Safo foi uma poeta e musicista que viveu entre VII e VI a.C. na Ilha de Lesbos. No século XXI, Safo é conhecida por ser símbolo do amor sáfico e cultuada como essa mulher que sobreviveu a tantos séculos depois do seu tempo, sendo objeto de estudos contínuos. Mas, afinal, como ela se tornou esse símbolo entre mulheres que amam outras mulheres?
Pouco se conhece sobre detalhes de quem foi e como Safo era, mas graças a muito estudo em fontes externas, sejam citações a ela ou manuscritos encontrados, temos algum panorama dessa figura. Ao que especulam estudiosos, Safo viveu em Mitilene, a capital da Ilha de Lesbos. De origem familiar aristocrática, tendo como pai Escamandrônimo e Cléis como mãe, além de seus três irmãos Caraxo, Lárico e Eurígio. Dizem que se casou com Cércolas de Andros e teve uma filha chamada Cleís. Durante sua vida ensinou em uma escola para mulheres. E, por fim, conta o mito que Safo teria se jogado no mar Jônico por conta de um amor avassalador por Fáon. De tudo isso, nenhuma das informações são de fato atestáveis.
Ela era musicista e compôs mélica (em termos atuais, a lírica), que eram poemas com a intenção de serem cantados com a lira, o bárbito ou a péctis, ambos instrumentos de corda. Por alguns testemunhos tira-se que havia mélicas feitas para a cantoria em uma única voz ou em coral. Porém esses registros históricos se perderam. Talvez o que mais se conheça dela é a sua poesia e suas representações de amor, e mesmo elas estão em estado de preservação bastante variável.
De pessoa à símbolo
Temos um caminho de séculos de construção de conhecimentos para o que se tornou a persona Safo e, além disso, das imagens que a retrataram. Durante todo esse tempo ela assumiu esse lugar de uma mulher poeta, que falava sobre desejo na Grécia Antiga e, possivelmente, ensinava às mulheres seu ofício. Guilherme Contijo, na introdução de Safo - Fragmentos completos, aponta que esse cargo poderia ser um paralelo à “instituição pederática da pedagogia ateniense”, onde homens mais velhos, de mais prestígio e letrados se estabeleciam com meninos que entrariam na sociedade, geralmente na idade da adolescência, para passar seus conhecimentos sobre noções de cidadania, moral, filosofia e autocontrole, seja no sentido sexual ou político.
Ela já foi vista como portadora de uma beleza exuberante e de uma feiura sem precedentes, como sábia e também como mulher que se entregava ao amor sem medir consequências, e também como corruptora das alunas. Há um documentário, infelizmente sem legendas em português, chamado Sapho Love and Life on Lesbos, da BBC, que aponta que por falta de informações atestáveis sobre ela, Safo se torna esse “espaço vazio” no qual as pessoas, em diferentes épocas, contextos políticos e culturais, criam narrativas em torno de sua figura.
O amor em Safo
Num deslumbre ofusca-me igual aos deusesesse cara que hoje na tua frentese sentou bem perto e à tua faladoce degustae ao teu lindo brilho do riso – juroque corrói o meu coração no peitoporque quando vejo-te minha falalogo se calatoda língua ali se lacera um levefogo surge súbito sob a pelenada vê meu olho mas ruge mais ru-ído no ouvidogela-me a água e inunda-me o arrepiome arrebata e resto na cor da relvalogo me parece que assim pereçonesse deslumbretudo é suportável se até um pobre(Fragmento 31)
Apesar de todas as incertezas em termos biográficos e do estado de conservação de boa parte dos seus versos, ainda sobraram alguns fragmentos que mostram um amor bastante intenso e visceral. Há correntes de interpretações diversas sobre o fragmento acima citado, mas duas delas conversam bastante com o que hoje se lê de Safo. A primeira expressa que o poema pode indicar um ciúme que a poeta teria de uma amante/aluna em relação a um homem que a estava cortejando; a segunda diz que esse poema mostra o amor que ela nutria pelas mulheres, um amor que lacera a língua e faz surgir um fogo na pele.
Esse amor é presente em seus versos, mesmo partes incompletas. A poeta usualmente evoca do panteão de deuses gregos a deusa Afrodite que, dentre outras imagens atribuídas, é a deusa do amor e da sexualidade. É curioso que o único poema, até o presente momento, que está completo é uma ode justamente à deusa.
