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Por trás do País das Maravilhas


O ano era 1862 quando Charles Lutwidge Dodgson, em um passeio de barco pelo Tâmisa, contava uma história para entreter as três irmãs Liddell: Lorina, Edith e Alice. Foi desta forma que surgiu um dos maiores clássicos da literatura infantil, Alice no País das Maravilhas. Algumas edições do livro contam com um poema inicial, escrito pelo próprio Dodgson (nome verdadeiro de Lewis Carroll), como um gênesis para o País das Maravilhas, a criação de um mundo a partir de um pedido por uma história feito por três crianças a bordo de um barco. Em sua língua original, o poema forma um acróstico do nome de uma das meninas, aquela que seria a inspiração para a protagonista, Alice Pleasance Liddell.

“A boat beneath a sunny sky,
Lingering onward dreamily
In an evening of July —

Children three that nestle near,
Eager eye and willing ear,
Pleased a simple tale to hear —”

(“A Boat, Beneath a Sunny Sky”, de Lewis Carroll)

A aventura da menina que acaba se encontrando em um mundo estranho após perseguir um coelho branco de colete e relógio está presente ainda hoje no imaginário popular, mais de um século e meio depois de sua primeira publicação. No entanto, seus acontecimentos e personagens tinham uma relação bem diferente com aquelas três crianças do barco, em comparação com as outras tantas que conhecemos a partir das páginas escritas ou nas mais diversas adaptações em filmes e peças. Quando contamos histórias oralmente para uma criança, é comum que tentemos incluir o mundo conhecido por ela na narrativa. Costumamos começar com um herói ou uma princesa que, por coincidência, tem o mesmo nome pelo qual responde a voz que singelamente pediu “me conta uma história?”. 

Charles Dodgson também usou desse artifício, mas foi ainda mais longe do que só usar o nome de uma das vozes que pedia por uma história. Alguns estudiosos tentaram remontar esses paralelos, encontrando propostas interessantes que associam figuras que seriam reconhecidas pelas Liddell aos personagens presentes no País das Maravilhas. A relação entre a menina Alice e a protagonista é clara, mas mesmo as outras duas irmãs também estariam representadas na narrativa. Na tradução para o português, a referência ao personagem Papagaio não fica tão clara, mas seu nome em inglês, Lory, ressoa o apelido da mais velha, Lorina – e não é difícil imaginar que a sua fala à Alice, “Eu sou mais velho que você e devo saber mais”, remonte a uma discussão entre as duas irmãs na vida real. Já Aguieta, um filhote de águia que reclama não saber o significado das palavras grandes demais, representaria a mais nova das meninas, Edith, que provavelmente também reclamava por não entender algumas palavras ditas por Dodgson.

O capítulo em que esses personagens aparecem, “Uma corrida em comitê e uma história comprida”, começa com Alice se deparando com um grupo de animais ensopados (bem como ela mesma) que tentam se secar após caírem na lagoa de lágrimas criada pelo choro da protagonista. Junto ao Papagaio e à Aguieta estão outras aves, como o Dodô e o Pato. Estes personagens fazem também alusão a outros tripulantes daquele barco onde a história estava sendo contada, como o próprio Charles Dodgson, que, por ser gago, acabava pronunciando seu sobrenome como Dodô; e Robinson Duckworth, um reverendo que também estava à bordo, uma vez que a palavra para pato em inglês é duck.

A narrativa de Dodgson também remetia a textos conhecidos pelas irmãs Liddell: um dos mais recorrentes eram os poemas de Isaac Watts, lidos nas escolas por seu teor pedagógico e moral, que foram mais de uma vez parodiados pelo autor ao longo do texto. Logo no início da história, por não ter certeza se ela era de fato ela mesma, Alice tenta recitar “Against Idleness and Mischief”, que originalmente inicia com o verso “How doth the little busy Bee” (“Como pode a Abelhinha”), mas a protagonista começa a declamar “Como pode o Crocodilo”. Outro poema, “The Sluggard” (“A quadrilha do preguiçoso”) também é parodiado da mesma forma, dessa vez a partir do pedido do Grifo à Alice, e mais uma vez a menina troca algumas palavras, recitando um poema sobre uma lagosta sendo assada. É quase possível ouvir a risada das meninas ouvindo um adulto brincando com suas lições da escola.

