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De Ariana para Dionísio: Hilda Hilst, mito e poesia em uma metafísica do desejo


“Antes de ser mulher sou inteira poeta”, provocou em verso Hilda Hilst na coletânea Júbilo, memória, noviciado da paixão, livro originalmente publicado no agora longínquo ano de 1974. A obra, na verdade, consiste em sete livros menores que abordam temas tão diversos quanto a centralidade da ausência da pessoa amada para a produção poética e o papel do poeta diante da censura imposta pela ditadura civil-militar. Um desses livros, Ode descontínua e remota para flauta e oboé. De Ariana para Dionísio, adquire especial relevância quando considerada a aproximação entre a narrativa mítica e a construção poética de uma metafísica transgressora do desejo.

Faz-se necessária uma breve nota sobre a trajetória pessoal e literária de Hilda antes de  partirmos para a análise do livro. Filha do jornalista e poeta Apolônio de Almeida Prado Hilst e da imigrante portuguesa Bedecilda Vaz Cardoso, Hilda publicou o seu primeiro livro, Presságio, quando possuía apenas 18 anos. Durante os 40 anos seguintes, a autora publicou mais de trinta livros, entre coletâneas poéticas, romances, peças teatrais e crônicas. A carreira prolífica e de renome crítico, entretanto, não foi acompanhada pelo nível de popularidade que Hilda considerava justo receber.

Na antologia de entrevistas Fico besta quando me entendem, organizada por Christiano Diniz e publicada pela Biblioteca Azul, as menções à decepção de Hilda são frequentes. Ao ser  perguntada por Hussein Rimi, no ano de 1991, sobre a escrita de livros considerados pornográficos como estratégia de marketing, tópico digno de um texto à parte, Hilda foi sincera:

“HH: É claro que sim porque eu penso assim: é um absurdo você fazer obras primas como eu faço e guardar tudo na gaveta, esperando que daqui a cinquenta anos as pessoas falem de você. O escritor, acima de tudo, quer ser lido. O Léo Gilson Ribeiro ficou muito magoado por eu ter escrito esses livros. Ele me disse: 'Pensa no Kafka, que levou anos para publicar um livro'. Mas com todas essas formas de divulgação que um livro tem é um absurdo pensar assim. Porque, se você está vivo, a sua vontade é de se comunicar com o outro.”

Nada mais honroso à memória de Hilst e ao seu desejo genuíno de comunicação do que valorizar as novas formas de divulgação literária presentes no contexto das redes sociais e divulgar o conteúdo de um dos seus mais celebrados livros, Ode descontínua e remota para flauta e oboé. De Ariana para Dionísio. Publicado após uma sequência de livros de ficção, a obra recebe influência das experiências anteriores com a prosa e mistura o clássico e o inovador.

O impacto artístico de Ode descontínua e remota para flauta e oboé. De Ariana para Dionísio foi tamanho que até mesmo a música popular brasileira recebeu sua influência ímpar. No ano de 2005, o cantor maranhense Zeca Baleiro lançou um álbum homônimo ao livro composto por versões musicadas dos poemas, interpretadas por grandes nomes como Maria Bethânia e Angela Ro Ro. Infelizmente, Hilda faleceu antes da finalização do álbum, mas aprovou as versões iniciais das canções cantadas por Zeca Baleiro.

De volta ao livro e às suas origens, o mito grego que inspirou a escritora paulista foi o de Ariadne e de Dioniso. Conta a mitologia grega que Ariadne era a filha do rei de Creta, o poderoso e cruel Minos. Personagem central para a derrota do Minotauro, foi Ariadne quem entregou o novelo de lã que garantiu a localização de Teseu no labirinto. Entretanto, após ser abandonada por Teseu na Ilha de Naxos, a jovem teria se apaixonado por Dioniso. O deus do vinho, então, presenteou a amada com uma coroa feita de rubis e de ouro forjada pelo deus grego Hefesto. Tempos depois, a preciosa coroa foi posta entre as estrelas e transformou-se na coroa boreal, constelação do hemisfério celestial norte. Da união entre Ariadne e Dioniso, nasceram diversos filhos, como Toas e Enopião.

Baco e Ariadne, por Eugène Delacroix (

A versão de Hilda Hilst não só substitui o nome de Ariadne por Ariana, mas abandona a passividade da jovem resgatada por Dioniso no mito grego e introduz um entoar lírico poderoso sobre os opostos que compõem o amor. Como centros da análise proposta por nós no presente texto, destacam-se o primeiro e o sétimo poemas da aventura de Ariadne e Dioniso.

