Em um de seus mais celebrados fragmentos poéticos, Safo de Lesbos, poeta grega que viveu no século 6 a.C., afirma: “sei que alguém no futuro também lembrará de nós”. A memória dos cantos românticos de Safo na atualidade é frequentemente relacionada à história da expressão do amor lésbico. Independentemente da real sexualidade da escritora grega, o registro lírico do amor lésbico em seus poemas é um excelente ponto de partida para o presente texto. Afinal, a preservação dos diários de figuras históricas tão diversas quanto Anne Lister e Virginia Woolf permite que gerações futuras conheçam o amor cantado por Safo em seus escritos.
Anne Lister (1791-1840) foi uma empresária, viajante e proprietária de terras inglesa. A fama mundial de Anne Lister, responsável por inspirar séries de televisão, filmes e livros inteiros, surgiu após a historiadora Helena Whitbread ter decodificado e publicado os diários da inglesa em 1988. O processo de decodificação foi necessário em razão da presença de um código em cerca de um sexto dos escritos de Lister. Após compreender a lógica por trás da criptografia, que envolvia até mesmo símbolos do zodíaco e da matemática, Helena foi surpreendida por uma série de relatos das aventuras sexuais de Anne Lister com outras mulheres. O ineditismo da descoberta da rotina de uma mulher lésbica que viveu em um período em que a palavra “lésbica” nem existia na língua inglesa provocou grande polêmica na época da publicação da obra, bem como algumas dúvidas sobre a veracidade dos diários.
Depois de compreender, brevemente, o processo que envolveu a publicação dos diários de Anne Lister, é fundamental compreender a escolha da autora por essa modalidade autorreferencial de escrita. Por muito tempo, a escrita diarística foi compreendida como o oposto da produção literária, um gênero canônico reservado a pessoas desinteressantes e desinteressadas pelo mundo ao seu redor. Contudo, a evolução dos estudos a respeito da escrita autobiográfica revelou suas múltiplas funções, tais como a preservação da memória, a construção de uma narrativa sobre a vida de quem escreve e o registro de emoções íntimas que não ousam atravessar a barreira da oralidade.
A pesquisadora Maria José Motta Viana, na pioneira obra Do sótão à vitrine: memórias de mulheres, eleva o registro diarístico ao patamar de um “refúgio do eu” e ressalta a possibilidade da figura feminina reaver-se enquanto sujeito por meio do diário. É possível afirmar que diversos trechos dos diários de Anne Lister confirmam a ideia de Maria José Motta Viana, já que esse foi o espaço escolhido pela autora para expor a natureza de sua sexualidade e para refletir acerca da importância de conservar suas memórias. A esse respeito, uma passagem do diário registrada em 19 de fevereiro de 1819, em tradução nossa, revela o papel do diário enquanto espaço para compartilhar os sentimentos íntimos da escritora:
“Estou decidida a não deixar minha vida passar sem algum memorial privado que possa ler futuramente, talvez com um sorriso, quando o Tempo congelar o canal daqueles sentimentos que fluem tão livremente agora.”
Em outra anotação, escrita em 20 de agosto de 1823, Anne Lister confidencia:
“Eu conheço meu próprio coração e conheço os homens. Eu não sou feita como qualquer outra pessoa que já vi. Eu ouso acreditar que sou diferente de quaisquer outros que existem.”
No domingo de Páscoa de 1834, Anne Lister e a proprietária de terras Ann Walker se reuniram para assistir à Missa de Páscoa na Igreja Holy Trinity, localizada na cidade inglesa de York. A missa e a comunhão que a sucedeu formaram o marco oficial do relacionamento das duas. Antes do discreto e simbólico encontro, as duas amantes trocaram alianças e modificaram seus respectivos testamentos para compartilharem seus patrimônios. Todas essas informações só resistiram ao tempo e ao apagamento em razão da escrita habitual, frenética e honesta de Lister em seus diários, hoje compreendidos como fundamentais para a análise da vida e do amor lésbico no século XIX.
Anne Lister (1822) |
Agora, mais conscientes da centralidade do diário para a expressão do amor revolucionário de Anne, é também relevante conhecer a escrita pessoal de outra inglesa notável nascida 42 anos após o falecimento de Lister. Adeline Virginia Woolf (1882-1941), mais conhecida como Virginia Woolf, foi uma romancista, crítica literária e ensaísta inglesa que alcançou especial notoriedade após o lançamento do livro Orlando. Publicado em 1929, esse romance inovador apresenta a viagem de Orlando ao longo de três séculos em uma narrativa que aprofunda questões de gênero até então ausentes do debate público. O livro foi inspirado pela história da família da escritora inglesa Vita Sackville-West e é considerado uma das grandes declarações de amor da literatura ocidental. Entretanto, o amor de Vita e Virginia só sobreviveu aos séculos em razão da preservação dos diários das duas escritoras.
