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O poder da narrativa em "Heroínas negras brasileiras em 15 cordéis"


A leitura de Heroínas Negras Brasileiras em 15 Cordéis me foi indicada pela Mia, pois sou apaixonada por literatura de cordel. Foi minha primeira experiência — e muito boa — com a escritora e cordelista cearense Jarid Arraes. O livro é um compilado de quinze cordéis e possui ilustrações xilográficas, o yin e o yang deste gênero literário. São histórias de Antonieta de Barros, Aqualtune, Carolina Maria de Jesus, Dandara dos Palmares, Esperança Garcia, Eva Maria do Bonsucesso, Laudelina de Campos Melo, Luísa Mahin, Maria Felipa, Maria Firmina dos Reis, Mariana Crioula, Na Agotimé, Tereza de Benguela, Tia Ciata e Zacimba Gaba, mulheres negras, nascidas brasileiras ou traficadas de países africanos para serem escravizadas no Brasil entre os períodos colonial e imperial. Cada cordel narra diversas situações de genocídio, racismo, opressão, violência, e diversos modos de sobrevivência, conforme situação, época e lugar.

Jarid Arraes: criadora e criatura (Divulgação)

Como historiadora e leitora de comentários na internet, inclusive, afirmo que contexto é importante sim. Tempo e lugar. Situação. A História não dança no meio do nada. Ela acontece num palco, como pensavam, cada um à sua maneira, Shakespeare e Camus. Era (sempre) uma vez. Enfim. Por tempo, lugar, situação e bagagem de vida, cada uma dessas mulheres fez o que pôde para salvar a si e aos seus dos horrores da escravidão e seu legado que até hoje se apresenta na sociedade brasileira e no mundo.

"A história do meu povo
Nordestino negro forte
É tão rica e importante
É vitória sobre a morte
Pois ainda do passado
Modificam nossa sorte."

No momento da leitura, duas coisas chamam a atenção, e ambas têm ligação com a estrutura narrativa do cordel. Primeiro, pensei na verdade alimentei um pensamento recorrente na facilidade de acesso e compreensão do texto cantado dessa maneira. É, ao mesmo tempo, lazer e ensinamento. Está muito mais próximo de nós do que artigos acadêmicos e teses científicas, por exemplo um material importantíssimo para a ciência, obviamente, mas que poderia ser trabalhado e adaptado ou traduzido em outras linguagens para a ideia viajar pelo mundo. E o cordel se aplica bem. Ele tem muito da herança medieval em si. Porque são versos cantados, simples, de fácil decorar, como refrãos de músicas que gostamos ou cantigas de roda que primeiro embalaram nossos sábados à noite.

"A literatura de cordel faz parte do universo da cultura oral. O cordel remonta à tradição do trovadorismo e dos cantores itinerantes que, dentre outros temas, falavam das questões sociais, históricas, das realidades deles." — Cleber Cabral

Jarid versa muito bem, diversas vezes e de várias formas, que está cantando histórias de pessoas importantes que foram esquecidas ou propositalmente escanteadas na produção de nossos currículos escolares. O tanto de feitos importantes de resistência, revolução, que foram engolidos por discursos oficiais que abrilhantaram a “ordem”, já pensou nisso?

"Nas escolas não ouvimos
Essa história impressionante
Mas eu uso o meu cordel
Que também é importante
Para que você conheça
E não fique ignorante."

Não que tudo o que fomos obrigados a entender seja lixo; é História também. Mas como um quebra-cabeças, precisamos das peças se conectando para formar um quadro geral e uma imagem que tenha sentido. Jarid, como outros artistas, traz de forma leve, cotidiana, bonita, tantas coisas que nós brasileiros temos medo de tragar. Porque são verdades dolorosas e que causam espanto, raiva, entre outros sentimentos que não sabemos lidar muito bem, pois fomos programados para acreditar que somos os mais gentis, pacíficos e carinhosos (cordiais!) de todas as nações do mundo.