Manuscrito de Alice no País das Maravilhas

Outras referências comuns ao dia-a-dia das crianças da era vitoriana são usadas. Além dos poemas de Watts, outros textos também recebem paródias, como a canção “The Star”, no Brasil conhecida como “Brilha, Brilha, Estrelinha, que se transforma em “pisca, pisca, morceguinho”. Ditos populares da época também foram fontes de inspiração: o personagem Chapeleiro Maluco se origina da expressão “mad as a hatter” (louco como um chapeleiro), que se referia ao estado de loucura de alguns desses trabalhadores causado pelo envenenamento por mercúrio, muito usado na época para a confecção de chapéus. A Lebre de Março, parceira de chá do personagem, também provém de um ditado parecido, “mad as a march hare” (louco como uma lebre de março), uma referência ao comportamento frenético e excêntrico que as lebres costumam exibir durante a estação de acasalamento, que ocorre no início da primavera, março no hemisfério norte. Alguns teóricos também acreditam que o sorriso do Gato de Cheshire venha de uma frase inglesa, “to grin like a Cheshire cat” (sorrir como um gato de Cheshire). A origem desta, no entanto, é menos clara, com alguns acreditando se referir a um artista da cidade que pintava felinos sorridentes e outros acreditando que  deriva dos famosos queijos de Cheshire, que na época teriam o formato de um gato sorridente. 

Ainda que inspirada na menina Alice Liddell e no universo simbólico que a circulava, a história de Alice no País das Maravilhas cativou e segue cativando crianças dos mais diversos lugares e épocas. Isso porque, mesmo tirada de seu contexto original, com caricaturas específicas, a narrativa ainda conserva algo de especial: com ela temos acesso ao mundo através do olhar de uma criança, vendo as confusões criadas pelas regras e etiquetas dos adultos, além de uma descoberta de si diante desse mundo. O jardim que a menina vê através da pequena porta assim que alcança o chão após cair pela toca do coelho, para Alice Liddell, era o lindo jardim da Christ Church, da qual seu pai era o deão e onde ela (e outras crianças) não podiam entrar. No entanto, fora desse imaginário biográfico da menina Liddell, o jardim ainda é a imagem do lugar onde a protagonista deseja estar – e que é vedado a ela devido ao seu tamanho. 

É diante da pequena porta trancada que se desenrola uma das passagens mais conhecidas da história de Carroll: Alice diminui, cresce e diminui (“como um telescópio”, ela descreve) na tentativa de tentar passar pela porta – e seu tamanho permanece instável ao longo de toda a aventura. Essa imagem reflete um sentimento comum das crianças em processo de amadurecimento: ora pequenas demais para algumas coisas, ora grandes demais para outras. “Devia ter vergonha, uma menina grande como você!”, a protagonista repreende a si mesma quando começa a chorar. É claro que esse conselho não vem de uma observação genuína de Alice, mas ecoa de uma fala que qualquer criança escuta uma hora ou outra. Ela está sozinha e repete as instruções ensinadas pelos adultos. A maioria não é ruim: é realmente importante ter certeza de que não se bebe de uma garrafa escrita “veneno”, por exemplo. 

Entretanto, o livro não carrega um ar pedagógico pesado. Sua  protagonista, ainda que acate muitas ordens e busque ser o mais educada possível, é incrivelmente questionadora e reclama constantemente das diversas situações nas quais se encontra.

“Como as criaturas dão ordem à gente e nos fazem decorar lições!” 

As observações de Alice desmontam diversas convenções sociais duras que, através dos olhos da criança, não fazem sentido. Elas estão espalhadas por todo o livro, como o Lacaio que faz perguntas demais para a menina que só desejava entrar na casa da Duquesa; a forma com que a Duquesa tratava o Bebê; a Lagarta, que fica muito ofendida com a fala de Alice em relação ao seu próprio incômodo com sua altura; as regras e condutas sem sentido do tribunal da Rainha – e, claro, a célebre gigante mesa de chá do Chapeleiro e da Lebre, na qual ela não podia sentar por não ter sido convidada, mesmo que houvesse lugar de sobra. 

Ainda que feita sob medida para uma criança em específico, trazendo referências sobre sua história particular, Alice no País das Maravilhas é um livro que tem o poder de se conectar com as crianças, auxiliando-as na árdua tarefa do amadurecimento de uma maneira singular, capturando, com muito humor e de forma não moralizante, o mundo.

Alice no cinema


Apesar da imensa popularidade do livro, é impossível pensar na longevidade desta obra sem pensar no cinema. A primeira adaptação em filme de Alice no País das Maravilhas data de 1903 – apenas um ano após o lançamento de Viagem à Lua, de George Méliès. Portanto, a obra-prima de Charles Dodgson está conectada ao cinema, presente desde os primórdios deste, e é incansavelmente levada às grandes telas até os dias atuais.

