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A arte de sonhar em Terra Sonâmbula

Tão próximas e ao mesmo tempo tão desconhecidas pela realidade leitora brasileira, as obras literárias africanas em língua portuguesa, ou seja, produzidas em territórios do continente africano que experienciaram a colonização portuguesa assim como o Brasil, têm uma maior ênfase na valorização da cultura tradicional africana do local em que foram produzidas, além de possuírem uma preocupação com a representação histórica e social de suas respectivas realidades. Essas literaturas, muitas vezes, apresentam um cenário colonial ou de entreguerras, além do conflito entre a hegemonia cultural do português e a resistência cultural do autóctone, normalmente da etnia Bantu, e tudo o que se originou da mescla conturbada dessas culturas. O nome do autor moçambicano Mia Couto é um que vem pipocando pelas livrarias brasileiras em capas coloridas da Companhia das Letras há um bom tempo. Tendo recebido o Prêmio Camões de 2013, ele é um importante escritor, mundialmente publicado, com narrativas mágicas que combinam a cultura tradicional e moderna de Moçambique através de elementos sobrenaturais e engajados politicamente, e Terra Sonâmbula foi o seu primeiro romance lançado.

Podemos nos aproximar das literaturas africanas de língua portuguesa observando algumas relações que elas têm com as literaturas que já são mais próximas da gente. Sua mistura de elementos das crenças locais a um contexto sociopolítico realista é semelhante ao abordado pelo movimento do realismo mágico, tipicamente latino-americano. No caso das literaturas africanas, alguns teóricos adotam a nomenclatura criada pelo escritor angolano Pepetela no seu romance Lueji, que seria o realismo animista. Nele, as características da tradição ancestral de origem Bantu, portanto, não-ocidental, presente nas diversas culturas do continente africano, se mesclam a uma narrativa crítica e pós-colonial que insurge contra a hegemonia cultural do colonizador. Além disso, muitos de seus autores optam por uma escrita com traços da oralidade popular e neologismos, muito semelhante à escrita de nossos autores modernistas brasileiros, além de ainda incluir palavras das línguas locais, como o quimbundo em Angola, ou tsonga em Moçambique. A língua portuguesa mesmo é ressignificada pelo povo que foi colonizado após os movimentos de resistência colonial à maneira de Caliban, que em A tempestade, de William Shakespeare, diz a seus senhores: “A senhorita me ensinou sua língua, e o que ganhei com isso foi que aprendi a praguejar. Que a peste vermelha acabe com vocês, por me terem ensinado sua linguagem”. Dessa maneira, através da  literatura, a língua portuguesa se vira contra o dominador que a impôs.

Terra Sonâmbula é uma dessas obras tão cativantes, enredada em um mundo culturalmente rico e de raízes não-ocidentais, além de altamente crítica sobre a sociedade que se forma em Moçambique, pois conectada profundamente com o seu contexto histórico conflituoso de produção. Em 1992, ano da primeira publicação deste romance, Moçambique tinha apenas 18 anos como uma nação independente do domínio colonial português, mas também vivia há 18 anos em meio à uma guerra civil. Em uma entrevista concedida à revista Quatro Cinco Um em 2022, Mia Couto define sua relação com este romance da seguinte forma: “Terra sonâmbula me marcou muito. Foi o único livro que sofri ao escrever, porque tinha ali uma relação com alguns fantasmas, os meus amigos que tinham morrido na guerra civil. Colegas de profissão, jornalistas. Eu vivi aquilo. Aquele texto foi vivido de uma maneira muito dramática e sofrida”.

A obra traz duas histórias que seguem em paralelo intercalando seus capítulos: os cadernos de Kindzu compõem uma narrativa própria em si, ao mesmo tempo em que são lidos dentro da narrativa de um menino sem memória, Muidinga, e um velho chamado Tuahir. Retrata uma Moçambique abandonada, vitimizada pela violência de duas guerras: a guerra pela independência do país diante da dominação colonial portuguesa (1965-1975), e a guerra civil entre os dois principais grupos que lutaram juntos pela libertação, a FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique) e a RENAMO (Resistência Nacional de Moçambique), que ocorreu logo em seguida (1977-1992). É uma terra devastada pelo conflito, com um povo calejado pelo sofrimento, que já não consegue mais ver um futuro esperançoso à sua frente. Terra Sonâmbula traz à tona alguns fios dessa esperança perdida, abrindo margem para se pensar que ainda é razoável desejar um amanhã mais positivo além daquela terra arrasada, e ao mesmo tempo não deixar de levar em conta o seu passado de tradição e lutas na construção desse novo amanhã.

Na narrativa, o velho Tuahir e o jovem Muidinga caminham pela terra conflituosa durante a guerra civil até encontrarem abrigo em um machimbombo (ônibus) queimado, abandonado à esmo na estrada. Os cadernos de Kindzu são encontrados junto a um corpo queimado neste ônibus, e a narrativa mágica contida nele, que recupera a época da resistência colonial e da guerra pela libertação, é o que acompanhará a dupla em sua própria caminhada durante o romance. Através da leitura que Muidinga faz para Tuahir, os dois são capazes de avançar em direção à redescoberta tanto das memórias perdidas do menino quanto das memórias perdidas da nação nestes tempos tão confusos. A história do passado de Kindzu serve como guia para a dupla, no presente, transitar acordado naquela terra sonâmbula.