Também temos a falsa ideia de que escola acaba no arranjar um bom emprego e que aprender é coisa de criança. Viver é aprender. E para tanta gente que não teve oportunidade por lhe ter sido usurpada, o cordel é uma ferramenta magnífica. Porque mesmo no descanso e nas poucas palavras (acredito que até mais por ser assim), aprendemos e refletimos questões grandiosas de nossa história e genealogia. E não é pensando que alguns são incapazes de entender calhamaços, não! O cordel é um tesouro tão aparentemente delicado quanto um poderoso diamante; ou feito rapadura: é doce, mas não é mole não. Em suas poucas, divertidas e emocionantes palavras, ele carrega séculos de história, tanto no tema do verso, como no gênero literário, nos veios da madeira gravada, nos calos das mãos do artista gravador. Walter Benjamin comenta da narrativa ser algo tão apropriável que a história contada e cantada se transforma na história do leitor:

"A experiência que passa de pessoa a pessoa é a fonte a que recorreram todos os narradores. E, entre as narrativas escritas, as melhores são as que menos se distinguem das histórias orais contadas pelos inúmeros narradores anônimos. [...] O narrador retira da experiência o que ele conta: sua própria experiência ou a relatada pelos outros. E incorpora as coisas narradas à experiência dos seus ouvintes."

É como se ele a sentisse no sangue, e essa conexão é tão forte que ele reconta a seu próprio modo. E isso é o que alimenta a tradição. Resumindo, para encurtar (pois o tema me atravessa e me inunda), cordel é como um dente-de-leão, soprado por uma criança numa manhã de sol, e cada pedacinho soprado vai cair não sei aonde e florescer depois. A narrativa é poderosa, e tem poder e dever de oxigenar títulos esquecidos de literatura cinzenta nas bibliotecas universitárias. Não precisamos apenas de intelectuais que falem por nós, mas temos que falar por nós todos e com todos (um por todos, todos por um?). O cordel nos dá essa liberdade de aprendizado e apropriação das histórias para além dos muros das escolas, de classe, das normas e do tempo.

"Contar histórias sempre foi a arte de contá-las de novo, e ela se perde quando as histórias não são conservadas. [...] Quanto mais o ouvinte se esquece de si mesmo, mais profundamente se grava nele o que é ouvido. Quando o ritmo do trabalho se apodera dele, ele escuta as histórias de tal maneira que adquire espontaneamente o dom de narrá-las. Assim se teceu a rede em que está guardado o dom narrativo." — Walter Benjamin

A segunda questão que me chamou atenção foi já no título. Sou contra a ideia de herói, por vários motivos. O principal deles é tirar o que há de humano no personagem retratado, colocando-o num pedestal. Mas entendo a necessidade desse termo no livro, que pode ser dividida em duas partes:

  1. atribuir poder ao oprimido assim como vemos acontecer com opressor, uma maneira de mostrar que não são melhores do que nós, e que feitos grandiosos não são exclusividade de quem detém poder econômico. Uma forma de criar inspiração e coragem em quem está lendo hoje para fazer a diferença.
  2. o cordel apareceu num período histórico onde bem e mal era a peleja da vida, então é natural ser característica forte a ideia de herói x vilão, rei contra rei, bem contra mal, etc. É algo que não foge da proposta.

Mas, ainda assim, herói é uma palavra que vejo mais como afastamento do que como empoderamento. Porque somos todos heróis e vilões de nossas próprias histórias. Essas quinze mulheres negras brasileiras são mais do que heroínas: são exemplos de luta, estratégia, que devemos ter em conta para continuar lutando diariamente contra racismo, opressões e genocídios cotidianos, tantas vezes anônimos e impunes. Herói me incomoda porque parece que, em vez de agirmos por nós, esperamos que algum herói apareça e nos leve pelo braço. Dá a sensação de insuficiência. É um termo que pode ser considerado uma faca de dois gumes.

Mas todo esse questionamento moral só revela uma coisa: o poder que tem a narrativa na literatura de cordel. Para refletirmos sobre a vida, criarmos opiniões, conversarmos em bares, festas, reuniões de família e amigos (quando a quarentena acabar). É quando algo nos toca, que passamos a refletir, mesmo que para discordar um pouquinho. Afinal, "um livro deve ser o machado que quebra o mar gelado em nós".

Leia Jarid Arraes. Leia cordéis. E reconte as histórias à sua maneira. Assim, tornamos vivas figuras que nos inspiram a continuar lutando.


Considero obrigação
Pra acabar o preconceito
Pra espalhar informação
Destruindo esse racismo
E gerando inspiração.

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Referências



Imagem de destaque: Tati Ferrari
Helen Araújo
Filha de paraibanos nascida en São Paulo em 1992. Historiadora e artesã com espírito setentista, escreve sobre tudo, especialmente música, símbolos, mitos e migrações. Quando não escreve no Querido Clássico e Um Velho Mundo, fabrica onde escrever: cadernos no Estúdio São Jerônimo.

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