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As mulheres em Hamlet sob o olhar de Um teto todo seu

No icônico ensaio Um teto todo seu, Virginia Woolf discorre sobre as condições necessárias para assegurar a presença do feminino na literatura, bem como propõe uma investigação acerca dos motivos pelos quais as produções ficcionais de mulheres não se faziam presentes nas estantes das bibliotecas de faculdades; e muito mais além, questionou o porquê das mulheres estarem quase que desaparecidas dos livros de história. Na obra, Woolf mostra sua grande preocupação a respeito da falta de registro do feminino, pois, para ela, isso significava, claramente, que as existências de diversas mulheres estavam sendo perdidas no espaço a ponto de, algum dia, serem totalmente esquecidas, uma vez que não havia pontos de vistas históricos e literários opostos às opiniões masculinas, devido a proibição das mulheres ao exercício das atividades intelectuais. Para exemplificar tal problemática, a escritora, como faz comumente em seus ensaios e diários, cria uma situação hipotética por meio do processo de ficcionalização: um pai, que ama muito sua filha, a proíbe de exercer atividades intelectuais, uma vez que o ponto de vista dominante afirmava que a mulher devia estar sempre disponível para servir ao homem, porque, segundo essa concepção machista, reforçada por figuras e jornais influentes da época como Oscar Browning e Saturday Review, mencionados pela escritora, o valor da mulher provinha dessa subserviência. 

Além disso, no ensaio, Virginia Woolf ressalta um contraste entre as mulheres reais e as ficcionais, importantíssimo para o entendimento crítico de toda a obra:

“De fato, se a mulher não existisse a não ser na ficção escrita por homens, era de se imaginar que ela fosse uma pessoa da maior importância; muito variada; heroica e cruel, esplêndida e sórdida; infinitamente bela e horrenda ao extremo; tão grandiosa como um homem, para alguns até mais grandiosa. Mas isso é a mulher na ficção. Na vida real [...] ela era trancada, espancada e jogada de um lado para outro.”

Assim torna-se clarividente a representação da mulher feita por homens na ficção, visto que em muitas obras elas eram (e ainda são, muitas vezes) ou representadas como seres divinos, castos e graciosos, aproximando-se da concepção do eterno feminino, ou como sensuais e muitíssimo calculistas, seguindo o estereótipo femme fatale. Entretanto, como é destacado por Woolf, nas poucas vezes em que a figura feminina aparece nos livros de história, percebe-se a enorme diferença da mulher real para a ficcional, visto que aquela era constantemente subjugada e privada da tomada de escolhas a fim de que pudesse reger sua própria vida.

No capítulo 3, o leitor conhece Judith, a irmã ficcional de William Shakespeare criada por Woolf, que, igualmente talentosa quando comparada a seu irmão, não obtinha as mesmas oportunidades que ele. Dessa maneira, a ensaísta questiona Browning sobre suas suposições a respeito do intelecto feminino – pois Browning afirmava que o intelecto da melhor mulher não chegava aos pés do intelecto do pior homem –, expondo as condições que Judith enfrentava como mulher em seu século, as quais os homens não precisavam enfrentar, como as privações à educação e humilhações machistas de toda a sociedade:

“O mundo não dizia a ela, como dizia a eles: ‘escreva se quiser, não faz diferença para mim.’ O mundo dizia, gargalhando: ‘Escrever? O que há de bom na sua escrita?”

Logo, se o homem precisava ser apenas bom em sua função, a mulher precisava (e precisa) ser sempre excepcional – ainda que sem oportunidades – para poder ocupar o espaço, nesse caso, da escrita.

Hamlet e as mulheres

Como fora pontuado por Virginia Woolf, havia (e há) um ponto de vista predominante em toda a escrita histórica e literária: o masculino. Portanto, pode-se presumir que, apesar das mulheres ficcionais estarem representadas, sobretudo, de uma maneira irreal, ainda há, sobre a construção delas, perspectivas masculinas. E esse é o caso das mulheres em Hamlet, uma das tragédias mais famosas de Shakespeare, que, embora seja altamente conceituada, há importância em levantar certos questionamentos sobre algumas personagens, como Gertrudes, mãe de Hamlet, e Ofélia, amada do príncipe, visto que toda essa história foi repassada por Horácio, fiel escudeiro de Hamlet:

“HORÁCIO – Não espereis que o faça. Sou mais um romano antigo do que um dinamarquês. Ainda sobrou um pouco de líquido na taça.

