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Seminário dos ratos: a crítica política de Lygia Fagundes Telles

Lygia Fagundes Telles (1918-2022) foi uma das maiores escritoras do Brasil. Amiga de Hilda Hilst e Clarice Lispector, Lygia marcou a história da literatura com obras cruas e insólitas. Seu romance mais famoso, As meninas (1973), denuncia a ditadura militar através fluxo de consciência de 4 narradores, entre eles, 3 jovens mulheres amadurecendo em um mundo hostil. Entretanto, é no conto que a autora desponta como grande mestre. Tramas misteriosas, finais escorregadios, cotidiano sombrio, satirização e críticas políticas marcam os enredos de Lygia Fagundes Telles. 

Seminário dos ratos (1977) não é diferente. O conto, homônimo ao livro, apresenta já no início uma frase de Carlos Drummond de Andrade que marcará o tom final da narrativa: “Que século, meu Deus! - exclamaram os ratos e começaram a roer o edifício”

A história se inicia com o encontro entre o Chefe das Relações Públicas e o Secretário do Bem-Estar Público e Privado, ambos os homens identificados por suas funções, sem nominação. O narrador aponta as características físicas dos dois: o primeiro, jovem e baixinho, o segundo, um homem deslocado, flácido e adoentado - vítima da gota, que imobilizava seu pé e o afligia. É interessante notar a ironia já na primeira página: o homem responsável pelo bem-estar de todos estava constantemente se sentindo mal, padecendo de uma doença que o paralisava. 

Os dois burocratas continuam seu diálogo, o mais jovem mostrando-se um puxa-saco tanto do Secretário do Bem-Estar Público e Privado quanto dos demais convidados: o Diretor das Classes Conservadoras Armadas e Desarmadas e a Delegação Americana. Lygia satiriza os poderosos demagogos nomeando suas funções de forma cômica, apontando a eficácia de ser ineficiente. Além dessa crítica em tom de ironia, a autora insere a presença estadunidense no enredo fazendo referência às intervenções que os Estados Unidos fizeram na década de 1980 nos países latino-americanos. 

O envolvimento da Delegação Americana causa irritação no Secretário, que dispara: “Os ratos são nossos, as soluções têm que ser nossas. Por que colocar todo mundo a par das nossas mazelas?”, revelando um nacionalismo exacerbado. A despeito da insistência do jovem em dizer que os estadunidenses são especialistas no assunto, o Secretário mantém sua opinião: ninguém precisava saber dos problemas que aquele país enfrentava com ratos. Pelo contrário, devia-se dizer que estava tudo sob controle e apontar para o lado positivo da situação. 

Lygia escreve de forma sucinta, sem demorar-se em aspectos de fora do diálogo dos dois homens, entretanto, em sua genialidade literária, insere o contexto em que ocorre o seminário dos ratos: o país está abandonado à miséria, os gatos - que, segundo o Secretário, resolveriam o problema - foram devorados pelos cidadãos que passavam fome. Em contraponto, o seminário, que acontecia pelo sétimo ano consecutivo sem apresentar resoluções, era regrado à luxo: desde jatinhos particulares, a jantares com frutas e grandes lagostas. O Secretário defende a escolha do uso do dinheiro público naquele evento, pois seria impossível aos participantes pensar em soluções estando no centro do caos criado pelos ratos. Por isso, os burocratas precisavam de conforto: “Onde poderiam os senhores trabalhar senão aqui, respirando um ar que só o campo pode oferecer?”. Todavia, apesar do dinheiro gasto, os homens não chegavam a uma solução, pelo contrário, o Secretário apontava ora para soluções individuais ora para mentiras e subterfúgios. Enquanto estivessem a salvo dos ratos, nenhum deles investiria energia na resolução do problema. A “população ratal” continuaria a crescer.

O Secretário, irritadiço devido às dores, chega a explodir com o jovem: “O povo, o povo [...] Só se fala em povo e no entanto o povo não passa de uma abstração. Que se transforma em realidade quando os ratos começam a expulsar os favelados de suas casas. Ou a roer os pés das crianças da periferia, então, sim, o povo passa a existir nas manchetes da imprensa de esquerda”

A autora faz sutis críticas à política conservadora, personificando no Secretário o desprezo destinado às classes mais pobres. Outra sutil referência às tensões políticas na América Latina é a escolha do vinho: para o jantar foi escolhido um vinho chileno, da safra de Pinochet.

Após páginas de diálogo entre o Secretário do Bem-Estar Público e Privado e o Chefe das Relações Públicas, enfim, um barulho é ouvido. O Cozinheiro-Chefe adentra o quarto para avisar que o jantar havia sido devorado pelos ratos. Conta, em desespero, como tudo ocorreu: “me apresentou como um homem vestido de rato!”.

Mesmo com a ameaça iminente e com a fuga dos empregados (todos a pé, visto que os ratos destruíram os fios dos carros e dos telefones, deixando os burocratas incomunicáveis), o Secretário insiste em realizar o jantar com o que ficara a salvo na geladeira e fingir que a casa não estava sob ataque. 

Os ratos invadem o casarão e o jovem Chefe das Relações Públicas foge para se esconder na geladeira, tomando algumas mordidas antes de se acuar no pequeno espaço seguro. Do Secretário a última coisa que viu foi o chinelo ser carregado. Não sabe quanto tempo ficou preso na geladeira, mas ao sair viu o casarão iluminado e “eles” estavam reunidos na Sala de Debates, de portas fechadas. 

O final do conto não tem um desfecho palpável, deixando o leitor imaginar quem estava discutindo a portas fechadas: os homens ou os ratos? 

Lygia apresenta neste conto uma alegoria política na qual ratos tomam o poder e se antropomorfizam - como o cozinheiro diz ter visto, um rato vestido de homem - enquanto os homens assumem o papel de animal acuado ao ter que abandonar a casa e se esconder. Além de transitar pelas questões sociopolíticas, criticando o conservadorismo e o descaso com o povo, a autora cria uma ambiguidade questionadora: o seminário, afinal, é sobre os ratos ou é a reação de tomada de poder dos ratos? 

Referências

  • O legado da dama LYGIA FAGUNDES TELLES (Canal Antofágica)
  • Os contos (Lygia Fagundes Telles)
  • Seminário dos Ratos - Lygia Fagundes Telles (Podcast 30:MIN - Livros e Literatura)
  • Seminário dos Ratos | Unicamp | Lygia Fagundes Telles | Resumo + Análise (Canal Leio, Logo Escrevo) 



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