Muitas características próprias das tradições orais de culturas africanas podem ser encontradas nessa obra. A crença que relaciona o período de secas ao nascimento de gêmeos aparece como um detalhe da importante personagem Farida, que conecta, de certa forma, as duas narrativas presentes na história.  Kindzu, por sua vez, tem sua aventura própria em busca dos chamados Naparamas, que são seres espirituais, guerreiros cujo objetivo é combater os "fazedores de guerra". A valorização do idoso é outro detalhe importantíssimo, na medida em que o mais-velho, o mais próximo de alcançar o plano da ancestralidade, é o que carrega mais sabedoria dentro do grupo. Tuahir é um velho que precisa acompanhar e re-ensinar como se vive ao pequeno e desmemoriado Muidinga. O pai de Kindzu, Taímo, por sua vez, ao passar para este outro plano, é um ancestral que constantemente intervém na aventura de seu filho com o intuito de lembrá-lo das tradições de sua família. A narrativa de Terra Sonâmbula tem um quê de rito iniciático comum em contos orais africanos, nos quais o jovem precisa percorrer um caminho desafiante para alcançar um outro estágio de sua vida. Dessa forma, Muidinga adquire conhecimento de vários personagens mais velhos, seja através de seu companheiro idoso, ou dos personagens lidos nos cadernos, em busca de recuperar sua identidade, a memória de si mesmo. A própria contação de histórias, essa narração das histórias dos mais experientes, é um elemento característico da tradição africana, e se torna um elemento valioso na história de Mia Couto para se aprender como sobreviver, principalmente no contexto caótico em que os personagens se encontram. 

São essas narrativas, compartilhadas por outros, que possibilitam a amenização do sonambulismo de Muidinga e Tuahir. O sonâmbulo é aquele que vagueia desacordado sem rumo, um transtorno sem causa certa, mas cuja manifestação surge pelo estresse da privação de sono, transtornos psiquiátricos e respiratórios, consumo de substâncias que afetem o mecanismo do sono, como álcool e drogas. O período intenso de guerras e desastres naturais matou a terra e seus habitantes, que andam adormecidos, sem perspectiva de um futuro pela frente, sentindo-se confusos sobre a realidade que os cerca, sem poder sonhar com algo diferente do terror que estão experienciando naquele momento. Como se pode pensar em futuro quando o presente é caótico, violento e tão sofrido?

Mia Couto sugere que um refúgio possível é a imaginação. A dor e o sofrimento de se experienciar a guerra é aplacado somente pela capacidade de se sonhar com uma possibilidade de futuro melhor. Muidinga, como uma criança que conta uma história, torna-se essa simbolização da nova possibilidade de futuro através da narrativa. A história "contada" por Kindzu funciona como o que a pesquisadora Ana Maria Abrahão dos Santos Oliveira associa à história de Sherazade: as histórias não se fecham em uma noite, garantindo que os personagens sobrevivam a mais um dia para ouvi-la na próxima. Muidinga não termina de contar a história de Kindzu à Tuahir e, por isso, os dois vivem mais uma noite para continuar a história. Agarrar-se à narrativa, e à própria tradição da contação de histórias, é a chave para a sobrevivência desse povo, composto de meninos e velhos como Muidinga e Tuahir. É deslumbrante observar como a realidade se embaralha com o aspecto onírico. À medida em que ocorre a leitura dos cadernos de Kindzu por Muidinga e Tuahir, o cenário se modifica como num sonho instável, muitas vezes entrando em colisão com o que é lido nos cadernos. Quando a história de Kindzu apresenta uma chuva torrencial que termina a estiagem, a história de Muidinga segue figurando um dilúvio em plena floresta. A água, os animais, os objetos viajam de uma história a outra como se um sonho viesse à realidade para ajudar na caminhada dos protagonistas que rumam a um novo mundo, melhor e diferente daquele. Uma história se entrelaça à outra para que obtenham as respostas de suas questões uma na outra. Na entrevista à Quatro Cinco Um, Mia Couto reafirma sua crença na essencialidade da literatura: “O livro faz ainda uma espécie de primeira guerrilha para existir. Este é um país que teve uma independência muito recente, e metade do tempo como país independente foi gasto em guerras que destruíram a capacidade básica de produzir aquilo que é essencial”.

Nós, leitores, sentimos os benefícios da leitura na nossa prática literária. Quando lemos, sabemos que a resistência aos tempos difíceis pode ser enfrentada através da arte, porque é dela que origina a nossa habilidade de sonhar com um mundo melhor e, ainda, contribui com as nossas ferramentas para fazê-lo acontecer. O autor de Terra Sonâmbula ainda fala de uma função terapêutica para a prática literária. A literatura, para Mia Couto, é fundamental. “É preciso que as pessoas deixem de ter medo de aceitar o tempo em que estivemos divididos, que houve fraturas, e nos conciliarmos com esse tempo, com essa herança do passado. E a literatura pode fazer isso de uma maneira mais tranquila, pode transformar isso em histórias, pode humanizar e mostrar que não eram os soldados o problema, era a guerra, que nos transformou em outras coisas. Fomos manipulados, usados como ferramentas, como armas”


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