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Os Adormecidos, de Walt Whitman: um manifesto de solidão, sexualidade e humanidade

Com a primeira edição sendo lançada em 1855, o magnum opus de Walt Whitman, Leaves of Grass, ou Folhas de Relva em português, trouxe ao cenário literário um sentimento novo de nacionalismo estadunidense, juntamente com uma revolução no verso poético e no modo de tratar temas sensíveis. Muito polêmico para a época por seu tratamento “à frente de seu tempo” de homossexualidade, raça e gênero, mesmo assim o livro ainda é fincado junto com uma bandeira azul, vermelha e branca de estrelas, e tratado com o sentimento mais puro do estadunidense. O livro teve oito edições, todas editadas pelo próprio Whitman, com adições de poemas escritos ao longo dos anos e modificações nos da primeira edição. Dentre os famosos, “I Sing The Body Electric”, que inspirou vários artistas, dentre eles a cantora e compositora Lana del Rey, o escritor Ray Bradbury e a banda gótica dos anos 1980 The Sisters of Mercy, é o poema que mais expressa os sentimentos de Whitman sobre as pessoas, suas almas e seus corpos, suas vidas. “Song Of Myself”, poema mais longo do autor, chegando a 60 páginas dependendo da edição, também é um manifesto da vida e da beleza na visão do autor. 

Mas há um que deveria receber mais atenção por ser um dos poemas mais profundos e significativos na obra de Whitman, por condensar suas expressões de amor, solidão, beleza, vida e morte. Tal poema é “The Sleepers”, ou, como traduzido, Os Adormecidos.

Muitos argumentam que o poema concerne, em maior parte, a empatia, o sentir junto com outros, que Whitman experiencia em um tipo de viagem astral, na qual vaga pelo mundo dos sonhos, “Sonhando com os outros sonhadores e se tornando os outros sonhadores”. Mas através das linhas poéticas, das caminhadas pelas camas dos sonhadores, o autor expressa um sentimento de solidão que subjaz o sentimento de partilha. Vemos como ele mostra seu sentir com o outro através de seus sonhos, fazendo uma conexão metafísica, ou algum tipo de onirismo. Todos os seres, não importa como são, onde estão ou com quem, estão unidos nesse momento solene pelo sono, e nessa conexão a união dos seres mostra uma identidade coletiva, na qual o narrador caminhante acaba por se encaixar. 

“Eu sou o ator, a atriz, o eleitor, o político”

A identificação coletiva, a identidade vasta, se diz ser muitos, mas, no fundo, não mostra quem realmente ele é. Mal sabemos do narrador, o que ele mesmo sonha, o que ele busca, o que ele deseja se não por pontuais momentos nos quais ele fala por si e não pelo sonho que visita. Sua comunhão com os outros sonhadores o molda e é assim que o conhecemos: um ser solitário e universal ao mesmo tempo.

Pode-se perceber, nas entrelinhas, um medo de estar no mundo onde todos são como você, sonham o mesmo sonho, e mesmo assim a individualidade nos lança para fora do conforto de ser humano tal como o outro. O medo recorrente de se identificar (e também de não se identificar) com outros e não estar realmente com eles se mostra em seu clamor pelo amante e na descoberta de que a escuridão tem sido mais gentil que o amor humano.

No poema, uma das imagens mais poderosas é a do amante que se mostra em forma de escuridão, evocando uma ausência de um outro amante, provavelmente um ser de forma corpórea:

“Darkness, your are gentler than my lover, his flesh was sweaty and panting,
I feel the hot moisture yet that he left me”

(“Treva, você me trata melhor que o meu amante... sua carne suava e gotejava
Sinto a umidade morna que ele deixou em mim”)

Mostrando um amor pela escuridão para evitar estar só e evocar uma presença somente para companhia, o amante quando passa a ser tido como um uno com a escuridão reforça essa ausência, reforça o desejo do outro, mas ao mesmo tempo renega o outro, sua carne lhe deixou um sentimento de melancolia junto com o suor morno. Whitman explicita abertamente suas relações com homens e mulheres em seus poemas, e neste vemos mais uma vez a imagem de um homem como um amante perdido. Como deve se esperar, em sua época qualquer sentimento e expressão LGBT+ deveria ser reprimida. Quando Whitman toma a imagem de um amante nas trevas, escondido, renegado, novamente retoma um sentimento de solidão e desespero.

Além da imagem do amante, o narrador faz uma descrição de sua mãe lhe contando acerca de uma menina por quem nutriu sentimentos de afeto que podem ser lidos como uma paixão de infância, sendo que o contato entre as duas durou apenas um dia, mas o fascínio da mãe dura uma vida toda. Um dos pontos mais problemáticos do poema é o uso do termo para a menina por quem a mãe nutre sentimentos, que seria uma mulher nativa-americana que é chamada por Whitman de “red squaw”, sendo “squaw” um termo pejorativo, vastamente racista e misógino, para descrever essas mulheres. Mesmo que por vários momentos Whitman tenha expressado sentimentos contra racismo e misoginia, devemos lembrar que era o ano de 1855, e pode-se esperar que boa parte dos pensamentos sobre mulheres e nativos-americanos na época não fossem perfeitamente desconstruídos. Mesmo com a implicação do termo, o sentimento da mãe de Whitman pela mulher se mostra genuíno e atrativo, mas fica como uma distante memória apenas, já que jamais as duas se encontram novamente.

