proveniência da informação estão dissociados.”

Quando a subjetividade perceptiva e a falsa memória são vinculadas ao processo penal, a complexidade se torna ainda mais perigosa. A prova testemunhal é, sem dúvidas, a mais paradoxal das provas aceitas pelo procedimento penalista, pois, em que pese ser essencial para a reconstrução dos eventos e por vezes ser o único caminho que se apresenta, ela é extremamente frágil, manipulável e pouco confiável. Aury Lopes Júnior pontua muito bem acerca do assunto, em sua obra Direito Processual Penal e a sua conformidade constitucional

“A 'objetividade' do testemunho deve ser conceituada a partir da assunção de sua impossibilidade, reduzindo o conceito à necessidade de que o juiz procure filtrar os excessos de adjetivação e afirmativas de caráter manifestamente (des)valorativo. O que se pretende é um depoimento sem excessos valorativos, sentimentais e muito menos um julgamento por parte da testemunha sobre o fato presenciado. É o máximo que se pode tentar obter. Isso nos dá uma (pequena) ideia da imensa dificuldade que encerra a questão da valoração da prova testemunhal.”

Olhando para o trabalho feito por Kurosawa há mais de 70 anos, fica evidente a genialidade criativa do cineasta. O modo como ele trabalha com o subjetivismo e utiliza flashbacks falsos para criar um sentimento de inconfiabilidade no espectador é extremamente eficaz. A fotografia em preto e branco de Kazuo Miyagawa é um desbunde e apresenta diversas inovações no uso da luz, especialmente da solar. As interpretações descomunais das lendas Toshiro Mifune e Takashi Shimura também contribuíram significativamente para a consagração de Rashômon como um dos maiores clássicos da história do cinema.

Rashômon é uma experiência cinematográfica única e uma análise mental muito rica, razão pela qual continua encantando o público e influenciando criadores até hoje. Porém, importante ressaltar que, assim como Kurosawa influencia muita gente, ele também foi influenciado. E, no caso de Rashômon, a influência foi por Ryûnosuke Akutagawa, um dos principais expoentes da literatura moderna japonesa, autor de Rashômon (1915) e Dentro do Bosque (1921), contos que inspiraram o filme de Kurosawa.

Vamos ao nosso segundo flashback. 

Rashômon - o conto

Akutagawa nasceu 1892 e é considerado um prodígio, pois desde muito novo já escrevia e devorava o trabalho de grandes nomes da literatura mundial. Apesar de também ter publicado poemas, o seu maior talento era para as narrativas curtas, e é louvado hoje como um dos contistas mais importantes do Oriente. Críticos costumam fazer uma separação temática nos escritos de Akutagawa, e destacam a presença de assuntos recorrentes como a loucura, o suicídio, a ética cristã e os antigos costumes do Japão. Outra vertente poderosa na obra do autor são os textos inspirados em outros escritores históricos, explorando a vida e a literatura dessas figuras.

Rashômon e Dentro do Bosque pertencem ao grupo de contos de Akutagawa centrados na cultura da capital Heian, atual Quioto, e são, de longe, seus textos mais famosos, muito em razão do sucesso no cinema. Uma curiosidade interessante é que, apesar do filme se chamar Rashômon, a intenção inicial de Kurosawa era adaptar apenas o conto Dentro do Bosque. A inclusão do conto homônimo à adaptação se deu por uma estratégia narrativa do cineasta, que julgava necessitar de um elo entre os depoimentos testemunhais, tendo em vista que o outro não possui narrador, apenas uma sequência de relatos divergentes acerca de um crime ocorrido na mata, após um casal cruzar o caminho de um perigoso ladrão da região.

“Ora, matar um homem não é lá grande coisa, como vocês pensam. De qualquer forma, para tomar uma mulher, sempre é preciso matar um homem. A diferença é que, quando mato, uso a espada que trago à cintura, mas vocês não. Vocês não se utilizam da espada, matam com seu poder, matam com seu dinheiro. Às vezes, matam apenas com palavras, a pretexto de que o fazem para o bem deles. É verdade que não corre sangue, que os homens continuam vivendo, mas mesmo assim, vocês os matam. Sem pensarmos na gravidade dos crimes, não saberia dizer quem de nós, vocês ou eu, seria pior.” (Trecho do conto Dentro do Bosque)

O conto Rashômon é brilhante ao descrever o estado deprimente do portal de Heian, destruído por catástrofes naturais e negligenciado pela corte imperial, que já se encontrava em franca decadência. Akutagawa expõe com detalhes o ambiente insalubre e mórbido do local, que, de tão abandonado, é utilizado para depósito de cadáveres. Cadáveres que dividem espaço com pessoas marginalizadas que ali buscam abrigo, com destaque ao servo que, sem perspectiva de trabalho, vislumbra no crime sua única opção de sobrevivência. A atmosfera arrepiante faz com que a narrativa flerte com o horror, ao mesmo tempo em que reflete acerca da ética e do egoísmo humano. Kurosawa não levou ao cinema o aspecto sombrio do conto, optou apenas por utilizar o portal como um símbolo da putrefação do indivíduo e da sociedade como um todo.