Multifloreamente Afrodite eternaZeus te fez ó roca-de-ardis e peçodeusa não permita que dor e dolodomem meu peitovenha aqui se um dia ao ouvir meu prantolonge sem demora você me veiologo que deixava teu lar paternoplenidouradosobre o carro atado e pardais velozeste levaram vários à negra terranuma nuvem de asas turbilhonantesna atmosferajunto a mim no instante você sorrindodeusa aventurada de face eternaperguntou-me por que de novo sofrochamo de novoe o que mais desejo que seja nestelouco peito quem eu de novo devoseduzir e dar aos amores? quem óSafo te assola?pois se agora foge virá em brevese presentes nega dará em brevese desama agora amará na horamesmo que neguevenha agora aqui me livrar das longasaflições conceda os afãs que anseioneste peito e seja aliada nestalnha de luta.(Fragmento 1)
Safo se coloca como alguém em sofrimento que recorre a Afrodite para tirar as mágoas do peito. O gênero da pessoa a qual se destina o poema nunca nos é revelado, mas esses dois, até por estarem em um bom estado de entendimento, costumam basear boa parte das interpretações sobre o teor homoerótico presente na obra de Safo como um todo.
Safo, por Gustav Klimt (1888) |
Hoje em dia, os termos "sáfica" e "lésbica" são parte do vocabulário para significar rmulheres que amam mulheres, sendo que o primeiro vem realmente de Safo e sua origem na Ilha de Lesbos. E é até estranho pensar que a palavra já teve outros significados, dentre eles “moralidade ou julgamento flexível” e, principalmente, para se referir aos nascidos na Ilha de Lesbos. No documentário já citado aqui no artigo, a pesquisadora Edith Hall afirma que na época de Safo se tem registros de que o significado da palavra era o de fazer sexo oral em alguém. E o mais irônico disso tudo talvez resida no fato de que em 2008, foi levado para um tribunal na Europa uma ação movida pelos nascidos na Ilha de Lesbos para que mulheres lésbicas fosse proibidas de usar o termo para se autoidentificar, pois a palavra só deveria ser usada com conotações geográficas e esse uso mais difundido estava deixando as moradoras da ilha desconfortáveis de se identificarem territorialmente. A ação dos moradores foi perdida, mas gerou bastante burburinho à época sobre os ataques a pessoas LGBT+.
Já a palavra "sáfica" carrega dois significados principais: o primeiro como sinônimo de "lésbica" e o outro como o tipo de poesia com quatro versos, sendo os primeiros três mais longos (contendo onze sílabas, dentre elas três tônicas) e o quarto mais curto.
Ó Nereidas régias um bom retornopara o irmão a salvo é o que mais suplicotudo que ele aspira e no peito anseiapeço que concedam(Fragmento 5)
Epitalâmios de Safo
Uma prática da época de Safo era a feitura de epitalâmios, que são os cantos nupciais gregos. Dentre eles, há dois curtíssimos, mas que despertam bastante a curiosidade do que pode ter sido o restante deles:
linda delícia de moça(Fragmento 108)
sei que alguém no futuro também lembrará de nós(Fragmento 147)
Essas duas frases são bastante conhecidas quando se fala sobre Safo e o amor entre mulheres, talvez por evocar sentimentos muito fortes de atração e flerte e o querer ter sua história de amor lembrada. Diante das dificuldades que relações entre mulheres passam perante a sociedade, a vontade da lembrança e do reconhecimento justifica o quanto esse fragmento foi cooptado. Situação parecida acontece no poema Two Loves, de Lord Alfred Douglas, que compartilhou parte da vida com o escritor Oscar Wilde e cuja frase mais lembrada é “eu sou o amor que não ousa dizer seu nome”.
Por isso, quando Safo canta a beleza, suas palavras são belas e doces, e também cantam os amores, a primavera e o alcíone; todo tipo de palavra bela aparece nessa poesia, até algumas que ela inventou.
E no mês dos namorados, por mais comercial e criado por João Dória que seja, é importante celebrar e colocar um holofote arco-íris em amores sáficos, conhecer a figura de Safo como essa mulher que, independente de confirmação da sua sexualidade, atravessou séculos com seus fragmentos sobre desejo feminino, a intensidade e visceralidade no amar e a beleza. Também é essencial dizer que vários alguéns se lembram dela, sentem afetos pela sua escrita e estudam seu impacto em diversas áreas da arte.
Referências
- Safo Fragmentos Completos
- Sapho Love and Life on Lesbos
- A influência de Safo na música, do séc. XVII aos nossos dias (Luísa de Nazaré Ferreira)
- O amor na poesia de Safo (Maria Fernanda Brasete)
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