Walt Whitman

Assim como a paixão, morte e luto são muito vistos no poema, em forma de derrotas em batalhas, em forma de um homem que é abarrotado pelas ondas do mar e se afoga, deixando a pensar um possível suicídio, o poeta nos mostra também figuras de viúvas, figuras solitárias e desamparadas. O sentimento da derrota do comandante estadunidense George Washington na batalha de Long Island de 1776, onde o exército de Washington perde para o exército britânico que invade a ilha e mantém controle dos portos: esta perda teria sido imensa em questão de batalha, e Whitman descreve um sentimento pelos olhos do comandante. O poeta nunca deixa de lado suas expressões nacionalistas políticas, e nos traz uma perspectiva de perda em um sentimento que vai além do particular, e se encontra na dor de uma nação. 

Uma necessidade de libertação, de reencontro consigo mesmo e com os outros evocados através de uma noção de casa e de retorno à terra natal é muito presente e significativa em versos nos quais Whitman evoca o retorno e o fim do exilio. Sempre permeia no poema um sentimento de estar apartado de seu lugar de pertencimento. Com as imagens de identificação se tornando mais misturadas e mais confusas, perdemos o narrador em sua viagem, nos sonhos dos outros sonhadores, e não sabemos exatamente qual é o sonho do narrador. Não sabemos exatamente quem ele é e o que procura, ou se só está ao acaso, vagando sem rumo. O que vemos é a sua simpatia e empatia pelo outro, um sentimento de mundo forte e passional, como se estivesse procurando alguém para estar junto, alguém com quem se esconder de sua própria solidão. O retorno à terra natal evoca essa imagem de retorno ao pertencimento, onde pode-se não mais experienciar a, por vezes, dolorosa separação do mundo. 

Whitman, apesar de suas estâncias revolucionárias, não deixa de lado concepções religiosas; mais um exemplo de sua procura por comunhão se mostra na sua imagem do Paraíso, prometido para os que creem. O Paraíso e a alma indicam a fé que Whitman tinha em Deus. Em vários outros poemas de sua autoria ele evoca a alma e a trata com a maior devoção, como se fosse realmente uma coisa sagrada para ele. A alma e o corpo são sagrados para Whitman. Em “I sing the Body Electric”, ele pergunta “E se o corpo não fosse a alma, o que é a alma?”, evocando sua junção sagrada. Em The Sleepers, Whitman fala do corpo, faz menção a órgãos sexuais como uma forma de mostrar o substrato da vida, como o corpo e a alma juntos, derivados do Paraiso, são como presentes divinos e como elementos sagrados do corpo humano. Todos os corpos são perfeitos e sagrados para Whitman. 

“The soul is always beautiful
The universe is duly in order, everything is in its place”

(“A alma é sempre bonita
Tudo no universo está em ordem, tudo está em seu lugar”)

A forma como Whitman tenta mostrar sua paixão pelo mundo é cativante. Suas andanças pelos sonhos são desacompanhadas, mas, ao mesmo tempo, carregadas de histórias que se pode contar sobre o mundo. A individualidade é mostrada como forma de união. Nessa união, dorme a solidão onde dormem os sonhadores, e cada um há de se conectar com o outro na noite que os une e no mesmo mundo compartilhado de sonhos onde o narrador passa, onde ele também busca pelo seu retorno, pela sua união e partilha com os outros, para sair de sua solidão de caminhar sozinho pelo vale dos sonhos. 

“The sleepers are very beautiful as they lie unclothed.
They flow hand in hand over the whole earth from east to west as they lie unclothed”

(“Os adomercidos estão lindos deitados nus assim
Fluem de mãos dadas sobre toda a terra, de leste a oeste deitados e nus assim...”)

As imagens que perpassam o poema são de uma sensibilidade estética, no sentido de toque, de sensível, de acolhimento do corpo, da alma, do abraço, da comunhão com quem somos, com quem estamos e para onde vamos, juntos ou sozinhos. Whitman não teme sua solidão, ele a envolve e a ela dá saudação porque ela lhe permite estar em um tipo diferente de comunhão com o outro, onde ele compartilha dos sentimentos de amor, morte, luto, pesar, medo, derrota, e ainda assim não se nega essas sensações:

“I know not how I came to you and I know not where I go
with you, but I know I came well and shall go well
[...]
I will duly pass the day O my mother, and duly return to you.”

(“Eu não sei como eu vim até você e eu não sei onde vou com você, mas eu sei quem vim bem e que partirei bem.
[...]
Eu irei devidamente passar pelo dia, ó Mãe, e devidamente irei retornar para você”)

O narrador trata a noite como uma mãe, uma figura protetora e cuidadora, que está de vigia sobre os sonhadores como seus filhos, e nas suas andanças desacompanhadas, ele ainda tem sua Mãe para estar com ele. À noite ele chegou até ela, e para ela irá voltar, passando pelo dia e pela vida acordada e retornar para sonhar junto com a noite. Dessa forma, o narrador transpôs as fronteiras entre sono e vigília, entre amor e morte, se reconheceu na humanidade, se acolheu em sua solidão e em seu desejo de estar na noite e de sonhar com os outros, seu desejo de ser o outro, de ser alguém além de si e para si. Whitman tem na maioria de seus poemas expressões de sentimentos de humanidade que mostram a beleza em todas as nuances da vida, até naquelas que mais tememos e das quais desejamos distância. O poeta não só renega essa distância como abraça com naturalidade os infortúnios e nos mostra a beleza de fazer o mesmo, e retornar com ele para a noite. 

Referências 



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