HAMLET – Se és homem, dá-me a taça! [...] Bom Horácio, que nome desonrado ficará depois de mim, se as coisas permanecerem assim desconhecidas? Se alguma vez me conservastes em teu coração, afasta-te algum tempo da felicidade e reserva, sofrendo, o teu sopro de vida neste mundo de dor para contar minha história [...].”

Na peça, Hamlet, príncipe da Dinamarca, em estado de loucura, tenta vingar a morte de seu pai após descobrir que este havia sido assassinado. Assim, o leitor acompanha uma trama repleta de vinganças, mistérios e traições, e, em meio a tudo isso, também conhece um pouco da história de Gertrudes e Ofélia, a qual, de modos peculiares, se liga à trama principal. 

Ofélia é apresentada como a moça perfeita, bela, casta e obediente às ordens do pai – como se fosse a encarnação do eterno feminino –, criada para ser uma esposa impecável; e desse modo, Hamlet acaba se apaixonando por ela. Por outro lado, temos Gertrudes, a qual é apresentada de um modo completamente diferente, aproximando-se da femme fatale, dado que, aparentemente não ligando para as opiniões alheias a respeito de si mesma, casa-se com Claudius, seu cunhado, logo após o falecimento do rei, seu ex-marido. Assim, ao longo da narrativa, percebe-se que o príncipe Hamlet nutria uma grande raiva de sua mãe por esse motivo, ao mesmo tempo que guardava enorme admiração por seu pai, por, segundo o seu ponto de vista, ter sido um nobre rei – fato esse que, mais adiante na peça, o leitor descobre ser falso, uma vez que a alma do rei está no purgatório por diversos pecados cometidos na Terra. Desse modo, todas as imagens incitadas no imaginário do leitor sobre Gertrudes são relacionadas a coisas ruins.

Ophelia, por John Everett Millais (1852)

Ofélia, porém, não escapa da loucura que permeia toda a peça, pois, ao longo da trama, perde o juízo por ser, supostamente, recusada por Hamlet. Apesar de não parecer um motivo tão nobre para a perda da sanidade, como, provavelmente, muitos leitores devem julgar quando comparado ao motivo da suposta loucura do príncipe, é importante lembrar que a moça havia sido criada, como muitas mulheres da época, para ser esposa e mãe, logo, esta era sua maior meta de vida, segundo essa visão. 

E se a tragédia de Hamlet fosse contada por Ofélia ou Gertrudes?

No filme Ofélia (2018), dirigido por Claire McCarthy, baseado em Hamlet, de Shakespeare, e em Ofélia, livro de Lisa Klein, é perceptível o quanto as figuras femininas são humanizadas, pois, aqui, toda a tragédia é contada pelo ponto de vista de Ofélia. Assim, por meio do olhar abrangente da jovem, Gertrudes não parece tão má, pois o espectador consegue enxergar os motivos que levam ao romance proibido com o cunhado para além da visão masculina e enlutada de Hamlet. A própria amada do príncipe da Dinamarca, também, aparece como uma personagem bem mais profunda e distante do estereótipo do eterno feminino, já que nessa adaptação, chegamos a conhecer seus próprios pensamentos, sem nenhuma interferência.

Portanto, percebemos que se a figura feminina fosse construída na ficção por mulheres, ela, muito provavelmente, escaparia de extremismos perversos, como os destacados por Virginia Woolf, e mais se assemelharia à complexidade natural própria do ser humano.

Referências



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Laura Ferracini
Futura professora de línguas e apaixonada por Virginia Woolf, mas lê tudo o que lhe prende. Espalhando leituras no interior do interior de São Paulo, ou para os íntimos, Dolcinópolis.

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