Entre os anos de 1915 e 1941, Virginia preencheu dezenas de cadernos com registros diários de intensidade e de intimidade crescentes. Inicialmente, a escritora registrava observações tímidas sobre o clima do local em que estava, sobre algum acontecimento doméstico ou sobre algum objeto que capturou sua atenção ao andar pela rua. Depois de desenvolver maior frequência na escrita, Woolf passou a ampliar os temas abordados nos registros. O romance com Vita Sackville-West, por exemplo, era acompanhado por diversos outros temas, como reflexões sobre o adoecimento mental de Woolf e as opiniões sinceras que possuía a respeito dos familiares. Assim, novamente, o diário surge na vida de uma mulher sáfica como meio para revelar afetos socialmente condenáveis e para desenvolver uma imagem distante das sufocantes normas sociais. O exercício diarístico de Woolf sobre suas experiências com mulheres era uma verdadeira revolução, sendo suficiente para comprovar essa ideia a lembrança de que a Inglaterra considerou relações homossexuais uma modalidade de crime até o ano de 1967, mais de 20 anos após o falecimento de Virginia.
Após essa breve introdução sobre a diarista Virginia Woolf, é possível apresentar alguns trechos de seus escritos que ressaltam o crescimento gradual de seus sentimentos por Vita Sackville-West. Todas as passagens a seguir foram retiradas do excelente livro Virginia Woolf e Vita Sackville-West: cartas de amor, coletânea de excertos de cartas e dos diários das amantes. A respeito de um dos primeiros encontros das duas, no dia 19 de fevereiro de 1923, Woolf expõe as suspeitas sobre o interesse romântico da aristocrata e indica a pesquisa sobre as origens familiares de Sackville-West, que mais tarde inspiraria a obra Orlando:
“Recebemos uma visita surpresa dos Nicolson. Ela é uma Safista declarada, e talvez, Ethel Sands acredita, esteja de olho em mim, por mais velha que eu seja. Esnobe como sou, retracei quinhentos anos de paixões de Vita, e essas paixões se tornaram românticas para mim, como vinho branco envelhecido.”
Virginia Woolf |
Algum tempo depois, no dia 27 de novembro de 1925, Woolf indica que os seus sentimentos por Vita se fortaleceram ao contemplar a possibilidade de ficar distante da amada em razão de uma viagem para outro país:
“Vita veio duas vezes. Ela está condenada a ir para a Pérsia; e me incomodo tanto com a ideia (a ideia de perdê-la de vista durante cinco anos) que concluo que realmente gosto dela.”
No ano seguinte, ao fim do mês de maio, Virginia demonstra alguma incerteza sobre a natureza da afeição que sentia por Vita e ensaia uma reflexão sobre a definição do amor:
“Vita vem almoçar amanhã, o que será um divertimento e um prazer enormes. Minhas relações com ela me divertem: tão ardentes em janeiro — e agora o quê? Também gosto da presença e da beleza dela. Será que a amo? Mas o que é o amor? Ela 'me amar' entusiasma e lisonjeia; e interessa. Que 'amor' é esse?”
Em uma das últimas menções à Vita em seus diários, no dia 10 de outubro de 1940, Virginia parece agradecer pela história de amor que as duas construíram frente ao complexo cenário de horrores da 2ª Guerra Mundial que enfrentavam:
“Grande luxo de ideias, porque tive um dia ocioso, um dia sem escrever — que alívio de vez em quando — dia de conversa com Vita. Sobre o quê? Ah, a guerra; bombas; qual casa foi atingida, qual não; e então nossos livros — tudo amplamente fácil e satisfatório. Ela controla a vida, conhece as plantas e suas mentes e corpos; grande e tolerante e modesta, com as mãos frouxas em tantas rédeas: filhos; Harold; jardim; fazenda. Bem-humorada também, e profundamente, digo estranhamente, estupidamente afetuosa. Fico feliz que nosso amor tenha resistido tão bem.”
As observações feitas sobre os registros diarísticos de Anne Lister e de Virginia Woolf permitem compreender a centralidade da narrativa sobre si para desafiar convenções sociais e para expressar o amor lésbico sem temer a violência. Logo, a leitura dos diários de Lister e Woolf é cada vez mais necessária. Todos temos o direito de vivenciar nossos afetos, dentro e fora das páginas de um diário.
Referências
- Safo: fragmentos completos (Safo, com tradução de Guilherme Gontijo Flores)
- Virginia Woolf e Vita Sackville-West: cartas de amor (Virginia Woolf e Vita Sackville-West, com tradução de Camila von Holdefer)
- Escritas de si e homossexualidade no Brasil: os diários de Lúcio Cardoso, Walmir Ayala e Harry Laus (Daniel da Silva Moreira)
- The Secret Diaries Of Miss Anne Lister: Vol. 1: I Know My Own Heart (Anne Lister, com organização e decodificação de Helena Whitbread)
- Do sótão à vitrine: memórias de mulheres (Maria José Motta Viana)
- Virginia Woolf’s forgotten diary (The Paris Review)
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