Ainda que muitos tenham vindo antes e depois, o filme que se cristalizou como referência cinematográfica de Alice é a animação da Disney, lançado em 1951. Com visuais fortemente inspirados nas ilustrações de John Tenniel, as originais da primeira edição da obra, o desenho mescla as histórias do País das Maravilhas com seu sucessor, Alice Através do Espelho. Mesmo que não seja a versão mais fiel ao livro, a animação da Disney conserva a sensação central do original: acompanhamos uma criança questionadora ao longo de sua aventura em um fantástico e confuso mundo. 

Alice no País das Maravilhas (1951)

O mesmo não pode ser dito em relação a versão de Tim Burton do clássico. Um dos primeiros filmes da febre (ainda vigente) da Disney de live-actions, a Alice de Burton parte de uma proposta promissora: dessa vez não acompanharemos uma garotinha em seu processo de conhecimento do mundo adulto que se coloca confusamente diante dela, mas sim uma jovem Alice que se prepara para, de fato, adentrar esse mundo. 

O filme se inicia com uma espécie de prólogo. Durante uma reunião entre homens de terno, uma criança loira surge em sua camisola. Um dos homens, que compreendemos ser seu pai, pergunta se é o pesadelo novamente e, diante da resposta positiva, a conduz de volta para o quarto. Na cama, a menina conta o sonho: ela caía, encontrava um pássaro dodô, um coelho de colete. Percebemos, então, que se trata de Alice. Ela conta que teme estar ficando louca e o pai afirma que sim, ela está – e entrega a frase que já é parte do imaginário popular acerca da história de Alice –  “mas as melhores pessoas são”. O filme dá um salto temporal de 13 anos e agora encontramos Alice com quase 20 anos em uma carruagem com a mãe. Sua personalidade questionadora das convenções sociais, como a Alice dos livros infantis, é mostrada logo na primeira cena, em que Alice se nega a usar corpetes e meias.

Mãe e filha chegam ao destino, uma festa em um jardim. Rapidamente Alice descobre que aquela reunião tem como objetivo oficializar um pedido de casamento de Hamish, filho de um sócio de seu pai, a ela. Algumas personagens presentes nesse lugar remetem à personagens conhecidas do clássico, como é o caso das gêmeas responsáveis por informar Alice sobre a razão daquele encontro – que andam lado a lado, com roupas combinando, completando frases uma da outra, como Tweedledee e Tweedledum; ou a mãe de Hamish, que menciona seu descontentamento com as rosas brancas, uma vez que ela havia dado ordens de plantar vermelhas – como a Rainha de Copas. 

Logo, entende-se que o filme de Burton vai se comportar de uma forma parecida com a do livro para a pequena Liddell, com os personagens no País das Maravilhas que são reflexos das pessoas do mundo real. A aventura de Alice ajudará a jovem adulta a decidir entre os dois destinos que se colocam diante dela: casar-se com Hamish ou tornar-se um fardo para a mãe. No pequeno pico de tensão desse primeiro momento da narrativa, em que Hamish, de joelhos, profere o pedido, enquanto todos os convidados da festa observam a cena atentamente, Alice avista o Coelho Branco e o persegue até cair na grande toca. 

Sua entrada no País das Maravilhas se dá como no original, crescendo e diminuindo até conseguir adentrar a pequena porta, dessa vez, porém, sem lágrimas. Ao finalmente entrar, Alice logo se depara com alguns dos conhecidos personagens: o Coelho Branco, as Flores, Tweedledee e Tweedledum, o Dodô e um pequeno rato, que poderia ser uma mistura do Rato da Lagoa de Lágrimas do livro com o Caxinguelê da mesa de chá. As criaturas discutem se aquela é a Alice certa e, para ter certeza, decidem consultar Absolem, a Lagarta Azul. Diante de Absolem, descobrimos que todos buscam a Alice certa, pois ela estaria destinada a cumprir uma profecia: matar o Jaguadarte (que, originalmente, era a criatura de um poema contado por Humpty Dumpty em Alice Através do Espelho). 

O filme transforma-se então em um grande clichê de filmes de fantasia, além de ignorar toda a construção de personagens feita em seu primeiro momento. A Alice, que se apresentava no princípio como uma jovem questionadora e imaginativa, como a criança que conhecemos na história clássica, de uma hora para outra torna-se uma protagonista rasa, que é apenas levada de acontecimento em acontecimento. O conflito que se cria ao longo do filme é apenas mais um batido bem x mal sem muita profundidade, entre a Rainha Branca, antiga soberana do reino, e a tirana Rainha Vermelha. Mas o que esse conflito significa para o conflito de Alice Kingsley? Qual caminho ela tomará diante da escolha que se coloca diante dela – matar ou não matar o Jaguadarte?