No primeiro poema, a dualidade entre ausência do amado/presença da criação poética é o tema principal. A personagem Ariana parece acompanhar o signo de Áries, que, inclusive, era o signo solar de Hilda: assim como o signo de Áries marca o início do zodíaco, a protagonista de Hilst é a líder que controla a subjetividade e o conteúdo da obra.

Os primeiros versos, inclusive, são reveladores da postura sincera de Ariana sobre a centralidade da angústia da ausência de Dioniso para a composição do lirismo amoroso:

"É bom que seja assim, Dionísio, que não venhas.
Voz e vento apenas
Das coisas do lá fora
E sozinha supor
Que se estivesses dentro
Essa voz importante e esse vento
Das ramagens de fora
Eu jamais ouviria."

Os versos livres utilizados por Hilda Hilst nesse poema inicial e em boa parte dos seguintes contrastam com a adaptação do mito clássico e com o título herdado do trovadorismo. A mistura de formas poéticas consagradas e inovações modernas é mais do que um sinal do vanguardismo da obra, mas um lembrete de que a temática do amor romântico e do fazer poético atravessa todos os estilos literários que a influenciam.

Em seguida, Ariana continua o seu lamento disfarçado e amplia a ideia de contrastes entre Dioniso, aquele que vem, e a sua própria participação enquanto aquela que é:

"Atento
Meu ouvido escutaria
O sumo do teu canto. Que não venhas, Dionísio.
Porque é melhor sonhar tua rudeza
E sorver reconquista a cada noite
Pensando: amanhã sim, virá.
E o tempo de amanhã será riqueza:
A cada noite, eu Ariana, preparando
Aroma e corpo. E o verso a cada noite
Se fazendo de tua sábia ausência."

Nesse momento, Ariana se aproxima da Ariadne mitológica ao se comportar como uma tecelã: enquanto Ariadne preparou o fio de Teseu para combater Minotauro, Ariana prepara o corpo para superar a ausência de Dioniso. O preparo, entretanto, é sabidamente fugaz. O eu lírico do poema reconhece que o espaço deixado pelo deus grego é parte intrínseca da própria experiência do amor.

Outro poema fundamental para a compreensão da grandiosidade do livro e da proposta de Hilda é o sétimo poema, de título VII. Os versos livres apresentam à relação dos amantes míticos uma nova personagem, Manan, capaz de potencializar o afeto entre os dois e de provocar o surgimento do ciúme. Todas essas informações sobre a tensão entre os personagens são expostas por uma pergunta capciosa que ocupa os três primeiros versos:

"É lícito me dizeres, que Manan, tua mulher
Virá à minha Casa, para aprender comigo
Minha extensa e difícil dialética lírica?"

Nesse momento, Ariana demonstra incredulidade e exibe ironia diante do cenário irremediável em que deve ensinar a sua produção poética a outra amante de Dioniso. A resposta é firme e preenche os versos restantes do poema:

"Canção e liberdade não se aprendem
Mas posso, encantada, se quiseres
Deitar-me com o amigo que escolheres
E ensinar à mulher e a ti, Dionísio,
A eloquência da boca nos prazeres
E plantar no teu peito, prodigiosa
Um ciúme venenoso e derradeiro."

A vingança de Ariana é honesta: Manan não pode receber a canção e a liberdade de forma dialética, pois o surgimento de ambas está relacionado à experiência de sentir a ausência de Dioniso, o que a amante é incapaz de experimentar pela própria condição que ostenta. Contudo, quando Ariana propõe como alternativa a concretização física do desejo ao lado de outro amante, o amigo de escolha de Dioniso, a protagonista é capaz de ensinar aos dois amantes uma nova lição e de punir Dioniso com a experiência do ciúme. A resposta de Ariana encerra, assim, o entrelaçamento entre o mito, a linguagem, a metafísica e o desejo.

A partir da breve reflexão proposta acerca dos poemas I e VII, apenas dois textos entre os dez que compõem o livro, é nítida a importância de ler Hilda Hilst e de discutir a sua vasta obra. Ausente o mítico Dioniso, presentes a metafísica do desejo, a reflexão sobre o amor e a deusa da literatura brasileira.

Referências 




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