“Subiu então, daí a alguns minutos, a meia altura da ampla escada que conduzia à galeria do Rashômon. Um homem, o corpo encolhido como um gato, sustando a respiração, espreitava o que se passava ali em cima. A luz que vinha da galeria tocava levemente sua face direita. Era uma face com uma espinha vermelha e purulenta em meio a uma barba rala. O servo, desde o início, tinha a certeza de que ali no alto só haveria cadáveres. Todavia, depois de subir dois ou três degraus, pareceu-lhe notar uma sombra que se movimentava. Logo isso se confirmou, pois uma claridade turva e amarelada se refletia, oscilante, nos vãos do teto cobertos de teias de aranha. Não podia tratar-se apenas de uma pessoa comum que, numa noite de chuva como aquela, portasse um luzeiro no interior de uma galeria como aquela do Rashômon." (Trecho do conto Rashômon)

E se Karl G. Heider se inspirou no filme de Kurosawa para criar sua tese, Kurosawa se inspirou nos contos de Akutagawa para criar o seu filme, Akutagawa também teve a sua fonte de inspiração para escrever seus contos: Konjaku Monogatarishû (Coletânea de narrativas de ontem e de hoje).

O que nos leva ao nosso terceiro flashback.

Rashômon - a inspiração 

Konjaku Monogatarishû é um compilado de histórias populares oriundas da tradição oral, datado do início do século XII, momento de queda da corte imperial de Heian e ascensão da classe guerreira, razão pela qual muitos textos retratam esse momento de mudança. A coletânea contém narrativas breves, do gênero setsuwa, e, tanto Rashômon, quanto Dentro do Bosque, foram releituras feitas por Akutagawa de material da obra (Sobre o ladrão que vê cadáveres no portal Raseimon e Do homem que acompanhava a mulher para a terra de Tanba e foi amarrado na mata de Ooe, respectivamente). 

Acerca do conteúdo da coletânea, destaca-se a explanação da professora e pesquisadora Neide Hissae Nagae, na apresentação do projeto Konjaku Monogatarishû: narrativas antigas do Japão

“A coletânea é composta por 31 tomos organizados em narrativas da Índia, China e Japão, com suas subdivisões que separam os conteúdos existentes entre as mais de mil histórias. Escritas em Língua Japonesa Clássica e título em estilo chinês, sua autoria é desconhecida. A maioria das narrativas são breves e apontam para uma tradição oral. Embora existam as ditas narrativas seculares, o fio condutor da coletânea como um todo é o budismo. Em especial os tomos XI a XX coligem as chamadas narrativas budistas (...) Konjaku Monogatarishū relata episódios em que várias almas são salvas pela misericórdia budista, manifestada não só por monges, mas por pessoas devotas aos Budas e aos preceitos budistas. Seres e fenômenos estranhos e maravilhosos pululam em suas páginas que delineiam uma mitologia nipo-budista e que assombram e encantam ao mesmo tempo. (...) No universo budista de Konjaku Monogatarishū, existe uma Verdade: aquele que tiver Fé em Buda, por mínima que seja, encontrará a Salvação, ainda que tenha cometido transgressões. Já aquele que se distancia e ignora completamente os preceitos budistas certamente receberá a sua devida punição até seu mau carma ser extinto. Simples assim.”

Akutagawa tomou para si narrativas populares curtas, retrabalhou a forma, incluiu detalhes, personagens e reflexões de seu tempo ao conteúdo, e criou um produto completamente novo, impecável. Pode-se dizer que, aproximadamente trinta anos depois, Akira Kurosawa viria a fazer o mesmo.

Voltemos aos nossos tempos atuais.

Em 2013, a editora Hedra lançou no Brasil, com tradução de Madalena Hashimoto Cordaro e Junko Ota, o livro Rashômon e outros contos, publicação primorosa que contém, além dos contos já citados, Memorando Ryôsai Ogata, Ogin e O mártir, três contos com temática cristã; Devoção à literatura popular e Terra morta, contos sobre “as coisas de Edo”, atual Tóquio; O baile, conto que retrata o período Meiji; Passagens do caderno de notas de Yasukichi e A vida de um idiota, tratando das “coisas contemporâneas”.

Os textos da fase contemporânea de Akutagawa são marcados pelo forte apelo autobiográfico, sendo A vida de um idiota uma espécie de testamento, que termina nos seguintes termos: 

“Até a mão que sustinha a caneta começou a tremer. Até mesmo a saliva começou a lhe escorrer pela boca. Sua mente esteve lúcida apenas por um curto tempo, quando acordou após a ingestão de Veronal 0,8. Os momentos de lucidez duraram meia hora ou, no máximo, uma hora. Imerso na penumbra, vivia uma vida inerte. De certo modo, usando como muleta uma espada fina cuja lâmina havia perdido o fio...”

Akutagawa se matou um mês depois, ingerindo uma dose excessiva de Veronal.

Quase um século após o suicídio de Akutagawa, e tendo transcorrida uma imensa cadeia de referências criativas, o citado efeito rashômon tem hoje grande influência na cultura de maneira geral. É possível identificar a sua presença em séries como Arquivo X, Plantão Médico, C.S.I. – Investigação Criminal e House; em animações como Os Simpsons; em jogos como Ace Attorney; em filmes como Herói, Brilho eterno de uma mente sem lembranças, Ponto de Vista, Dois lados do amor e Garota Exemplar; e em livros como Rant, de Chuck Palahniuk, e Lugares Escuros, de Gillian Flynn.

Rashômon é à prova do tempo. É à prova do espaço. É arte perpétua. Independente da forma. Independente do ponto de vista. 

Assim é que se conta.

Referências:



Texto: Carvalho de Mendonça
Arte em destaque: Mia Sodré 
Carvalho
Escritor, advogado e podcaster mineiro. Acredita na arte e na indignação como elementos essenciais para a transformação social. Prepara seu primeiro romance, enquanto se alimenta do som e da fúria de Belchior.

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