A narrativa tem seu clímax em uma batalha nos moldes de filmes de fantasia que recuperam um imaginário medieval, com os dois exércitos frente a frente em um campo de batalha. Enquanto cartas e peças de tabuleiro de xadrez se digladiam, Alice enfrenta e mata o Jaguadarte. A profecia se cumpre e, graças ao sangue do monstro, Alice consegue retornar para o mundo real, em outras palavras, não havia escolha que não matar o Jaguadarte. Então o que essa jornada inteira significa para uma jovem que está diante de uma escolha importante? 

Alice retorna para o mundo real e, sem grandes surpresas para o telespectador, nega o pedido de Hamish. Além disso, a protagonista chega com muitos recados: decide não contar para a irmã que seu marido a trai; pede que sua tia Imogene, uma mulher delirante que tinha sido usada como exemplo do que Alice poderia vir a se tornar caso não se casasse, procure ajuda para tratar de suas visões (ainda que o filme até então tivesse falas positivas em relação à loucura), e, por fim, afirma para sua mãe que não se tornará um peso para ela. As únicas coisas que amarram a narrativa do mundo real à narrativa do País das Maravilhas são a observação da semelhança que Alice faz entre as irmãs da festa e “dois irmãos que ela conheceu num sonho” e o passo de dança do Chapeleiro. Nada mais. 

Adaptar um clássico tão querido por tantas pessoas não é uma tarefa fácil. A escolha acaba sendo entre tentar remontar a história da forma mais fiel possível ou recriá-la completamente. Os dois caminhos abrem espaço para a crítica. Burton tomou o segundo e sua proposta era interessante: trazer a ideia do amadurecimento de uma criança para a história de uma jovem. No entanto, seu filme, independentemente da sua fidelidade à história original, não funciona. Ele se propõe a funcionar como um tipo de jornada do herói, em que Alice, na sua aventura, aprenderia algo de extrema importância para sua vida. Porém, toda história inicial parece apenas um pretexto para a protagonista encontrar o Coelho Branco e viver um filme de fantasia qualquer.

Polêmica


É impossível escrever sobre a história da escrita de Alice no País das Maravilhas sem esbarrar na grande polêmica das acusações de pedofilia, sobretudo depois do sucesso da adaptação do Tim Burton, que fez a discussão renascer na internet. A relação muito próxima de Charles Dodgson com crianças – sobretudo quando comparada com suas relações com adultos – causa uma estranheza. Ele passava muito tempo com elas; para alguns, tempo demais. Provavelmente isso foi o que garantiu que sua obra fosse tão acessível e interessante para elas, ele era próximo de seu público.

Mas essa não é a única coisa que levanta essa questão. A grande maioria das fotos conhecidas de Alice Liddell e suas irmãs na infância foram tiradas por Charles Dodgson, que também era fotógrafo. Seu acervo conta com cerca de 3.000 fotografias, muitas com as irmãs (e outras crianças) fantasiadas – e cerca de 30 envolvendo crianças nuas. Essas são as provas mais usadas para comprovar a teoria de que Dodgson era um pedófilo. Junto a isso, é comum circular na internet uma imagem da menina Alice beijando o escritor, porém, essa imagem é uma montagem. 

A nudez infantil naquela época era encarada de uma forma diferente da que encaramos hoje, já que o corpo nu das crianças era visto como sinônimo de pureza – e alguns rebatem as acusações com tal afirmação. No entanto, acrescenta-se às fotos um fato menos discutido na grande rede: o diário de Dodgson traz algumas páginas faltantes. A teoria mais aceita é a de que Dodgson teria se interessado não por Alice, mas por Lorina Liddell, a mais velha das irmãs (ainda adolescente, mas já com idade para casar-se de acordo com os padrões da época), e que teria sido recusado. Outras fontes dizem que suas intenções não tinham a ver com Lorina, mas com a governanta da família, que se chamaria Ina (coincidentemente um apelido para ‘Lorina’), e as páginas teriam sido arrancadas devido a vergonha da recusa da moça. Toda a situação é muito confusa e ainda não completamente esclarecida. As irmãs Liddell viveram até a década de 1930, mas nunca afirmaram nada em relação a toda a polêmica. 

Referências 



O Querido Clássico é um projeto cultural voluntário feito por uma equipe mulheres pesquisadoras. Para o projeto continuar, contamos com o seu apoio: abrimos uma campanha no Catarse que nos possibilitará seguir escrevendo o QC por muitos anos - confira as recompensas e considere tornar-se um apoiador. ♥
Giulia Benincasa
Nasceu em 1999, é carioca e formada em Letras na UFRJ. Ama livros, filmes, praia, música, circo, macarrão e rolês que acabam cedo. Escreve poemas que podem ser encontrados pela Internet e também em seu livro, Ecolalia, que saiu em 2021 pela editora Urutau.

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